quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Pretos, no máximo, acaboclados


De um momento para o outro, o que já se anunciava ao alvorecer, veio se formando: o vento as nuvens, tudo começou em um ciclo mais dinâmico do que os dias quentes e normais de verão.

Como se não fosse suficiente, na memória, também de um momento para o outro, veio-me frase dita; quando? Como? Por quem? Bom, não importa. A voz, diz: - as cotas raciais extremam o racismo e a política do privilégio.

Mas agora é tempo de férias, tempo para poder pensar e produzir o que ninguém, assim seja, quer comprar. Fui em busca de ondas, coisas raras nessa época do ano, mas, não posso mentir, esse ano não tenho do que reclamar; boas ondas e boa disposição, sem contar os encontros mais que inusitados que só à disposição do ócio se faz possível.

O tempo...

Eram todos pretos ou levemente Caboclos, muitas, muitas das muitas crianças pretas ou, no máximo, quase Caboclas. Com elas coloridos estandartes de algodão doce, picolés, sorvetes, acarajés, cocadas, água, artesanatos, enfim de um tudo nos ombros magros e pretos ou, no máximo, acaboclados daquelas crianças de pés descalços em um chão escaldante de verão.

O espaço...

Como se houvesse um cordão de isolamento invisível, do outro lado a alguns metros, homens de enorme protuberância abdominal acompanhados de senhoras de enormes chapéus e jovens e crianças que, apesar do delírio sensitivo do local onde estavam, não levantavam a vista dos trecos eletrônicos que um dia chamou-se celular. Auto fotos, muitas, o tempo inteiro; de ladinho, sorrindo, fazendo caras e bocas, o eu o tempo todo perpetuado pelo próprio eu e que, creio, só interessa ao próprio eu.

Donos do mundo.

- Você traga isso, traga aquilo, quero assim...

E lá estavam com suas enormes e brancas protuberâncias abdominais felizes por estarem sendo gentilmente assediados com todas as delícias possíveis para o gozo de um lindo balneário, nascido de uma colônia de pesca, possivelmente, originária de um quilombo, mas não tenho essa informação, fico devendo, em um dia claro e quente de verão.

E as crianças pretas e acabocladas, descalças passavam por entre eles, na maioria das vezes eram invisíveis, iam e retornavam à sede da colônia de pesca onde descansavam por alguns minutos à sombra, para logo refazer a trajetória por entre as protuberâncias e chapelões. Quando vinham à sede da colônia, percebíamos se haviam sido notados, quando isso ocorria vinham com um pequeno sorriso no rosto, quando não os olhos vinham opacos. A difícil sensação de inexistência.

Muitas crianças pretas, ou no máximo, acabocladas, descalças, provavelmente de férias escolares e que de segunda a segunda chegavam à praia por volta das oito horas, carregando seus produtos cheirosos e coloridos, que seriam oferecidos do lado de lá da divisória invisível até as 18 horas, todos os dias, os pés descalços e a ingênua conformação de que assim é o mundo. A esperança vai enrolada na cocada, no algodão doce, no acarajé, no picolé, mesmo quando aquela enorme protuberância branca, calçada, segurando um equipamento de alguns milhares de Reais na mão, disparava sem dar atenção:

- Como? Não está muito caro, querem explorar o visitante!

E a menina preta com uma caixa de isopor quase do seu tamanho, continuava com seus pés descalços naquela areia escaldante, tentando vender um fresco e delicioso picolé de alguns Reais a senhora de chapelão que aguardava a chegada das bebidas e comidas que custarão, sem dúvida, algumas centenas de Reais.

Hoje é domingo, 29 de janeiro de 2017, às 10 horas e cinquenta minutos, as crianças já estão a postos, todas pretas, ou no máximo, acabocladas, todas descalças, todas sorrindo e brincando entre elas. Os enormes carrões do Centro-oeste, Sudeste, Sul, Nordeste, de todos os cantos deste país começam a chegar, buzinam, gritam, xingam; São os donos do mundo, aqui ninguém existe antes deles chegarem e, depois que chegam, o que existe, existe para servi-los.

No dia que dedicaram à comemoração de São Francisco de Assis, na sede da colônia de pesca teve samba. Eram todos pretos, ou no máximo, acaboclados. Vez ou outra uma protuberância abdominal branca e calçada se aproximava, fazia uma ou duas fotos e se ia apressadamente. Da mesma forma que as crianças pretas, ou, acabocladas, entre um gole de refrigerante, afinal era dia de festa, dia do padroeiro da Colônia, e outro, saiam descalços, atravessavam a linha invisível, tentando existir.

Que tal estabelecermos cotas para a condição humana?

Roger Ribeiro

quarta-feira, 25 de maio de 2016

As três janelas


O rosto projetado sobre uma parede caiada branca erguida nas rochas sobre o mar. Era uma parede de pedra e barro erguida no século XVI para ser Forte. E ali, bem na espessa construção, projetava-se aquele rosto que ganhava dimensões ainda maiores quando saltava de sua luminosidade para invadir-me pelos olhos.

 

Uma esfinge cor de sertão sulcada. Os fundos sulcos rachados e escurecidos pelo tempo implacável debruçavam-se em um olhar opaco, como se a espera de algo que, no local onde projetado, era abundante. Abaixo daquela parede, sobre rochas incessantemente violentadas pelas águas, água que tanto faltava para preencher aqueles sulcos, umedecer aqueles olhos sem lágrimas para chorar. Era um contraste tão fundo que permaneceu em um local entre minha pele e minha alma, me fez desconfortável, mas ao mesmo tempo me prendia ali.

 

O que dizia mesmo aquela viola de arame emitindo sons agudos e secos em um diálogo quase improvável com o som d’água no rochedo, enquanto o rosto sertão fixava-se na cal? Tudo aquilo me era excessivamente íntimo e familiar, cresci assim, entre paredes de pedra assentadas, diziam, em barro embebido por óleo de baleias que me faziam ouvir a noite inteira os gemidos dolorosos dos cetáceos apresados naquelas paredes onde as águas do mar se atiram contra estas a reclamar o que lhes pertencia. Era o som do universo. Naqueles tempos o humano era mais silencioso, suas máquinas de fazer barulho eram ainda raras e precárias frente à ressonância do universo ao meu redor.

 

E no intermezzo entre minha pele e minha alma onde aquele todo se alojou ficava-me a dúvida entre os tempos, sei, racionalmente, que havia um tempo imerso que separava aquela construção seiscentista daquele rosto projetado, mas ao mesmo tempo o caiado branco recém pincelado contrastava com aquela fisionomia que pouco se distanciava da milenar terra rachada, sulcada, escuramente queimada pelo sol, pela falta d’água que não preenchia os sulcos, que não verdejavam, mas que explodiam na força daquele olhar opaco. Por um momento tive vontade de chorar, porém não era direito meu tal ato.

 

Ao deixar o imponente Forte, levei comigo a memória que o tempo insensatamente corrido me havia roubado. Rememorei o quanto me indagam: o que faço? Em que trabalho? O quanto me esforço? Seria razoavelmente bem sucedido, para poder ser sucedido no futuro, quem sabe, por alguém de maior sucesso? Cantarolei uma velha canção do Belchior acerca de um bom rapaz esforçado caminhando rumo ao reconhecimento do seu esforço sem perceber a impermanência que lhe espreitava.

 

Revivi, em instantes, a praça e seus verdes, a igreja velha, as antigas casas de paredes úmidas, as pedras pretas que calçavam as ruas onde se jogava bola, onde os raros automóveis que passavam naquele bairro distante esperavam para passar, o mundo não tinha tanta urgência, acho até mais, o mundo não tinha tanta importância, a Terra que até então era vermelho barro e verde, acordara de um dia para o outro azul, Êta! Esses russos...

 

O que teria mudado em todo este tempo que busquei ser competente?

 

Olhei para os meus pés, onde passei boa parte da vida, quando não buscava ser competente, ansioso à espera do evento maior - quando trocaria o Conga branco pelo o Vulcabrás de couro marrom, e eles estavam rachados, sulcados e enegrecidos.

 

Hoje passeando pelo que restou das velhas paredes úmidas do antigo bairro operário periférico notei que já não dava para escutar os cetáceos gritando, as águas violentamente chocando-se nas pedras, as aves noturnas com seus agouros. O mundo tornou-se surdamente barulhento e urgente.

 

As três janelas da minha casa foram emparedadas.

 

Roger Ribeiro

24 de maio de 2016

 

    

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Tino deu o fora!



 



- Tino, pare imediatamente com isso. Tino volte aqui.

 
- Tino, pare imediatamente com isso. Tino volte aqui.
A voz era incisiva e impositiva, porém Tino, que trata-se de um cachorro destes que tem a cara toda amassada e o corpo “toleital”, nem tchumf, caminhando estava, caminhando continuou. Nem uma olhadela de nada, absolutamente, não era com ele que aquela moça gritava.
- Tino, já te avisei...aos berros) volte já aqui!
Neste instante aparece na cena, o ajudante da jovem. Bem, nem tão jovem assim. Digamos da jovem senhora. Tratava-se de um distinto senhor, destes que usam bermuda branca com cinto marrom, meias esportivas ornando com aquele sapato de couro branco, Os cabelos ralos, lisos e grisalhos dava-lhe um ar nobre, algo meio “Orléans e Bragança”, sabe como é?!
- Não seria melhor ir buscar o osso? – perguntou o nosso nobre ao que recebeu de nossa jovem senhora histérica apenas um olhar. Nada mais do que um fulminante olhar.
Tentou pega-lo, o abraçou, ele apenas continuou andando sem prestar a mínima atenção, foi o suficiente para a jovem abraçadora se estabocar no chão berrando impropérios ao impávido Tino, e saiu em disparada atrás do totó. Ela nitidamente raivosa, ele na mais perfeita paz, o nosso nobre contentava-se a ir andando a passos lentos, acho que tentando, telepaticamente, fazer o Tino perceber que pessoas daquela posição social não pediam estar entre os gramados do condomínio de praia, correndo atrás de um cachorro. Cheguei a ver um balão de quadrinhos sobre sua cabeça escrito: onde andavam os criados?
De imediato identifiquei-me com o Tino e passei, silenciosamente, claro, era eu que estava no campo do adversário, a torcer pela sorte daquele cachorro que parecia um tolete albino. Passei a imaginar, caricatural e meio preconceituosamente , o cotidiano do Tino: desjejum de água fresca e ração dura e seca, ao final de tarde, outra bacia de água e ração dura e seca. Durante os telejornais nenhuma palavra, muito menos latidos, podiam ser proferidos, na hora da novela então, vixi, aí era correr risco de expulsão e excomunhão.
Crianças fedendo a talco, de roupas de frufrus a apertar a garganta do bichinho enquanto o gorducho, orgulhoso, mostrava a todos como seu garoto era forte e destemido, esta loucura aos domingos, todos os domingos... Ah! Se Deus fosse cachorro, duvido que inventasse o domingo.
Durante a semana, menos mal, a jovem senhora com seus milhares de afazeres sociais e o nobre em seu escritório resolvendo os problemas do mundo... Dizendo ele. Tino ficava em paz, só era lembrado na hora que sobrava uma comidinha e uma boa alma lhe dava às escondidas, no mais era como se não existisse, nem ele, nem ninguém ali, por isso, cheguei a grande conclusão: ele continuava andando pra onde seu nariz aponteasse, afinal aquelas pessoas não existem,aquele local idem, nem ele próprio existia, em sendo assim... lá se ía, como diz a música – “sem lenço e sem documento”.
De olho colado na cena, descuidei-me e acabei saindo do anonimato para dentro do roteiro. A jovem senhora me viu e, pior, no momento em que estava com um sorriso de prazer profundo colado no rosto. Não havia dúvida alguma de que naquele embate estava eu ao lado do nosso Dom quixote de quatro patas. Ao me ver saiu imediatamente da condição humanamente descontrolada, descabelada, enlouquecida para a pose da Rainha da Inglaterra, apressou o passo e disse alto para que chegasse a mim:
- Isso mesmo Tino, vamos passear! Você está muito gordo, necessita fazer exercícios, vamos.
Tino nem tchunf, como antes, continuou reto em busca do seu Nirvana, após um tempo descruzamos os nossos caminhos e os perdi de vista, mas continuei sorrindo e pensando:hoje a madame vai passar um dia de cão.
 
Roger Ribeiro
06 maio de 2016.



terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Pé com Cré


 



O meu tênis emperrou. Descia do ônibus ali, bem próximo ao Largo do Fechadinho, quando do nada, bem no último degrau do coletivo, ele, sem aviso algum brecou. Não tinha santo que o fizesse andar. Os cadarços revoltaram-se, agarram-se ao primeiro obstáculo que viram e faziam jeitão de paisagem.

 

A fila atrás de mim aumentava. De repente todos queriam descer no mesmo ponto, nunca havia vivido tal situação, pegava diariamente esta linha, cortava a cidade em seu sentido dali para lá e nunca tinham mais do que eu, o motorista e o cobrador, ninguém ia ao Largo do Fechadinho. Não era um local aprazível, nem turístico, lá não existiam cinemas, bares, lanchonetes, salões de beleza, nada! No Fechadinho não havia absolutamente nada. Na verdade eu era a única pessoa que conheço que se dirigia a tão sinistro e insignificante local.

 

E o meu possante tênis verde e branco empacou que nem Mula, quando ainda se viam Mulas por aí. Não havia o que fazer, sentei no degrau superior para retirá-lo dos pés e desimpedir a passagem das pessoas que já começavam a ficar impacientes, para dizer a verdade, intolerantes, visto até minha senhora genitora já ter sido citada quando nem presente estava.

 

O miserável, até eu já estava impaciente com o dito cujo, agora não mais queria largar do meu pé, agarrou-se a ele com fúria, amor e desprezo. Um dos seus cadarços enroscou no meu tornozelo, enquanto o outro largou do suporte da porta e penetrou pelas costuras da bainha da minha calça puxando-a com força, emaranhando-se pelas linhas da costura lateral rompendo-a como se fosse faca na manteiga, deixando-me cada vez mais constrangido, olhava apavorado e via os olhos esbugalhados da passageira que incrédula gesticulava e vociferava coisas estapafúrdias em uma língua indecifrável.

 

A esta altura do campeonato perdi a referência do violão e das flores que levava, o meu tênis que em um ato de rebeldia descosturou a minha calça neste momento saboreava a minha cueca, sabe qual né? Aquela estilo lutador de boxe, com aqueles olhos e a boca inclinada, já não sabia mais o que fazer, apenas percebia todos os olhos me olhando e todas as bocas acusando-me de todos os impropérios possíveis e imaginários... Até gracinhas tive de ouvir:

 

- Olha a calcinha da boneca...!

 

Alguém recitou por detrás de uma poça de desespero que era eu naquele exato momento.

 

Rezava, pedia, implorava, prometia talquinho, lavagem especial, uma noite de lua com a bota vermelha da vizinha que tanto admirava, mas qual... Nada! Estava irredutível em sua meta estática. Uma senhora de cabelos azuis e corpo de Sabiá que passava na calçada vendo meu desespero veio ao meu auxílio, cantou, piou, bicou, puxou-me, pegou seu spray de pimenta e tacou no danado... Tudo em vão. Não havia mais o que fazer, levei as mãos à cabeça e perguntei aos céus o que estava acontecendo?

 

Óbvio que o céu com suas preocupações pessoais, que não são poucas, nada respondeu, apenas enviou-me uma chuva daquelas que em dois minutos transformou o Largo do Fechadinho em um rio caudaloso e furioso que arrastava o ônibus, o tênis, eu e as certezas do mundo em direção à única opção possível: à frente.

 

Em pouco tempo lembrei que estava em um Largo sem saída, daí inclusive o seu belo nome – Fechadinho, e o seu ponto extremo era o ponto do Ralo, -“fim de linha”, falou-me às gargalhadas a faixa branca daquele maldito tênis verde.

 

Por um instante vi a cabeleira azul de minha salvadora passar pela corrente d’água a uma velocidade estonteante. Dentro do coletivo todos se jogavam pelas janelas temendo o pior, o último a sair desejou-me boa sorte e partiu. De agora em diante era eu, meu tênis verde e branco e um veiculo enorme e desgovernado, batendo por todos os lados de um ex-Largo que se havia transformado em aquário.

 

Por minha volta começaram a passar Espadinhas, Carpas, Pintados, Atuns, Aratubaias e Cações! Êpa, protestei, mas que desassossego é este? Isto aqui é mar ou rio? A chuva fez uma trégua, reuniu-se, confabulou e sentenciou: Isso é tudo que te resta, meu filho. Ainda pensei em argumentar que aquela situação estava irregular... Mas de que adiantaria mesmo?

 

Enfim aquele enorme veículo começou a girar como se fosse um peão, percebi que chegávamos ao ponto do Ralo, ou ao ponto final. Tonto, tentava manter os sentidos, foram muitas horas girando, girando até que estancou. A chuva passou e enquanto o ônibus parava lentamente de girar um quarteto de cordas sobre o seu teto executava A Volta da Asa Branca, para um solo de assovio de feira.

 

Olhei-me de cima a baixo: não havia calça, minha marrenta cueca muito menos, minha querida camiseta do Ramones havia virado pó. A única alegria foi perceber que meu querido violão do nada reapareceu debaixo do meu braço e as flores, mesmo meio murchas, estavam na minha mão esquerda, sorri por um instante.

 

Mas não era o dia e percebi que havia sorrido no momento errado, olhei ao redor e lá estavam: o cobrador, o motorista, meia dúzia de curiosos e a polícia. No meio disto tudo, lá longe... Sobre os telhados das velhas casas do Largo, uma presença fluida se projetava no espaço junto aos peixes que segundos atrás por mim passavam, linda na sua delicadeza assustadora! Lembrei o que estava indo fazer no Largo, olhei a floresta no meu pé, era o verde encabulado que colocastes no teu ser, e saístes bailando por entre os ventos!

 

- Vamos engraçadinho, põe tua viola no saco, na delegacia você se explica. Disse a possante voz.

 

Lá me fui: eu, meu violão e meu tênis verde e branco. Ainda havia força para tentar uma última argumentação...

 

“Senhor delegado
Seu auxiliar está equivocado comigo
Eu já fui malandro
Hoje estou regenerado...”*

 

Roger Ribeiro

16 de fevereiro de 2016.

 

*Senhor Delegado - Germano Mathias


 

sábado, 26 de dezembro de 2015

Escala venosa e arterial


 

Encontro, juro, em meio ao nada, um coração trincando, dentes rosnados, cerrado. Seco acima do Sertão, encurralado como um Cordão de jovens apaixonados em alegorias de carnaval, alegorias, quem sabe, históricas?


- Menino saia da rua. Isso é coisa para gente de família!


Algo dizia que aquele coração andava sobre papeis de arroz. Naus que deixavam em seus sulcos algo púrpuro, algo como um blues do Cassiano, um devaneio do Cervantes, uma jogada errada do errante, uma gota d’água na testa do mal pensar, mas deixemos de filosofar, posto o nosso, perdoou-me a ousadia de dividir com te o que criei para mim, mas se assim não fores... que farás lendo este relato de data imprecisa?

Isto claro; por volta do início do texto, ele, sabe lá (menor) quem? Encontrou, largado sabe lá (agora maior), um coração. Problema? Sim, claro..! Qualquer um que encontre um coração estará, irremediavelmente, adquirindo um problema. Mas vamos em frente:


Pergunta o “achante”.

- Mas! ... O que faz aqui este ser que apenas não cumpre a sua função de bater? Aqui às minhas costas há um relógio, fico intrigado com o talento rítmico do mesmo, bate-bate-bate, não perde um tempo, um metrônomo para as idéias, um desastre em sendo mal usado, afinal é um verbo ousado e como tal exige superação – extra sensibilidade extraordinária.


Bom, sem expiração para responder, afirmou ter, o ser, e também o ver (este é mais difícil), segredou ser apenas um som, dizia:


- Tudo o que pensas ver, não passa de sons.


Batia, sorria e ardia o coração. Dizia nunca ter conhecido uma célula com tanta vontade de gostar. Padecia de imaginar que em muito, ou quase tudo, o que está por detrás de todas as varizes das artérias, era o gostar, o desejo de que o meu gostar seja mais gostar do que todos os gostares, “(...) que gente maluca tem que resolver (...)”.


Nada naquele instante se fazia mais presente do que aquele coração, encontrado em meio a uma constelação, afinal poderia ser muito bem o último de uma geração, ou pior: de uma gestação. Êta planeta confuso, aliás, desculpe, êta serzinho confuso...


Não seria muito mais simples apenas admitir que, ali estava em carne, sem osso, uma presença intergaláctica, interfásica, uma luneta a ver o olho do ser, seu lume? A transubstanciação ao bater o garfo na tirrina vertendo a clara em neve, o desmaio no espanto ou, simplesmente, em reta a estrada de Santos?


Lá íamos já longe quando finalmente consegui encontrar o momento certo, justo - disparei:


- Mas afinal, quem és? De onde vens? Para onde vais?


O sólido que existia entre meus braços, desapareceu.  

 

Roger  Ribeiro.
22 de dezembro 2015

 

22/12/2015

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Invisível... Eu?!


 

 

Vinha deslizando em minha prancha sozinho

E falei ao ver passar por mim um brotinho

Que bonitinha que ela é...*

 

 

- Este sistema de amor não serve para todos, aqui para nós e, entre nós, nem todos possuem os circuitos necessários para desenvolver determinadas emoções. Sejamos justos, afinal nem todos os seres necessitam de feixes sistêmicos emotivos.

 

- Sinceramente acho que estes que não possuem o sistema poderiam ter um equipamento externo que lhes dotassem destes, tipo um HD externo, entende?

 

- Ora, ora, mas para quê? Eu mesmo não possuo e vivo muito bem sem eles. Posso observar tudo e, digo mais, por isso mesmo sou muito requisitado para opinar, apartar, definir questões por vezes insolúveis para os detentores de tais... Como chamam mesmo?

 

- Emoções. Chamam-se emoções. Não sei se grande parte de nós conseguiríamos nos perpetuar sem elas, já imaginou? Como reproduzir sem o estímulo emotivo?

 

- Em laboratório, meu caro. Não seja patético! Ou nunca ouvistes falar de laboratório? Já imaginou uma pipeta dizendo ao receptor: “ah! querida eu te amo...”. Patético, para dizer o mínimo.

 

- Senhores, a conversa está muito agradável, mas chegou minha hora. Amanhã nos encontraremos.

 

Adentrou pelas complexas redes de super condutores e partiu. Em frações de segundos havia atravessado metade do planeta, porém, nas partículas sólidas do tempo...

 

La estava sentada vestida de prata esvoaçante sobre a brisa que soprava na varanda do restaurante. Seus finos e afiadíssimos pés balançavam impacientemente suspensos. Apenas seus longos cabelos translúcidos transmitiam alguma tranqüilidade. Todo o resto era fúria, milhares de células quânticas em hiperatividade. Seus olhos liberavam a energia que transformava a noite em dia, o sólido em gás, o visto em irreal, incrédulo.

 

- Por favor. Não se aproxime de mim.

 

- Mas, por quê? Estou apenas uma micro fração de segundo atrasado?!

 

- Achas mesmo pouco? Sabes quantas formas deixaram de existir neste tempo? Quantas passaram de inexistentes a fatos? Não podes drenar minha existência desta forma, já lhe havia avisado.

 

- Juro que não mais ocorrerá.

 

- Sim, sei que não ocorrerá, pois este tempo nunca existiu. Aliás, seremos apenas este hiato de tempo que não existiu, lembra?

 

- Não. Não consigo ter esta lembrança. Há um tempo entre nós?

 

- Um tempo que se subverteu, o futuro o apagou. É como a água da Cachoeira da Fumaça no Capão: ela existe, por cima podes inclusive lavar tua alma, mas não toca o chão, assim para a rocha da vertigem da queda, ela não existe.

 

Atenção, atenção – anuncia a voz sempre metálica – existe uma interrupção do fluxo, as partículas se chocam com extrema violência, isto pode desarticular o desequilíbrio das fontes levando a novos fluxos e vias indefiníveis. Solicitamos que a via seja desobstruída com urgência.

 

- Veja! Somos nós que estamos provocando todo este transtorno. Já deveríamos estar sentados nos alimentando e traçando os planos circulares para os próximos milênios.

 

- Já te falei. Nunca existimos, somos energia dissipada.

 

Um novo feixe de energia se instalou entre eles, novos seres desceram dos seus estados energéticos recuperando a solides original, moldavam-se entre as vias condutoras novas levas que desciam e subiam às ruas, estradas, avenidas, com suas suaves passadas, eram quase bailarinas acariciando os caminhos. Alguns permaneciam sublimes em forma de músicas, os mais experientes equilibravam-se sobre as pausas e aquele jovem translúcido continuava sentado a sua bateria fazendo a trilha pra que todos se movimentassem. Estávamos quase em um filme de roteiro previsível e pobre, avassalado genialmente por uma trilha sonora arrebatadora.

 

Eram apenas ventos, mas delas, com suas vestes translúcidas, vermelhas, azuis, escarlates, amarelas, cansadas gritavam para a janela do primeiro andar:

 

- Lise! Como é que é, vai descer ou não vai? O Porto da Barra não vai nos esperar para o resto da eternidade.

 

Eu? Bem, eu estava sentado na balaustrada esperando aquelas meninas, lindas, chegarem... Mesmo que não me enxerguem.

 

Roger Ribeiro

24 de setembro de 2015

 

* Broto do Jacaré - Roberto Carlos / Erasmo Carlos

 

 

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Ponto, de partida




Fervendo, sim fervilhando! Assim começou o dia. Calor, muito calor, apesar da calçada vazia. O sol lentamente se levanta do horizonte, tem um brilho amarelado, meio assim... De quem ainda não lavou o rosto, os dentes, a alma. Porém mesmo assim tudo estava muito quente.

 

A luz enfim reverberava na vidraça da janela e isso gerava o eco. Sim, sem o eco nada há. Não existe movimento em mim sem que seja dentro do eco, é meu guia, meu vigia, aquele que em tudo está. Em tudo penetra. Necessito levantar, uso as reverberações solares que batem no vidro e criam um campo de atrito para poder me esgueirar.

 

Na pia ao tocar da água na louça o som se propaga pela concha aparadora, se expande, bate no espelho, dele na retina dos meus olhos, penetram na minha alma. Ameaçam minha calma, desviam meus sentidos. De minha caixa de ressonância forma-se um eco a repercutir pelos prédios. Desce avenidas, cria vias, caminhos, becos, encruzilhadas, ruelas... Desvios. Não existem placas, estas teriam de ser sólidas, mas no universo dos ecos entrecruzados nada é sólido, tudo é fluido, tudo flui à velocidade do som.

 

Apresso os encaminhamentos, não posso perder o tempo das ondas no espaço, se perder... Me atraso, ou talvez nem chegue, pode ser que me encaminhem para outras paragens, cenários diversos, afinal o universo é muito extenso e as vias por onde possam fluir as ondas são infinitas. Isso me conforta me apresenta a possibilidade de eterno.

 

Na rua a menina de pelos verdes sinaliza algo em minha direção, mas seu som é direto, necessito aguardar o delay, a reverberação, isso pode ser perigoso. Agachei-me rápido, desta vez deu tempo, o avião passou a dois dedos de minha cabeça. Um ser estúpido este avião, insiste em voar à frente do eco, voa no oco, no vácuo... O seu destino é previsível, o nada.

 

Vão com muita pressa em direção a algo que pertence ao futuro, portanto... Não existe. Porque ir de encontro ao que não existe, se tanta vida há nas entranhas do som? Por vezes passo a duvidar de meus próprios semelhantes, afinal aonde vão?

 

Necessito distinguir entre este universo de sons reverberando a tua voz, necessito de total concentração. No momento tudo o que me chega é a aproximação mais que veloz do meu transporte. Faz tempo que o sol bateu na minha janela, e ainda estou em meio a este turbilhão de caminhos sonoros sem conseguir ultrapassar a linha do tempo.

 

Diz um grande e magro poeta, com muita propriedade, que “a luz chega antes do som, e o som chega antes de mim”*, claro, afinal sem o entrecruzar das forças reais a imagem não se concretiza, não se materializa. O sólido só existe para ser transpassado pelo som, pela luz. São estas as vertentes reais que podem transformar o que existe em mim em algo inteligível: o amor, a dor, o triste, a raiva, a alegria. O que seria de todas estas coisas sem o eco do som, das cores?

 

Sim. Simplesmente eu não existiria, nem você, meu amor.

 

Roger Ribeiro

26 de agosto de 2015

* poesia de Ronei Jorge Martins.