sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Uma Pedra que não Rola



A Pedra dos Pássaros é, como diriam os antigos, um lugar bastante aprazível. A partir de meados da década de 1970, o local passou a ser como uma embaixada do universo, um terreno onde as leis de Estado não se impunham e vigorava, em uma desordem funcional e orgânica, a “Lei da Natureza”.

Ali foi realmente a minha primeira experiência de uma sociedade alternativa, para mim, pelo menos, bem antes do Porto da Barra. Convivíamos em perfeita harmonia, nós meninos que íamos saborear as vertigens dos mergulhos, lá aprendi a dar o meu “espetacular Salto Canivete”, por exemplo, com a turma mais velha que já ia desvendar as tais das ondas sensoriais de que falava o Castaneda. Isso claro até a Rita Lee fazer uma música que alertou a Lei sobre o “pasto de Nazaré das Farinhas”.

Mais isso é outra história que outro dia narro. Quero chegar é em algo infinitamente mais recente, portanto saindo dos setenta do século passado e chegando ao fechamento da primeira década do século XXI, senti na manhã passada uma saudade atroz do friozinho na barriga do mergulho da Pedra dos Pássaros na maré baixa.

Assim sendo, obedeci ao meu instinto, saudosista e aventureiro, e rumei à micro região insular incrustada entre a praia de Santana e a praia da Paciência. Era uma manhã de sol e eu no início das férias buscava faxinar o meu interior com essas aventuras que, por bobeira pura, um dia deixamos de fazer com a regularidade que deveria.

Desci do ônibus e me encaminhei à praia da Bacia das Moças aonde cuidadosamente procurei uma daquelas locas de pedra para guardar, bem escondidinho, minha camisa e minha sandália japonesa, os tempos são outros, não há mais a possibilidade de deixá-las aleatoriamente sobre as pedras ou areia. Bom, não adianta ficar lamentando os tempos idos não é mesmo?! No passado, também, nem tudo eram flores.

Guardei meus pertences e TCHEBUUUM-THUÁÁÁ! Joguei-me nas águas verdes do mar, nadei até a referida Pedra e sem dificuldade reencontrei as entranhas que formam uma escada natural para se subir ao seu topo. Ah! Sentia-me um menino novamente, a alegria se abatia em minha alma como há muito não sentia! Aquele mesmo vento fresco na pele molhada... Dirigir-me à plataforma de onde se mergulha, olhei para baixo, senti uma profunda vertigem. Pensei: é melhor não olhar.

Dei quatro passos, bem contados, para trás, era a manha para tomar o impulso para conseguir a altura necessária para o “Salto Canivete” e quando já ia disparar a corrida, uma voz possante se apresentou.

- Você reparou que a pedra não é mais branca?

Olha, eu juro por tudo neste mundo que meu coração saltou da boca, correu os quatro passos voou em direção ao mar verde profundo, subiu tudo novamente e retornou ao meu peito. Estava estatelado, sólido, frio como gelo sob um sol escaldante. Após este infinito segundo, olhei lentamente para o meu lado esquerdo e, no local onde se pescava chicharro, vi um homem negro alto, forte que a julgar pela sua longa barba e cabelos, ambos brancos, deveria ser já muito idoso, afinal, salvo raras exceções, a etnia negra custa a ficar grisalha.

Como um raio passou uma idéia divertida em minha mente - qual seja: será que ele está aqui desde aquela época? Sua voz cessou minha idéia.

- Você não percebeu não é mesmo? Acha que isso não quer dizer nada?! Você só quer saciar sua adrenalina, ficar segundos no ar entre o céu e o mar até entrecortar as águas em um movimento de parábola, não é mesmo?

- Bem... (Tentei respondê-lo), não é bem assim, tenho uma forte ligação com este local...

- É! Mas se quer percebeu que a pedra hoje é toda escura. Procure, veja se você acha?

- O quê? O quê eu deveria achar?

- Muita coisa! Todas as coisas que faziam com que as aves marinhas aqui viessem repousar, acasalar, descansar e se alimentar.

- É verdade... A Pedra era toda pintada de branco, era o cocô dos pássaros marinhos que aqui habitavam.

- Claro! Por isso se chama Pedra dos Pássaros e não “Pedra dos Imbecis”.

- Calma homem, não precisa se exaltar, muita coisa mudou, inclusive eu e, provavelmente, você também.

- Sabe; eu tenho quase certeza de que elas desapareceram daqui por falta de histórias, ninguém mais vem aqui narrar suas histórias. Sentar olhando para o infinito e narrar aventuras às vezes reais às vezes meras quimeras. Vamos meu rapaz conte o que acabou por te trazer de volta a este local!

- (Fiquei encabulado com a incisiva convocação, mas pensei, não é que ele tem razão! Existe realmente algo que me fez vir aqui para degustar... Algo que ocorreu ontem). Enfim olhando aquela criatura sem saber se era real ou não falei: é bem estranho...

- Estranho?! (falou mostrando com os braços o universo que nos cercava).

- (Tomei coragem, fiquei de pé e, olhando para o infinito do mar iniciei) Era uma festa de aniversário, tudo era bem formal: mesas redondas com toalhas brancas acetinadas, senhores com roupas sociais tensas, senhoras em seus longos cheios de laços, nas costas, ou na cintura, ou nas laterais, cabelos pintados e moldados por horas de salão, mesas com salgados variados visitados de forma regular por crianças vestidas de adultos, mas correndo e berrando como crianças. Ou seja, era uma festa de aniversário de adultos muito adultos.

Do nada percebi um vulto leve, muito mais leve do que tudo que havia vivenciado naquele local até aquele instante. Realoquei o olhar e vi: era uma elegância em total desalinho. Uma imagem de urgência, algo que deveria estar lá 15, 20 ou 60 minutos à frente.

A imagem impôs sua leitura e esta só poderia ser feita no sentido sul / norte. Um sapato de salto alto furta-cor que possuía vida própria a conduzir aquelas pernas finas e longas que quebravam a velocidade do percurso longilíneo na barra de um vestido que belo e novo aparentava ter saído de seu guarda roupa do período de debutante.

Sim! Era isso mesmo, da ponta daquele salto à barra daquele vestido, tudo fazia parte da época do seu quarto cor de rosa cheio de bichinhos de pelúcia. A cor do quarto mudou o espaço entre a sola do salto e a barra do vestido havia ficado enorme, poucos bichinhos ficaram e a maioria dos monstros dos tempos idos se evaporou, mas algo ficou.

O curto vestido transformava-a em uma longa pequena menina o que era reforçado pelos seus estreitos ombros realçando a longinilidade de seus braços que, por vezes se faziam finos e delicados, cálidos até, já outras vezes, tornavam-se firmes, rígidos como uma ponte pênsil, eram juntas poderosas que se encerravam em mãos finas, elegantes como uma lâmina, como o movimento do spalla da orquestra.

Tudo enfim convergia para aquele rosto longo, de fortes traços, nada de sutileza, nem de leveza, era uma fisionomia que se impunha pela força e ornando esta força indomável, uma cabeleira completamente sem linho, sem forma. Era como se aqueles cabelos tivessem caído do espaço sobre aquela cabeça sem nenhuma ordem sem nenhuma harmonia tonal. Era a atonalidade da atonalidade.

Era incrível como aquele conjunto completamente dissonante irradiava um frescor, uma velocidade, uma ruptura urgente. O inquietante transitando por todos os espaços diametralmente opostos a ele, explodindo em um infinito avesso ao bom-gosto do imposto pelo ambiente.

Ela se impôs à própria festa. Enfim havia algo a se comemorar... Imaginei ser assim o ar respirado por Leila Diniz, Luz D’El Fuego, Elvira Pagã. Tudo parecia mínimo aonde ela era o máximo.

- E você, assustado não lhe disse nada. Ficou suspenso no ar como no momento em que seus pés se desprendem da pedra e sua cabeça não toca a água.

- Talvez, com esse mesmo frio na barriga, como um menino vendo a imensidão do mar.

- Vá voe da pedra para a água.

Quando eu voltei e subi novamente na Pedra dos Pássaros, o velho negro já não estava lá, porém alguns pássaros marinhos pousavam, disfarçando - assim meio de lado - se esgueirando, fingindo não se dar conta da minha presença.

Roger Ribeiro.
12 de janeiro de 2010