quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Acontece todo dia


É algo incompreensível! Falei alto olhando para os próprios sapatos. Até parece que estou ficando louco. Veja você (agora falando com o Barba que havia retornado do banheiro), Ela diz que não é nada disso e que tudo é fruto de minha fértil imaginação, mas não é o que os fatos mostram! Você mesmo é testemunha, quantas vezes você presenciou, porém não tem jeito, é sempre a mesma conversa, a insensibilidade é sempre minha e fim de papo, fazer o que?

Na verdade é uma coisa bem diferente... Não há aquela relação de querer fazer junto sabe?

- quer um pastel? Perguntou o Barba.

Sim, me veja um de palmito, por favor.

Escuta, sei que já não agüenta mais esta conversa, mas eu preciso descobrir como funciona esta coisa, ou melhor, como funciona aquela cabeça?! É quase impossível entender, é como se de repente desse um curto circuito...

- Ora, ora meu velho amigo, você nem parece que anda com esta bota velha! Veja bem quantos caminhos você já andou, quantas loucuras já destrinchou, tens estrada o suficiente para saber que não funciona assim, aliás, nunca - em tempo algum - funcionou. Vamos deixa disso, hoje tem o show daqueles dois violonistas que você gosta, vou com você, tomamos um trago e passaremos uma noite bem mais divertida do que nesta birosca, comendo pastel.

Enquanto Barba falava, senti que alguém mais nos observava, não deu nem tempo de procurar, o procurado se apresentou:

- Boa noite, sou Marco Antônio, mas todos me chamam de Nuvem, acho melhor, pois Marco Antônio tem som bélico, não gosto, prefiro o nome pelo qual sou conhecido, ele é muito mais leve, fluido!

Confesso que fiquei meio assustado com a abordagem, mas a profunda calma e complacência do Barba me tranqüilizaram.

Sim acho que já o vi aqui outras vezes.

- Claro que sim, tá vendo aquela bicicleta incolor metálica ali encostada? Pois, sempre estou com ela, outro dia mesmo você quase tropeçou nela, vou-te dizer, foi por um triz.

- Ola rapazes, tudo bom?

Olhei em direção à voz e... Era uma linda jovem de cabelo preso na nuca e vestida de bailarina. Respondi: olá! Sim tudo corre muito bem, acho.

- Sabe, falou ela olhando fixamente para nós três, tenho de ensaiar o meu número para a apresentação de amanhã, mas os meus músicos não vieram me deram bolo, será que vocês podiam fazer o favor de tocar o tema para mim?

- Gostaria de todo o coração, meu anjo, mas não sei tocar nada!

- Claro que sim, responderam simultaneamente o Barba e o Nuvem, porque não? Será um prazer!

- Poxa muito obrigada, vocês são estrelas que o destino colocou no meu caminho.
Pegou sua enorme bolsa (não sei por que mas dançarinas sempre andam com bolsas enormes)e de dentro dela começou a retirar coisas, primeiro um violino, que entregou ao Barba, depois um bandolim, que foi alojar-se nos braços do Nuvem e por fim um trompete prata brilhante que grudou em meus lábios. Um detalhe, sem importância, mas que não pode faltar: jamais em minha vida pus sequer uma daquelas flautinhas doce de plástico na boca.

Barba começou a tocar como se ensaiasse com ela desde que o samba é samba, Nuvem então chegou a sugerir que se trocasse um acorde por outro em determinado compasso de uma música que nunca nem eu, nem nenhum dos dois havia se quer ouvido. Mas lá estávamos nós em meio ao bar trocando informações sobre tons, dinâmicas, pausas, fugas, stacatos e afins.

Do nada, Dona Camélia, a sempre mal humorada esposa do Bigode, dono do bar, tirou de debaixo do balcão um surrado teclado cor de rosa e começamos a tocar.

Todos se afastaram e a nossa menina começou a bailar no meio do salão, era divino, eu solava no trompete como se minha vida intera tivesse feito isso, Nuvem, Camélia e Barba, sorriam e nem se olhavam, o tema saia com uma naturalidade magistral.

De repente as luzes foram se apagando e apenas um feixe dela se lançava ao centro do salão, nossa menina, agora vestida de um traje espanhol pesado e denso, escondia metade do rosto em um leque de seda negro, aproximou-se de um microfone que sei lá de onde apareceu!? A banda lançou um acorde de preparação longo no qual larguei a sustentação de um si sustenido na oitava mais alta que consegui tirar do meu prateado instrumento. Veio então a voz possante, estremecendo todos no bar:

Cuanto te ame, puedo decir
Que jamás a outra mujer,
Podre querer como a vos.
La juventud no volverá nunca más
Y a La ambición ya puedo darte El adiós
Que tiempo aquel,
Hora fugaz que se fue
Todo El valor de uma pasión conocí.
Cuantas feliz frases de amor escuche,
Que siempre yo, sumiso y fiel te crei
Lãs carícias de tu manos
Tu palabras de ternura,
Dejaron cruel amargura,
Porque nada fue verdad
Bejos falsos de tu boca, juramentos, ilusiones,
Mataron mis ambiciones, sin um poço de piedad.
Pero, por El mal que vos me hiciste,
Solo dice mi alma triste
Mentirosa, mentirosa
Todo lo que me hás echo pasar,
Penas ilanto, con outro lo has hecho pasar,
Ya encontrarás quien um amor fingirá
Y entonces si, vas querer sin mentir has de ser vos La que AL final llorará
Ha de sangrar tu corazón AL pensar,
Em todo El mal que hicistes a mi ilusión
Y hasta AL morir, hasta El morir, mirarás
Los ojos Del fantasma de tu traición
Pero, por El mal que vos me hiciste, solo dice mi alma triste,
Mentirosa, mentirosa
Todo lo que me has hecho passar
Penas lanto com outro lo has de pagar*


Era algo mágico, olhava para barba e as lágrimas desciam sem parar, não conseguia me conter. Ninguém dizia uma palavra, reparei que estavam todos de olhos fechados, só eu via aquela menina, tão sombria naquele momento, interpretando com tamanha força aquele tema tão doído que o mundo parecia ter parado. A Terra parou de girar, meu coração parou de bater.

O dia foi amanhecendo, encostei por um minuto a cabeça no balcão e quando levantei, já não havia nada em volta, nada. Procurei meu trompete, a menina, o Nuvem, nada, nada... Não mais havia nada, somente eu e o barba sorrindo para mim.
- Vamos (falou)

Sim, não disse mais nada, apenas olhei para o expositor do bar e vi o pastel de palmito, olhei fixamente para ele e por um momento, juro, o vi dando uma imensa gargalhada da minha cara!

Roger Ribeiro

25 de novembro 2010.

*La Mentirosa – Carlos Gardel

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Sem tensão heim!


O despertador avisou, berrou, triliííííntou até ficar rouco, era hora de acordar. Bambo olhou em direção aos ponteiros, eram 6:00 horas de uma manhã já quente, uma nuvem ao longe indicava que em alguma hora poderia cair uma chuvinha rápida daquelas que só servem para evaporar e piorar em muito a situação. Não havia jeito, o mundo estava de cabeça para baixo e nem mais a primavera era respeitada, afinal cadê as borboletas? Sim! Onde estavam elas que tão fartas eram nas frescas primaveras e agora, creio, mal nasciam e o calor já derretia suas asinhas, borboletas sem asas, que coisa ridícula.

Sem outra opção levantou-se e calculou todo o tempo de que dispunha até sair de casa, era um ser de cálculos, gostava de calcular tudo milimetricamente, a sorte era que o que possuía de calculista possuía também de anárquico senso de humor, aliás, todos acreditavam que só calculava tudo para poder rir muito dos erros dos cálculos. Vivia se atrasando aos compromissos, sentia uma brisa úmida e calculava que dali a, no máximo, duas horas iria chover... Que chovia, chovia! Mas, dali a umas vinte e quatro horas!

De tudo isso ria muito e não cansava de contar a todos os seus erros de cálculos mais recentes, errava tanto que só de filho já estava no sexto, mas dizia que não erraria mais. Encontrei um dia com Maria, a sua gentil esposa, e perguntei-lhe (meio na galhofa): “e aí Ma, quando vem o sétimo?” Ela respondeu: “não, agora ele não erra nunca mais nos cálculos, operei, fechei a “fábrica””. Rimos muito, e ela me contou que agora a diversão dele era calcular os astros para acertar o destino profissional dos seis rebentos! Fiquei na dúvida se ela acreditava ou zombava do que dizia.

Dirigiu-se à cozinha e metodicamente lavou as louças da noite passada e produziu um café da manhã para os sete - a mulher e os seis filhos - cozinhou banana da terra, aipim, fritou ovos mexidos, esquentou leite, chocolate, pão, queijo, atum... Tudo sobre a mesa junto aos pratos e talheres. Para ele mesmo, só um café quente ingerido em pé e já com a toalha no ombro.

Banho, roupa leve, beijo na testa de Maria e... Rua, lá se foi ele para um dia importante, aliás, um dia esperado, aguardado com apreensão, com uma ansiedade daquelas que parece que não irá chegar nunca, mas chegou. Era o dia, após alguns meses das provas do concurso no qual a primeira colocação lhe valeria um pouco de tranqüilidade à mente e ao coração de alguém que viveu até então no universo draconiano do setor privado.

Entrou no velho e companheiro carrinho e dirigiu-se à Junta Médica do Estado para apresentar os resultados dos exames, que com certa dose de felicidade de dever cumprido, foi pelo caminho lembrando da “odisséia” que foi as duas semanas anteriores para fazer aquela lista interminável de exames:
a)sangue, esqueceram de dizer-lhe que deveria ter ido em jejum de doso horas (teve de ir duas vezes);
b)PSA, esqueceram de dizer-lhe que deveria ter, no mínimo, uma abstinência de 74 horas (mais duas vezes);
c)Sumários, esqueceram de dizer-lhe que deveria ser a primeira urina do dia, pois multiplique também por dois, começou a achar que os múltiplos de dois dominavam a vida na Terra.

Bem, mas havia vencido! O que poderia ter sido feito em, no máximo três dias, levou quinze para ser realizado, porém para quem esperou tanto... O que eram quinze dias não é mesmo?

Chegou ao local, parou o “Demolidor”, simpático nome de seu automóvel, aliás, carro, automóvel é outra coisa, no estacionamento do supermercado que fica próximo e dirigiu-se à aguardada Junta Medica do Estado. Chegou a um centro cheio de prédios medianos e perguntou ao simpático porteiro geral que estava em acirrada disputa filosófica a respeito do Campeonato Nacional de Futebol, após uns cinco minutos se fez notar e adquiriu a informação necessária. Entrou no prédio certo e foi à atendente, perguntou se era ali a Junta Médica, recebendo uma resposta com um mero balanço de cabeça e um papel velho imundo com um número e a frase: - “sente e aguarde, chamarei pelo número”.

Escolheu uma cadeira que estivesse na mira do ventilador, sentou e olhou as horas, eram 08h30min, pensou: “beleza, sairei cedo, levo ainda hoje o apto e tomo posse!” Seria a glória... Seria!
- Número 12.
Opa! Chegou, levantou-se e voltou ao já visitado balcão.
- Os documentos.
Retirou os documentos de dentro da pasta e apresentou. Ela começou a examinar, ele aguardava e ao mesmo tempo pensava: “ela não me olhou nem uma vez... Deixa disso, se ela olhar a todos que aqui chegam irá perder pelo menos uns 10 segundos em cada atendimento o que no fim será um atraso significativo – (eis um homem de cálculos).
Eram já 09h20min, e veio a sentença:
- Falta o carimbo deste exame.
- Como? (falou tremulo).
- Falta o carimbo deste exame.
- Mas minha amiga, todos os outros tem o carimbo, olha este aqui foi feito no mesmo laboratório e tem o carimbo.
- Mas este não tem.
- Olha minha linda, (um gracejo nervoso), este laboratório fica do outro lado da cidade...
- Só o que posso fazer por você é garantir que quando retornar não precisará pegar esta fila novamente.
- Tá bom, fazer o que né? (descobriu neste instante que não haveria argumentação possível para demovê-la).

Entrou no carro - calor absurdo, engarrafamento, atravessou a cidade e foi ao laboratório. Entrou esbaforido falando:
- Por favor, preciso de um carimbo neste exame!
A atendente pegou e respondeu:- “sinto muito, aqui é apenas recolhimento do material, as bioquímicas ficam na outra sede”.
Ele nem sabia que havia outra sede:
- e onde ficam as bioquímicas?
- Na sede da Pituba!
Ele gelou, andou uns quinze quilômetros só de ida e a tal da sede estava a apenas uns dois quilômetros no máximo da Junta Médica. Saiu “voando, atravessou tudo novamente, chegou à sede certa, pegou o carimbo e correu para a Junta.
Era meio-dia e vinte quando chegou, dirigiu-se a atendente (a mesma), e disse-lhe:
- É hora do almoço né?
- Não senhor, aqui não paramos.
Maravilha! (pensou) A sorte havia mudado, devem ser os cálculos astrológicos entre a manhã e a tarde. Entregou novamente os exames que foram vistoriados, aprovados com um leve balançar de cabeça e, ainda sem olhar para ele, entregou-lhe outra ficha numerada e disse: - “dirija-se ao quarto andar à esquerda e apresente a ficha”.
Realmente não havia interrupção para o almoço, mas das seis médicas que periciavam até as 14h30min só ficava uma que creio, havia perdido o sorteio.

Às 16 horas foi chamado, estava faminto, não havia almoçado. Muito suado, calculava o que havia passado entre o acordar e aquele momento histórico.
- Boa tarde, tudo bem?
Perguntou-lhe a médica, que como não viu entrar, presumiu ter sido ela que havia perdido no sorteio. Sabia que tinha de conter a fúria contra a burocracia que lhe massacrava o ser. Respondeu-lhe tentando ser gentil e alegre:
- Tudo bem!... Tirando a fome!
Ela sorriu, perguntou que horas havia chegado e mais um monte de coisas bobas, enquanto vistoriava e analisava os exames. Chegou à conclusão que tudo estava ótimo... Só faltava o último passo, medir a tensão.

Puf, puf, puf, apertou o braço dele e...
- Nossa sua tensão está muito alta!
- Minha senhora, com todo respeito, mas depois de tudo que passei neste calor infernal, sem almoçar, sem nem mesmo beber um copo d’água se minha tensão não estivesse alta eu estaria morto!
Ela não gostou. Levantou, olhou-o de cima para baixo e decretou:
- preciso de um parecer exato de um cardiologista, procure o de sua confiança faça os exames e depois volte.
- Mas...
- Boa tarde senhor.
Pensou em voar no pescoço dela, em desistir, em pular pela janela...
Pegou o veredito, botou debaixo do braço e saiu, esquivando-se, apressado, temeroso de que o sol, enfim, caísse-lhe sobre a cabeça! Já na rua... Recebeu a do cutelo:
- Aê tio, sem tensão... Dá um trocado prá completar meu almoço?

Roger Ribeiro.
16 de novembro de 2010.