quinta-feira, 24 de maio de 2012

Cocorocô! Feitiço dobrado






- Não tem pechincha não, o preço é este. Nem mais nem menos!

- Mas meu amigo...

- Que amigo? Como assim? Diga aí, qual o meu nome? Onde eu moro? O nome dos meus filhos? Vá diga! Você não disse que é meu amigo?

- É modo de falar! Só queria dizer que está caro.

- Então não compre. Simples não é mesmo? Vá comprar em outra freguesia. O preço é este. Só falta agora você querer que eu retire as penas e corte as unhas do bicho pra ficar mais barato. É cada um que aparece aqui.

- Meu caro...

- já te falei que não é caro, é o preço. Veja você, aonde mais acharias um galo vermelho com estes detalhes em dourado nas pontas, peito forte, postura altiva e este olhar de que já anunciou centenas de alvorecer por um precinho deste? Diga aí, vá! Onde?

- Olha àquela senhora ali adiante me falou que iria buscar um pra mim por quase a metade do preço. O problema é que só chegaria à tarde.

- Então o senhor vai naquela barraca ali, tá vendo?

- Qual?

- Aquela com a placa Cantinho do Cosme... Está vendo agora? Pois, ele é como se fosse meu irmão, você senta lá toma umas quentes, rebate com umas geladas, come a tripa frita, que por sinal é melhor da feira, joga uma prosa fora com uma ruma de desocupado que freqüenta, todo dia, o local e quando der a hora você vai lá buscar seu galo. Mas tô te avisando, quando botar na ponta do lápis as doses de “meladinha”, as geladas, as voltas de tripas e o galo moribundo que vais comprar, verás que gastou o dobro.

- É... Desta vez tenho que te dar razão. Mas você bem que poderia fazer um precinho melhor né?

- Olha no galo num dá não, mas se quiser levar aquela galinha branca cotó ali... Dá pra fazer um precinho pra você.



Parou olhou a tal da galinha e não gostou do que viu. A bichinha tava toda estropiada, a situação era tão grave que se pusesse um ovo certamente teria a gema roxa!



- Olha aquela galinha deveria está na UTI do galinheiro, num serve nem pra fazer um ensopadinho com chuchu. De mais a mais meu querido...

- Como é que é?! Querido? Ôôôh Jangada, o cara aqui disse que eu sou o querido dele! Pode?

- Hummmmm Cráudio, ta querendo treta! Quero ser padrinho viu!

- Olha aqui meu cliente, sim cliente, freguês, não venha com intimidade não. (olhando pra cima como se fizesse uma oração), é mole? Chego aqui as quatro da matina, alimento os galos, galinhas, pintos, pombos, porcos, bodes e até os habitantes agregados (gatos, cachorros, bem-te-vis e tudo mais) e no meio da manhã me chega este sujeito, sei lá de onde, me chamando de amigo, de querido e, acho que, se ficar mais um pouquinho vai querer até beijinho... Eu mereço. Ôh Jangada, eu dei bicuda no ebó de Yemanjá?



A gargalhada foi geral, a feira praticamente havia parado para apreciar o duelo entre Cráudio, o freguês e no meio de tudo isso, o impávido e cobiçado galo (mas... Sabe que olhando ele assim de perfil é realmente mais garboso do que o da embalagem de azeite de oliva), seria ele então, vamos dizer, o Chantecler  da Feira de Água de Meninos!



Já sem graça, mão no bolso e sem argumentação possível, resolveu pagar o preço e levar o nosso Chantecler, que devidamente amarrado pelos tornozelos (galo tem tornozelo?), asas e com o afiado bico embalado em papelão foi entregue ao freguês com votos de felicidades e boa sorte.



- Aí freguês! Pra você voltar, passa lá na banca do Cosme e toma uma “cangibrina” por minha conta, diz que foi o Cráudio que mandou.



Saiu assim meio contrariado, mas não deixou de passar no Cosme, afinal seria uma chance de melhorar o dia. Tomou a “cangibrina”, inclusive ficou sabendo que era o “carro chefe” da banca, conversou sobre amenidades tipo: se era época de caranguejo gordo? Se o quiabo estava duro? Se podia confiar no fígado de boi que se vendia na feira? E outras coisinhas mais. Despediu-se e foi saindo quando meio atordoado, e já fora da banca, olhou ao seu torno e:



- Cadê meu galo? (gritou).



Entrou rápido na banca do Cosme. Olhou em todos os cantos, até no teto improvisado de plástico procurou e, nada. Aonde raios havia se enfiado o Chantecler?



- Seu Cosme, o senhor não viu meu galo? Entrei aqui com ele debaixo do braço?

- Seu menino, vou te dizer uma coisa: “ômi” que perde o galo ta perdido pra sempre. Pergunta ali prá Thiana Doida o que aconteceu com o saudoso Tainha quando perdeu o galo? Aliás, pergunta não, é melhor nem saber. Dizem que a ignorância Deus perdoa né?

- Mas seu Cosme, eu tava com ele aqui agora mesmo?!

- Agora mesmo meu fiu! Mas tem um minuto que você me perguntou pelo galo?

- Sim... Ah meu Deus! Agora mesmo é maneira de falar... Mas na hora que entrei a mando do Cráudio pra tomar a cangibrina, o galo tava debaixo do meu braço.

- Reparei não... Ôh Alice você viu se entrou algum galo aí na cozinha?

- Aqui não Cosminho, imagina se galo vem ciscar em meu terreiro? É ruim heim!

- Meu querido eu tenho de fazer um trab...

- Êpa, pêra lá! Que história é esta de meu querido? Eu nem te conheço? Cráudio, êh Cráudio! Que “ômi” foi esse que tu mandaste prá cá?

- Meu amigo... Pelo amor de Deus, querido é maneira de dizer...

- Amigo? Hum, já entendi tudo, vai querer tomar mais cangibrina e fiar né? É sempre assim... Quando vem com essa conversinha de meu amigo... Que amigo o quê? Eu nunca te vi mais gordo “ômi”.



- (Ai! Tudo de novo não, pensou) Escuta seu Cosme, preciso levar este galo o mais rápido possível se não minha mulher me mata.

- Xiii... Perdeu o galo na feira, a “mulé” vai ficar sem o feitiço e o “ômi” vai ficar no ora veja! Quer um conselho “ômi”, esquece. Senta aí, toma uma “cangibrina”, umas geladas, come uma tripinha frita de primeira qualidade e deixa o vento passar se não o feitiço pode se voltar contra você.

- Será?

- ôxi! Tô nisso desde menino, pode acreditar.

- Então... Manda uma dose dupla e uma cervinha bem gelada... Ah! Manda a tripinha também.



Daí em diante o sol rodou, dezenas de pescadores, vendedores, compradores, turistas e outras figuras inclassificáveis passaram pela banca do Cosme, rolou prosa de tudo: mulher, futebol, preços, produtos, mar, vento, raios e trovões... Rolou de tudo. A tarde já ia longe quando adentrou o Cráudio.



- Cosme tudo bom? E aí Alice tô com fome!



Da parte interna da banca que ficava separada por uma divisória de tecido colorido e sujo, falou Alice:



- Vai demorar um pouco seu Cráudio, o galinho era atleta, duro que só.



Vocês não vão acreditar, mas eu que tava vendendo meu caranguejo entre as bancas do Cráudio e do Cosme, juro que vi: algo explodiu no ar e voou pedaço de feitiço pra tudo que é lado.

Agarrei as cordas dos bichinhos e dei o pinote... Eu heim! Num volto lá nem que galo crie dente!



Roger Ribeiro

24 de maio de 2012.

         

terça-feira, 8 de maio de 2012

Tu separarás a terra do fogo e o sutil do espesso**



Para meu amigo que sofre do coração.


De domingo a domingo esteja chovendo ou ensolarado, não importava, lá estava ela impávida sobre a Pedra do Peixe ao noroeste-próximo do Farol da Barra, poucos a viam. Todos os dias centenas de centenas de pessoas passavam passeando, correndo, de automóvel, bicicleta, skate, de mãos dadas, abraçados, absortos, loucos, enfim de tudo um pouco, mas poucos ou quase nenhum a enxergava, parecia coisa resguardada aos poetas, aos estetas ou aos aluados.



Apesar de tudo isso, estava ela, sempre de uma elegância impar com seus vestidos de levíssimos tecidos de florido bordados à mão de tamanha beleza e delicadeza que só poderiam ter sido incrustados naquele tecido por mãos de fadas, não qualquer fada, mas do tipo das que criaram o vestido da Gata Borralheira. Os pés descalços confundiam-se com o brilho do sal nas pequenas poças d’água que formavam oásis para pequeninos peixes na escura e inabalável rocha negro-chumbo.



Por solfejar intermitentemente uma linda melodia, aqueles que não a viam, mas que a ouviam, costumavam chamar aquele local de “morada das sereias”. Os que viviam do mar temiam; nem as ondas violentas das ressacas de março ousavam tocar-lhe, apenas a fresca brisa nordeste lhe acariciava e fazia flutuar seus imensos fios de cabelo azuis que, os contadores de histórias desta terra, desde tempos de Monan e Maire, portanto anterior à chegada de Cristo ou Oxossi por estas terras, narravam que as pontas destes cabelos apagavam as pegadas das virgens nativas nas areias de uma das Ilhas mágicas, que se petrificou, saindo do hiato entre a Terra sutil e a Terra sólida com a chegada de Martin Afonso de Souza que a denominou de Ilha de Tinharé.



Não se tratava de uma jovem, os sulcos em sua face demonstravam que ampulheta havia virado por várias vezes, seus olhos negros confundiam-se com as Marias-Pretas, rápidas e abundantes nas poças que rodeavam aquela pedra, conseguiram permanecer abundante por terem pouca carne e muitas espinhas, o destino lhes foi benevolente. Enquanto o sol brilhava atinha-se a terra, lia com muita atenção a fisionomia de todos que passavam. Nada dizia. À noite voltava-se para o horizonte marítimo e postava-se como em oração. Nada dizia.



Apenas quando os poucos que a enxergava chegavam e mansamente sentavam ao seu lado parava de solfejar e atinha-se de corpo e alma ao que lhe era narrado. Jamais se apressava em emitir parecer, o tempo lhe era grande aliado, sabia ouvir os sinais da natureza, não bastavam as palavras, era necessário ouvir a brisa reverberar no som das palavras, o sol estalar na pele do narrador, havia muitos sinais que iam além dos limites impostos pelo que seus bloqueios mais sutis permitiam falar, e era exatamente ali que podiam estar os caminhos possíveis.



Por vezes sentia que o vento perdia a rota, sentia pelos fios dos cabelos que saiam da reta e rodopiavam perdendo a cor azul-água corando-se de verde-esmeralda que a emoção daquele corpo estava confusa. Os pássaros marinhos não ousavam se aproximar muito menos piar nestes momentos, de longe observavam as mudanças melódicas, aliás, do Morro Ypiranga ouvia-se:  


“Quando o riso se perde da face
E a tristeza invade
Entre o céu e o mar (...) / as gaivotas (...)”*

Em um destes momentos, quando o seu acompanhante iria começar a narrativa, levantou a mão pedindo-lhe que nada dissesse, colocou levemente os dedos sobre seus lábios e fechou os olhos para poder ouvir o vento e o sol naquele corpo, os odores que surgiam naquele momento, a reação dos peixes e das aves, foi neste momento que me viu voando entre o sol e seus olhos, sombreando-os, sorriu largo para meu voar! Voltou-se para o seu acompanhante e baixinho lhe falou:

- Amedrontamo-nos com o só por temermos ter de nos aceitar.

Seus cabelos retornaram à rota, agora em um azul-marinho vivo. Seus longos cabelos nas pegadas nativas – o tempo.

Roger Ribeiro
08 de maio de 2012.
*Vôo Rasante – Lui Muritiba
** Hermes