sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Pega! Não, deixa voar.


Em agradecimento a 2010.

Não é nada assim impossível, muito pelo contrário é uma caminhada de, no máximo, um quilômetro bastante agradável, principalmente porque havia se resguardado do sol escaldante e uma brisa muito fresca se fazia presente, arejando-lhe a fronte, tornando tudo ao redor em uma paisagem típica de filme Espanhol (pós surrealistas, claro).

Ao seu lado esquerdo o mar encrespado pelo vento nordeste baixo típico do fim de tarde, deixava-o com uma cor de azul fundo encorpado, era água se arremessando para todos os lados, parecia que o grande vale onde se aloja o mar estava pequenino para sua fúria. Os olhos andarilhos observavam a fúria com complacência, no fundo da retina sabia quantas e quantas vezes já havia passado pela mesma sensação da cavidade do seu peito ser mínima para a fúria de sentidos que afloravam.

Os passos eram lentos, porém firmes, os ouvidos atentos conseguiam, com raros erros, identificar o modelo do automóvel que se movia veloz à sua direita. Divagava nos pensamentos imaginando como seria morar em Nova York. Estaria neste momento perto do ano novo e certamente viveria uma experiência que não conhecia, afinal como seria o dia-dia em uma cidade coberta de neve? Como será acordar, sair, se transportar ao trabalho? Seria tudo normal? Não conseguia sentir a sensação exata do que seria isso.

Sabia apenas de uma coisa; não tinha vontade de passar o fim de ano lá como turista, não tinha o menor gosto nisso, para isso preferia passar o período nas areias do Arpoador na festa de ano-novo mais autêntica e natural que conhecia.

Na verdade pensava era como se vive na maior cidade da civilização Ocidental - ela sob eu sobre a neve? Era este cheiro, este tato, este gosto que queria sorver. Será que eles param em um quiosque e pedem um café bem quente? Será que há quiosques?

Seu cérebro estava de tal forma dominado por estas curiosidades que o caminho tornou-se uma paisagem sem registro, já não percebia o que estava à sua volta, não percebia mais nada! Estava dominado por seus pensamentos, parecia que tudo aquilo se decifraria a alguns metros à frente. Esqueceu que estava de calção de banho, camiseta regata e sandália de dedo, não percebia que se realmente estivesse a metros de seus pensamentos, estaria em sérios apuros com seus dois reais que levava para a água de coco, estaria enrascado, ou melhor, em uma gelada.

- Meu filho!

Era a voz de uma senhora sem dúvida e esta o tirou, vagarosamente, porém sem retorno, de sua quimera cerebral.

- Meu filho! Por favor...

A voz começava a mostrar certa irritação com a distração do alvo.

- Por acaso sabe me informar como chego à Quinta Avenida?
- Hã? Quinta o quê?
- Quinta Avenida meu filho! O que há com você está drogado? Necessita de ajuda?
- Nããão... De forma alguma, desculpe-me apenas estava distraído.
- Hum... Você conhece o livro “Distraídos Venceremos”?

“Ainda ontem
Convidei um amigo
Para ficar em silêncio
Comigo
Ele veio
Meio a esmo
Praticamente não disse nada
E ficou por isso mesmo”.*

Ao ouvi-la foi lentamente dirigindo os olhos que antes vislumbravam, meio turvamente, o Farol da Barra e dirigiu-se para aquela pequena senhora que lhe abordava. Ela tinha a pele morena clara e, pelos muitos anos que acumulava, a pele soltara da já inexistente carne ficando uma pele longa e enrugada sustentada por finos ossos, estava belamente vestida de Mulher Maravilha, com aquela saia de bandeira norte-americana estilizada e prendendo-lhe os prateados fios de cabelo a tiara com a estrela maior.

- Bom (falou ele recuperando o senso de real), a senhora quer ir à Quinta Avenida?
- Afii!... Eta povinho difícil sô! Pois já não te falei isso?
- A senhora está vendo aquele Farol?
- Espera, deixa-me acionar meus olhos de laser! Sim, nitidamente.
- Pois então, a Quinta fica exatamente à oitava volta do farol vermelho sobre a quina da Pedra dos Peixes.
- Ô meu filho, que Deus o abençoe... Muito obrigada.
- Não por isso, vá com cuidado.

Ela partiu, ele continuou o seu caminho como se nada tivesse acontecido, permaneceu olhando, ora em frente admirando a arquitetura do forte guardião dos “olhos do mar”, ora para as ondas que travavam a remotíssima batalha com as poderosas rochas litorâneas, sempre as imaginei como filhas de Erik o Vermelho.

Andando distraído tropeçou em algo, quase caiu, olhou para trás e viu tratar-se de uma fina e esquelética perna, assustou-se, será que a havia machucado? Olhou para o corpo que cabia àquela perna e apressou-se:

- Perdão minha senhora, estava distraído... e...

De repente reconheceu, era ela novamente! Mas como pode ser? E a roupa de mulher maravilha? Estava agora toda rota, suja... O que haveria acontecido?

- Senhora, lembra de mim? Há pouco lhe indiquei o caminho da Quinta Avenida?
- Sim meu filho, claro, você foi tão gentil! Como iria esquecê-lo?
- O que aconteceu?...
- A Quinta Avenida é linda meu filho, mas seus encantos são traiçoeiros, morei lá por tempos, desde que me indicastes o caminho, ouvi jazz, cansei de ver a bola do ano novo, porém me enamorei mesmo, foi pela maçã, perdi os dentes, mas não perdi o sabor da vida!
E você que não vejo há tanto tempo, continua andando distraidamente pela vida? O que fizeste durante o século XXI?

“(...) Fez-se enxertar réguas, esquadros
e outros utensílios
para obrigar a mão
a abandonar todo improviso.

Assim foi que ele, à mão direita,
impôs tal disciplina:

fazer o que sabia
como se o aprendesse ainda”**

-Eu?!


Roger Ribeiro
31 de dezembro 2010.

* “Arte do Chá” – Leminski
** “O Sim Contra o Sim”- trecho – João Cabral de Melo Neto.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Acontece todo dia


É algo incompreensível! Falei alto olhando para os próprios sapatos. Até parece que estou ficando louco. Veja você (agora falando com o Barba que havia retornado do banheiro), Ela diz que não é nada disso e que tudo é fruto de minha fértil imaginação, mas não é o que os fatos mostram! Você mesmo é testemunha, quantas vezes você presenciou, porém não tem jeito, é sempre a mesma conversa, a insensibilidade é sempre minha e fim de papo, fazer o que?

Na verdade é uma coisa bem diferente... Não há aquela relação de querer fazer junto sabe?

- quer um pastel? Perguntou o Barba.

Sim, me veja um de palmito, por favor.

Escuta, sei que já não agüenta mais esta conversa, mas eu preciso descobrir como funciona esta coisa, ou melhor, como funciona aquela cabeça?! É quase impossível entender, é como se de repente desse um curto circuito...

- Ora, ora meu velho amigo, você nem parece que anda com esta bota velha! Veja bem quantos caminhos você já andou, quantas loucuras já destrinchou, tens estrada o suficiente para saber que não funciona assim, aliás, nunca - em tempo algum - funcionou. Vamos deixa disso, hoje tem o show daqueles dois violonistas que você gosta, vou com você, tomamos um trago e passaremos uma noite bem mais divertida do que nesta birosca, comendo pastel.

Enquanto Barba falava, senti que alguém mais nos observava, não deu nem tempo de procurar, o procurado se apresentou:

- Boa noite, sou Marco Antônio, mas todos me chamam de Nuvem, acho melhor, pois Marco Antônio tem som bélico, não gosto, prefiro o nome pelo qual sou conhecido, ele é muito mais leve, fluido!

Confesso que fiquei meio assustado com a abordagem, mas a profunda calma e complacência do Barba me tranqüilizaram.

Sim acho que já o vi aqui outras vezes.

- Claro que sim, tá vendo aquela bicicleta incolor metálica ali encostada? Pois, sempre estou com ela, outro dia mesmo você quase tropeçou nela, vou-te dizer, foi por um triz.

- Ola rapazes, tudo bom?

Olhei em direção à voz e... Era uma linda jovem de cabelo preso na nuca e vestida de bailarina. Respondi: olá! Sim tudo corre muito bem, acho.

- Sabe, falou ela olhando fixamente para nós três, tenho de ensaiar o meu número para a apresentação de amanhã, mas os meus músicos não vieram me deram bolo, será que vocês podiam fazer o favor de tocar o tema para mim?

- Gostaria de todo o coração, meu anjo, mas não sei tocar nada!

- Claro que sim, responderam simultaneamente o Barba e o Nuvem, porque não? Será um prazer!

- Poxa muito obrigada, vocês são estrelas que o destino colocou no meu caminho.
Pegou sua enorme bolsa (não sei por que mas dançarinas sempre andam com bolsas enormes)e de dentro dela começou a retirar coisas, primeiro um violino, que entregou ao Barba, depois um bandolim, que foi alojar-se nos braços do Nuvem e por fim um trompete prata brilhante que grudou em meus lábios. Um detalhe, sem importância, mas que não pode faltar: jamais em minha vida pus sequer uma daquelas flautinhas doce de plástico na boca.

Barba começou a tocar como se ensaiasse com ela desde que o samba é samba, Nuvem então chegou a sugerir que se trocasse um acorde por outro em determinado compasso de uma música que nunca nem eu, nem nenhum dos dois havia se quer ouvido. Mas lá estávamos nós em meio ao bar trocando informações sobre tons, dinâmicas, pausas, fugas, stacatos e afins.

Do nada, Dona Camélia, a sempre mal humorada esposa do Bigode, dono do bar, tirou de debaixo do balcão um surrado teclado cor de rosa e começamos a tocar.

Todos se afastaram e a nossa menina começou a bailar no meio do salão, era divino, eu solava no trompete como se minha vida intera tivesse feito isso, Nuvem, Camélia e Barba, sorriam e nem se olhavam, o tema saia com uma naturalidade magistral.

De repente as luzes foram se apagando e apenas um feixe dela se lançava ao centro do salão, nossa menina, agora vestida de um traje espanhol pesado e denso, escondia metade do rosto em um leque de seda negro, aproximou-se de um microfone que sei lá de onde apareceu!? A banda lançou um acorde de preparação longo no qual larguei a sustentação de um si sustenido na oitava mais alta que consegui tirar do meu prateado instrumento. Veio então a voz possante, estremecendo todos no bar:

Cuanto te ame, puedo decir
Que jamás a outra mujer,
Podre querer como a vos.
La juventud no volverá nunca más
Y a La ambición ya puedo darte El adiós
Que tiempo aquel,
Hora fugaz que se fue
Todo El valor de uma pasión conocí.
Cuantas feliz frases de amor escuche,
Que siempre yo, sumiso y fiel te crei
Lãs carícias de tu manos
Tu palabras de ternura,
Dejaron cruel amargura,
Porque nada fue verdad
Bejos falsos de tu boca, juramentos, ilusiones,
Mataron mis ambiciones, sin um poço de piedad.
Pero, por El mal que vos me hiciste,
Solo dice mi alma triste
Mentirosa, mentirosa
Todo lo que me hás echo pasar,
Penas ilanto, con outro lo has hecho pasar,
Ya encontrarás quien um amor fingirá
Y entonces si, vas querer sin mentir has de ser vos La que AL final llorará
Ha de sangrar tu corazón AL pensar,
Em todo El mal que hicistes a mi ilusión
Y hasta AL morir, hasta El morir, mirarás
Los ojos Del fantasma de tu traición
Pero, por El mal que vos me hiciste, solo dice mi alma triste,
Mentirosa, mentirosa
Todo lo que me has hecho passar
Penas lanto com outro lo has de pagar*


Era algo mágico, olhava para barba e as lágrimas desciam sem parar, não conseguia me conter. Ninguém dizia uma palavra, reparei que estavam todos de olhos fechados, só eu via aquela menina, tão sombria naquele momento, interpretando com tamanha força aquele tema tão doído que o mundo parecia ter parado. A Terra parou de girar, meu coração parou de bater.

O dia foi amanhecendo, encostei por um minuto a cabeça no balcão e quando levantei, já não havia nada em volta, nada. Procurei meu trompete, a menina, o Nuvem, nada, nada... Não mais havia nada, somente eu e o barba sorrindo para mim.
- Vamos (falou)

Sim, não disse mais nada, apenas olhei para o expositor do bar e vi o pastel de palmito, olhei fixamente para ele e por um momento, juro, o vi dando uma imensa gargalhada da minha cara!

Roger Ribeiro

25 de novembro 2010.

*La Mentirosa – Carlos Gardel

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Sem tensão heim!


O despertador avisou, berrou, triliííííntou até ficar rouco, era hora de acordar. Bambo olhou em direção aos ponteiros, eram 6:00 horas de uma manhã já quente, uma nuvem ao longe indicava que em alguma hora poderia cair uma chuvinha rápida daquelas que só servem para evaporar e piorar em muito a situação. Não havia jeito, o mundo estava de cabeça para baixo e nem mais a primavera era respeitada, afinal cadê as borboletas? Sim! Onde estavam elas que tão fartas eram nas frescas primaveras e agora, creio, mal nasciam e o calor já derretia suas asinhas, borboletas sem asas, que coisa ridícula.

Sem outra opção levantou-se e calculou todo o tempo de que dispunha até sair de casa, era um ser de cálculos, gostava de calcular tudo milimetricamente, a sorte era que o que possuía de calculista possuía também de anárquico senso de humor, aliás, todos acreditavam que só calculava tudo para poder rir muito dos erros dos cálculos. Vivia se atrasando aos compromissos, sentia uma brisa úmida e calculava que dali a, no máximo, duas horas iria chover... Que chovia, chovia! Mas, dali a umas vinte e quatro horas!

De tudo isso ria muito e não cansava de contar a todos os seus erros de cálculos mais recentes, errava tanto que só de filho já estava no sexto, mas dizia que não erraria mais. Encontrei um dia com Maria, a sua gentil esposa, e perguntei-lhe (meio na galhofa): “e aí Ma, quando vem o sétimo?” Ela respondeu: “não, agora ele não erra nunca mais nos cálculos, operei, fechei a “fábrica””. Rimos muito, e ela me contou que agora a diversão dele era calcular os astros para acertar o destino profissional dos seis rebentos! Fiquei na dúvida se ela acreditava ou zombava do que dizia.

Dirigiu-se à cozinha e metodicamente lavou as louças da noite passada e produziu um café da manhã para os sete - a mulher e os seis filhos - cozinhou banana da terra, aipim, fritou ovos mexidos, esquentou leite, chocolate, pão, queijo, atum... Tudo sobre a mesa junto aos pratos e talheres. Para ele mesmo, só um café quente ingerido em pé e já com a toalha no ombro.

Banho, roupa leve, beijo na testa de Maria e... Rua, lá se foi ele para um dia importante, aliás, um dia esperado, aguardado com apreensão, com uma ansiedade daquelas que parece que não irá chegar nunca, mas chegou. Era o dia, após alguns meses das provas do concurso no qual a primeira colocação lhe valeria um pouco de tranqüilidade à mente e ao coração de alguém que viveu até então no universo draconiano do setor privado.

Entrou no velho e companheiro carrinho e dirigiu-se à Junta Médica do Estado para apresentar os resultados dos exames, que com certa dose de felicidade de dever cumprido, foi pelo caminho lembrando da “odisséia” que foi as duas semanas anteriores para fazer aquela lista interminável de exames:
a)sangue, esqueceram de dizer-lhe que deveria ter ido em jejum de doso horas (teve de ir duas vezes);
b)PSA, esqueceram de dizer-lhe que deveria ter, no mínimo, uma abstinência de 74 horas (mais duas vezes);
c)Sumários, esqueceram de dizer-lhe que deveria ser a primeira urina do dia, pois multiplique também por dois, começou a achar que os múltiplos de dois dominavam a vida na Terra.

Bem, mas havia vencido! O que poderia ter sido feito em, no máximo três dias, levou quinze para ser realizado, porém para quem esperou tanto... O que eram quinze dias não é mesmo?

Chegou ao local, parou o “Demolidor”, simpático nome de seu automóvel, aliás, carro, automóvel é outra coisa, no estacionamento do supermercado que fica próximo e dirigiu-se à aguardada Junta Medica do Estado. Chegou a um centro cheio de prédios medianos e perguntou ao simpático porteiro geral que estava em acirrada disputa filosófica a respeito do Campeonato Nacional de Futebol, após uns cinco minutos se fez notar e adquiriu a informação necessária. Entrou no prédio certo e foi à atendente, perguntou se era ali a Junta Médica, recebendo uma resposta com um mero balanço de cabeça e um papel velho imundo com um número e a frase: - “sente e aguarde, chamarei pelo número”.

Escolheu uma cadeira que estivesse na mira do ventilador, sentou e olhou as horas, eram 08h30min, pensou: “beleza, sairei cedo, levo ainda hoje o apto e tomo posse!” Seria a glória... Seria!
- Número 12.
Opa! Chegou, levantou-se e voltou ao já visitado balcão.
- Os documentos.
Retirou os documentos de dentro da pasta e apresentou. Ela começou a examinar, ele aguardava e ao mesmo tempo pensava: “ela não me olhou nem uma vez... Deixa disso, se ela olhar a todos que aqui chegam irá perder pelo menos uns 10 segundos em cada atendimento o que no fim será um atraso significativo – (eis um homem de cálculos).
Eram já 09h20min, e veio a sentença:
- Falta o carimbo deste exame.
- Como? (falou tremulo).
- Falta o carimbo deste exame.
- Mas minha amiga, todos os outros tem o carimbo, olha este aqui foi feito no mesmo laboratório e tem o carimbo.
- Mas este não tem.
- Olha minha linda, (um gracejo nervoso), este laboratório fica do outro lado da cidade...
- Só o que posso fazer por você é garantir que quando retornar não precisará pegar esta fila novamente.
- Tá bom, fazer o que né? (descobriu neste instante que não haveria argumentação possível para demovê-la).

Entrou no carro - calor absurdo, engarrafamento, atravessou a cidade e foi ao laboratório. Entrou esbaforido falando:
- Por favor, preciso de um carimbo neste exame!
A atendente pegou e respondeu:- “sinto muito, aqui é apenas recolhimento do material, as bioquímicas ficam na outra sede”.
Ele nem sabia que havia outra sede:
- e onde ficam as bioquímicas?
- Na sede da Pituba!
Ele gelou, andou uns quinze quilômetros só de ida e a tal da sede estava a apenas uns dois quilômetros no máximo da Junta Médica. Saiu “voando, atravessou tudo novamente, chegou à sede certa, pegou o carimbo e correu para a Junta.
Era meio-dia e vinte quando chegou, dirigiu-se a atendente (a mesma), e disse-lhe:
- É hora do almoço né?
- Não senhor, aqui não paramos.
Maravilha! (pensou) A sorte havia mudado, devem ser os cálculos astrológicos entre a manhã e a tarde. Entregou novamente os exames que foram vistoriados, aprovados com um leve balançar de cabeça e, ainda sem olhar para ele, entregou-lhe outra ficha numerada e disse: - “dirija-se ao quarto andar à esquerda e apresente a ficha”.
Realmente não havia interrupção para o almoço, mas das seis médicas que periciavam até as 14h30min só ficava uma que creio, havia perdido o sorteio.

Às 16 horas foi chamado, estava faminto, não havia almoçado. Muito suado, calculava o que havia passado entre o acordar e aquele momento histórico.
- Boa tarde, tudo bem?
Perguntou-lhe a médica, que como não viu entrar, presumiu ter sido ela que havia perdido no sorteio. Sabia que tinha de conter a fúria contra a burocracia que lhe massacrava o ser. Respondeu-lhe tentando ser gentil e alegre:
- Tudo bem!... Tirando a fome!
Ela sorriu, perguntou que horas havia chegado e mais um monte de coisas bobas, enquanto vistoriava e analisava os exames. Chegou à conclusão que tudo estava ótimo... Só faltava o último passo, medir a tensão.

Puf, puf, puf, apertou o braço dele e...
- Nossa sua tensão está muito alta!
- Minha senhora, com todo respeito, mas depois de tudo que passei neste calor infernal, sem almoçar, sem nem mesmo beber um copo d’água se minha tensão não estivesse alta eu estaria morto!
Ela não gostou. Levantou, olhou-o de cima para baixo e decretou:
- preciso de um parecer exato de um cardiologista, procure o de sua confiança faça os exames e depois volte.
- Mas...
- Boa tarde senhor.
Pensou em voar no pescoço dela, em desistir, em pular pela janela...
Pegou o veredito, botou debaixo do braço e saiu, esquivando-se, apressado, temeroso de que o sol, enfim, caísse-lhe sobre a cabeça! Já na rua... Recebeu a do cutelo:
- Aê tio, sem tensão... Dá um trocado prá completar meu almoço?

Roger Ribeiro.
16 de novembro de 2010.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Pode acreditar



Nosso amor que não esqueço
E que teve seu começo
Numa festa de São João,
Morre hoje sem foguete
Sem retrato, sem bilhete
Sem luar e sem violão#

Foi de repente, assim... entre um segundo e outro fez PAC! E saiu, foi, vazou, tirou, deu no pé, retirou-se, disse adeus, tchau, té’mais, ou seja lá como queira. Só sei que quando ele notou já era tarde, ela já estava do outro lado da rua olhando para a cara dele e sorrindo, um sorriso largo. Virou-se e saiu andando.

Ele incrédulo se olhava sem acreditar, com um olhar de quem se pergunta: mas o que está acontecendo? Porque logo comigo? O que eu fiz de errado? Passaram-se longos segundos, tempo suficiente para ela distanciar-se. Enfim ele parou de querer entender e percebeu que tinha de ir buscá-la de volta, saiu meio atabalhoado, atravessou a rua sem olhar, por muito pouco não foi atropelado, chegou do outro lado da rua, subiu em um pequeno batente e conseguiu enxergá-la já ao longe. Acelerou o passo e rumou atrás dela.

Quando ela percebeu que estava sendo seguida, também apertou o passo, era uma perseguição voraz, quanto mais ele adiantava o passo mais ela punha velocidade no andar, de repente não mais andavam, corriam,foram para a beira do asfalto, pois na calçada havia muita gente, era estreita e, de espaço em espaço havia um coqueiro, um ambulante, buracos à granel, de todos os tamanhos e profundidade, e, quando não havia isso tudo, (é vergonhoso mas tenho de dizer), em pleno século vinte e um, havia carros parados sobre a calçada.

A mil, próximo à sarjeta corriam, ela na frente ele atrás, de repente ela entrou em um beco, ele teve dificuldades, pois passava muita gente e ele perdeu tempo, ela saiu do outro lado, ele chegou... Não sabia para que lado ela havia ido, perguntou a uma e a outro até que um senhor muito velho lhe disse:

- Elas sempre vão para a esquerda, não tem erro.

Saiu correndo pela esquerda e algum tempo depois conseguiu avistá-la novamente. Ela achando que havia se desvencilhado havia parado de correr, andava rápido, mas não corria. Ele aproveitou e foi correndo, se esgueirando para não ser visto e quando estava a poucos passos de pegá-la, tropeçou no buraco, saiu metros “catando ficha”, com o corpo todo dobrado para frente, caiu de cara no chão a centímetros do tacho de dendê da Baiana de Acarajé. Suspirou assustado, foi por pouco!

Ela percebeu a presença e novamente saiu a correr, entrava em loja, saía de loja, entrava em ruas, saía de ruas e ele atrás, não desgrudava, não conseguia alcançá-la, mas não a perdia. Ela entrou em uma roda de pessoas onde um pastor pregava o apocalipse, todos erguiam as mãos para o céu e gritavam freneticamente:

- aleluia, aleluia.

Ele passou direto, ela deu meia volta e saiu correndo na direção contrária, ele viu, retornou, se bateu no pastor, este caiu, os fiéis não gostaram saíram correndo atrás dele, um deu-lhe uma rasteira, caiu, pela segunda vez, foi chutado, não reagiu,tudo o que queria era levantar rápido para não perdê-la de vista.

Novamente em pé, ficou perdido, onde estaria ela? Suava muito, resolveu entrar no bar e pediu um refresco de maracujá. Estava quase desistindo da perseguição quando viu pelo espelho do fundo do bar, ela, do outro lado da rua encostada num poste olhando para ele e dando uma sonora gargalhada!

Não é possível, ele disse, ela só pode esta querendo provocar, saiu do bar correndo e esqueceu-se de pagar o refresco, o atendente gritou em vão, ele não ouvia nada, estava louco, cego, precisava retomá-la, isso não poderia ficar assim, estavam correndo já há horas e nada! Decidiu que seria agora; colocou todo o fôlego que ainda lhe restava e saiu a toda. Empurrava quem estivesse na frente, pulava coisas, derrubou o carrinho de caldo de cana, estava realmente decidido.

Era agora, enfim estava conseguindo, levantou o braço para pegá-la e... sentiu uma forte mão segurando-lhe o ombro e um cassetete apertando-lhe a garganta, era a polícia, atrás dela vinha, o pastor, o atendente do bar, o dono do caldo de cana, e uma porção de “peru-de-fora”, a dar palpite e opinião. Ele a viu se afastar.

Na delegacia, uma espera interminável, ele tentava explicar, ninguém lhe dava ouvidos, parecia que falava para a parede, enfim acompanhado por um guarda foi a um caixa eletrônico, retirou dinheiro, pagou o refresco, o prejuízo do caldo de cana, tomou dois cascudos por ter machucado o pastor, pediu desculpas a quem devia e a quem não devia e por fim, já noite alta, foi liberado.

Saiu desolado, não tinha mais esperança de recuperá-la, quando do nada, do outro lado da rua, lá estava ela, olhando para ele e sorrindo, virou-se e correu, ele atrás, chegaram então ao Porto da Barra, o céu já arroxeava para amanhecer e uma Lua Cheia enorme, se escondia por detrás da Ilha de Itaparica, ele a viu, pela última vez, a Lua a levou.

Desolado, sentou-se no meio-fio, deitou a cabeça sobre os braços e nada mais disse.

Ali estava um homem que daquele momento em diante teria de aprender a viver sem alma.

Roger Ribeiro
13 de outubro 2010.

#Nosso Amor – Noel Rosa

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Que papelão!


Era cedo o sol ainda estava frio e as sombras longas, mas para muitos o dia já estava a mil. Rapazes fortes se apossavam de pedaços de rua como se fossem realmente proprietários, só faltavam mostrar o carnê do IPTU para definitivamente comprovar que aquele minifúndio urbano lhes pertencia e para estacionar ali terias de desembolsar uma quantia, que a depender de sua cara, sua idade e, principalmente seu sexo, podia ter uma variação de mais de 1000%.

Outros já não tão fortes se esgueiravam ao largo para dar o bote em senhores e senhoras mais idosas que, em respeito ao ato cívico, não se permitiam ir à vontade e, exatamente seus requintes, eram o que estas “almas sebosas” visavam, não se refutando a derrubar, machucar pessoas de generosas idades para obter algo que brilhasse. O verdadeiro ouro dos tolos.

Também chegavam mulheres, principalmente elas, com camisas estampando rostos, siglas, números e o escambau... Traziam “malocados” em seus pertences pequenos papéis com os mesmos números fotos e mimos, que seriam distribuídos, jogados ao solo, levados pelo vento em uma perfeita demonstração de como podemos emporcalhar uma cidade em fração de minutos.

Incrível é que o mundo mudou, todos perceberam menos estes que fazem a “Grande Festa da Democracia”, como “berram” as manchetes dos jornais. Estes não perceberam, e do canto daquela calçada uma pergunta ecoa e não quer se calar:

- Será que estes malditos não percebem que ao fazer as funestas carreatas, que incomodam a todos, não estão irritando e afastando qualquer possibilidade de simpatia popular ao projeto, já que este parte do equívoco de que incomodar causando engarrafamentos, usando os jurássicos carros de som (me diga alguém consegue ouvir o que aqueles pagodes terríveis conseguem dizer?), faz alguém prestar atenção no número daquele infeliz que fica berrando naquele som de péssima qualidade, que passam por você ininterruptamente, enquanto tudo o que você quer é um pouco de paz e silêncio?!

Não! Mas eles não percebem... Não percebem nada e, ao não perceberem nada, se igualam em um espectro do que há de mais retrógado, mais atrasado.

Chamou-me atenção um louco urbano que gritava em pleno pulmão:

- Não! Não acreditem neles, só São Sebastião, sangrando pelas flechadas pode nos trazer a salvação, o seu sangue não é este papel que é derramado pelo chão!

Do outro lado da rua uma moça de uns vinte e poucos anos tocava um violão surrado ao lado de uma criança que deveria ter uns quatro anos no máximo, tocava e cantava para conseguir um dinheiro para tomar café da manhã. Estava feliz e quando uma senhora abaixou-se e deu-lhe uma nota, não vi de quanto, agradeceu com um grande sorriso e disse:

- eles não valem, nenhum deles vale, nenhuma canção.

Percebi que ela estava plenamente livre, sabia que aqueles motoqueiros das carreatas eram pagos, que aquelas “militantes panfletetes” eram remuneradas, que nada daquilo era real, para ela o real era seu violão, a canção e o pão com café que tomaria em breve com sua filha, estava feliz, já não fingia acreditar na “Farsa da Democracia”, preferia o sonho da vida real.

Chegamos a tal da zona, sim digo chegamos, pois era eu, meus sapatos e mais uma ruma de gente, era gente prá tudo que é lado, todos procuravam pela sua Zona, lembrei de tempos idos e de pessoas como Iolanda da Ondina, Martinha da Barra, lembrei do que se chamava de zona e por um estranho sentido, tive vergonha de perguntar onde era minha zona, parei e perguntei a uma pessoa de crachá: - por favor, onde fica esta urna? Sabia onde era minha zona e, sabia mais, sabia que ali é que não era.

Devidamente indicado engendrei por um estreito corredor com portas azuis de um lado e do outro e que não possuía ventilação alguma; era um calor daqueles que aos poucos vai minando qualquer possibilidade de bom humor.

Mas olhei para frente e havia apenas umas dez pessoas, ora com a votação eletrônica e, com todo mundo trazendo sua “cola” de representantes seria rápido. Mais um engano. Cada vez que parecia que iria entrar alguém de minha frente... pumba!

Chegava um sexagenário membro da “melhor idade”, lá vai ele entrar e nós... bem nós no calor, na fila, uma fila que começou a me lembrar o metrô de Salvador, ou seja ela estava lá, existia, mas ninguém nunca andou.

Tudo bem... vamos manter a calma, alguém gritou:

- Viva os verdes?

A resposta foi imediata:

- Marciano não cobra dízimo!

- Colé?! (Alguém gritou) vocês querem derrubar o que resta de mata, por isso estão afiando a Serra!

-Para com isso gente!

- Vamos fazer uma festa cívica civilizada!

- A luta continua Companheiros...

Ái..., esta doeu já esperei o grito de guerra dos anos setenta que, claro veio na tampa... três garotos no fim da fila em coro entoaram:

- Alho, alho, alho companheiro é o caralh...!

Xi... o clima pesou, veio a segurança, gente de tudo que é cor de crachá, queriam prender os meninos, “desacato ao ato cívico!”, meia fila não resistiu... a gargalhada foi geral... desacato a quê? Perguntou uma senhora que dizia ter oitenta anos... acho que foi namorada do Cavalheiro da Esperança, pois de sombrinha em riste dizia que só levariam os meninos dali por cima do seu cadáver! Êta terrinha de povo que cultua sua história! Gritou uma criatura sabe lá de onde...

– Viva Maria Quitéria!

Respondeu o outro a quatro pessoas de mim...

- Maria Quitéria coisa nenhuma sua ignorante; Viva Joana Angélica...

Resposta na lata:

- Vá se fod...

Vaias tempitóricas ...

E o calor? Se antes estava uns quarenta graus no maldito corredor agora estava oitenta! O velinho votou. Saiu... todos respiraram aliviadas e... Chegou uma grávida, e depois outra velhinha e chegou um sujeito chamado Raimundo vendendo picolé Capelinha, o segurança queria botar ele prá fora, ali não podia mercar nada, mas e os votos? Ora, ora tudo levava a crer que o pau que dava em Chico não dava em Francisco! Picolé não, mas voto, vaga na fila, santinhos, passe de Umbanda, fitinhas do Bomfim, tudo se vendia...

Aos trancos e barrancos chegou minha vez. Entrei olhei bem para aquela cabaninha de papelão e a única coisa que me veio à cabeça foram aquelas pessoas que eu passava todos os dias dormindo pela calçada na Avenida Sete de Setembro, a única coisa que eles possuíam era um papelão para se cobrir.

E ali estava eu, em frente ao meu país e a única coisa que ele tinha era um pedaço de papelão a cobrir os mesmos Brasis.

Roger Ribeiro
05 de outubro 2010.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Só faltava essa!


Não, não precisa explicar nada, é assim mesmo...

Vamos, quando passarmos por lá, te pago uma esfirra, é boa, o local é assim meio estranho, possui uma aparência meio suja e, te digo, não é só aparência não, é sujo mesmo, mas como lá desde pequeno, nunca tive maiores problemas, pelo contrário, já comi em lugares cheio de fru-frus, e me dei muito mal.

Sim! Não estou dizendo que estás com fome, afinal não é necessário estar com fome para comer. Digo-te até mais, prefiro comer exatamente quando não estou com fome, pois assim come-se pouco, come-se pelo prazer, sentindo mesmo o sabor do que se está comendo. Quando estamos com fome a tendência é comermos mais apressadamente, acabamos por comer por demais e não apreciamos realmente o que estamos sorvendo. Estou te levando em um local clássico, para saborear uma iguaria que tem em muitos lugares, mas o de lá, não sei por que, é diferente.

Sabe. Ontem quando a gente se encontrou, tive a nítida impressão de que já te conhecia de muitas datas, de outros tempos, não sei te explicar, mas quando você me falou o seu nome, tive a certeza de que eu já sabia, talvez tenha te visto tocando em algum bar? No ônibus? Pensei até que poderíamos ter sido colegas no grupo escolar, você sabe como é né? A gente muda tanto... Ficam uns traços aqui outros ali, reconhecemo-nos sim, mas de resto só nós mesmos é que achamos que não mudamos, afinal o nosso interior é o mesmo, ou pelo menos, achamos que seja, afinal só nós acompanhamos a evolução de nossas próprias loucuras!

Não... Não se preocupe, hoje esta impressão já passou, tenho absoluta certeza de que nunca a vi em minha vida, seu nome?! Nunca pronunciei, aliás, esqueci, incrível! Apaguei, não sei como te chamar! É estranho estar andando lado a lado com uma pessoa que nunca vi, falando com alguém que não sei de onde veio, para onde vai? Do que gosta? O que escuta? O que lê? O que vê? Ou seja, uma ilustre desconhecida que desce sabe lá de onde e ao meu lado se dirige, a apressados passos, em direção ao centro da Avenida Carlos Gomes, para comer algo que como desde a minha infância! Sabe o que isso significa?...

Claro que não sabe! E tenho certeza, nem quer saber. Mas te direi mesmo assim, de agora em diante você saberá infinitamente mais de mim do que eu de você!

Não! Nem venha com essa conversa de que eu quero saber de você para poder te manipular, não há a menor chance de isso ocorrer. nada de domínios, de posses, de só para mim! De forma alguma, olha, veja bem uma coisa, não somos donos de nada. Nem mesmo da nossa própria vida! É nem dela, apenas a temos por empréstimo, vai chegar o momento em que alguém vai chegar e dizer: “muito bem, está na hora de me devolver a sua vida” e aí... pluf, leva-a de volta. Sendo assim, se nem mesmo de minha vida eu sou dono, como posso querer ser dono de alguém? Pode ficar tranqüila, isso não ocorrerá jamais.

Chegamos... Sim é aqui, olha não faz essa cara de nojo, o atendente vai ficar cismado e de repente nem vai querer nos vender.
Moço por favor, duas esfirras de carne e dois sucos de laranja sem açúcar e pouco gelo, por favor.

Sim sempre peço, por favor, sei que muitas pessoas acham que ele tá ali para isso mesmo e que na verdade não está te fazendo favor algum, mas mesmo assim, peço, por favor, e quando chega ainda agradeço, acho que isso é civilizado.

Tá... Tudo bem... Concordo em parte. Sim, civilizado é infinitamente mais que isso, manter estas praxes sociais de bom dia, boa tarde, obrigado, licença e etc, é muito pouco, o que necessitamos é realmente muito mais civilidade do que esta cortesia, mas uma coisa não elimina a outra. Podemos iniciar por estas pequenas coisas até chegarmos aos respeitos máximos e necessários, até podermos abandonar estas coisas bestas de buscar identidades disso ou daquilo, de necessitarmos impor uma individualidade ou coletividade, de clamar por isso ou aquilo de ficarmos nos “acoitadando”, ficarmos dissimulando nossas carências buscando nos discursos étnico-ideológicos nos afastar do que somos em busca do que fomos.

Sei que chegar a civilidade de assumirmos que somos todos, todos sem exceção, seres individuais e intransferíveis e sabermos que isso não tem nada de mais, que nem é melhor nem pior e que isso também não interessa a absolutamente ninguém a não ser a quem está interessado em nós, é algo bem maior.

O que? Não gostou? Você colocou pimenta? Como alguém pode não gostar? Tudo bem deixa aí que eu como. Bebe pelo menos o suco. O copo tá sujo! Ai, ai, ai assim não dá, ontem você bebeu aquele refrigerante por aquele canudinho que estava exposto ali a meses, cheio de poeira e outras coisas derivadas de visitas que por ventura por ali passaram, e nada disse, agora o copinho, só porque tá assim com este jeitão meio tosco você tá tirando esta onda. Sei não viu.

Tá bom, tá bom. Vamos embora, mas olha depois não vai ficar na minha orelha dizendo que está com fome heim!

Pronto, aqui estamos... A orquestra já começou a tocar. Vamos deixar nossas coisas naquela mesa e vamos dançar.

Sim, é o velho Clube Comercial mesmo, o que tem de mais? Como assim? Você não é pessoa para vir ao Clube Comercial? Mas o que tem demais?

Não! O assoalho não está arranhado, ele é antigo. Nada disso, você está procurando coisa, não tem cheiro de mofo nenhum, a cortina não está empoeirada, o banheiro não esta fedendo coisa nenhuma... O quê!? O piano não está desafinado, o pianista é ótimo! O crooner tem voz de taquara rachada? De forma alguma, taquara rachada é seu nariz. Não inventa; aquela senhora de vermelho não está te olhando feio, o senhor da direita não está babando coisa nenhuma, não tem nada de cafona.

O balcão não está rachado, a gravata do garçom não está torta, a bebida não é falsificada, o trompete não está alto demais de forma alguma, meu sapato está lustrando sim, a música é boa...

Garçom! Por favor, me traga um copo de aguardente urgente, urgentíssimo...

Pronto! agora você vai ficar aí dentro deste copo, não te trago mais, nunca mais levo este cérebro pra passear... Agora licença, vou dançar!

Roger Ribeiro.
17 de setembro de 2010.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Porque arrancaram dali?



Era apenas início da noite, mas ela estava pronta. Vestia um vestido longo vermelho combinando com o batom e o leve avermelhado dos olhos de quem passou o dia a chorar.

Aos muito alvos pés, uma sandália cinza escura de fino e altíssimo salto, seu passo era de uma elegância impar, caminhava como se o tempo jamais fosse chegar ao seu derradeiro minuto. Tudo a sua volta assumia um ritmo especial, algo entre John Coltrane e Hermeto Pascoal, nada ia além do alcance entre a sua longa perna direita à frente e sua alva perna esquerda atrás, o mundo inteiro cabia no vão desse passo.

Foi assim que saiu naquela noite, parecia ser uma noite como outra qualquer, mas havia um detalhe diferente, algo que nunca ousara e seria ali, naquela noite de lua minguante, bem rente à água da Baia de Todos os Santos, quando esta, a lasquinha de lua, já quase tocava a ponta do templo de Mar Grande, que se daria o novo.

Para tanto, cobriu-se de detalhes nunca usados; nos longos cabelos postou uma flor lilás natural, ao redor do pescoço descansava um colar de pedras verdes que produziam um efeito de vida junto ao vermelho esvoaçante do vestido, no rosto nenhuma pintura a não ser o inseparável batom vermelho. Na cintura um pano de renda branco transpassado de finos fios prateados que refletiam a fraca luz do luar.

Não pegou o carro, que ficou estacionado na calçada em frente a sua casa, saiu andando, nenhum transporte ela quis, era noite de passos largos, passos que há muito já deveriam ter sido dados.

Passou por um grupo de rapazes jovens que a olharam, tiveram vontade de lhe cortejar, porém sua presença era tão intensa, tão enormemente presente, que nada conseguiram dizer, calaram-se e apenas acompanharam aqueles longos passos portadores de universos.

Parou no bar de uma esquina escura onde um grupo de milenares e diários freqüentadores comiam queijo velho, ou lingüiça banhada na gordura e tomando suas bebidas, discutiam futebol.

Ali comprou um cigarro a retalho; pediu fogo, não fumava há anos, mas não havia perdido o charme de segurar o cigarro quase na ponta dos dedos e tragá-lo deixando passeando a centímetros do seu rosto a fumaça, que caprichosamente navegava demarcando-lhe a silhueta e azulando sua negra cabeleira.

Pediu também um copo de conhaque. Ao erguê-lo expandiu o vermelho paixão de suas unhas compridas e bem torneadas, tomou de uma só vez, pagou e retirou-se, deixando naquele bar, sujo e fedido, uma ar nobre. Todos ali se entreolharam, o tempo havia parado, tudo se passara entre o inspirar e o expirar, não mais que isso.

Os carros passavam zunindo, paravam, retornavam, buzinavam, mas, na hora em que os seus ocupantes fixavam o olhar nela, nada conseguiam dizer, nem ao menos uma carona conseguiam oferecer-lhe. Algo os impedia, havia um campo magnético, um campo de força que impedia todas as emoções e vibrações dela aproximar-se. Estava efetivamente em outra sintonia, em outra dimensão.

Andava impassível, carregava na mão uma pequena bolsa de cetim azul que apesar de forte presença, só fui notar quando se deparou com um grupo meninos e meninas de rua e abrindo a pequena azul bolsa distribuiu as cédulas que ali portava. Não sorria, aliás, em todo este trajeto não a vi sorrir em momento algum, porém, não possuía um semblante carrancudo, enfezado, longe disso, muito pelo contrário, possuía uma fisionomia de paz, de tranqüilidade. Só não sorria, não arreganhava os dentes, nada ali era fácil, muito menos um sorriso.

Parou abaixo de uma frondosa árvore. Impassível olhava para o infinito, não demonstrava ansiedade, aflição, pressa... Nada a atingia, era como se estivesse em uma dimensão paralela, era, ao olhar dos que trafegavam, uma imensa flor vermelha moldurada pelo verde escuro da árvore a enfeitar o universo.

Do nada ele veio, seu passo era seguro, daqueles que parece estremecer o chão. Sua tez amêndoa, um perfeito caboclo baiano, de cabelos brancos que lhe conferia a inconfundível aparência de Dorival Caymmi, o “Buda Nagô”, como muito apropriadamente observou o poeta Gilberto Gil, também não sorria. Sua elegância se impunha; todo de linho branco com cinto e sapato negros de lustro forte, ponta de lenço ressaltado no bolso esquerdo do blazer e anéis que lhe brilhavam em todos os dedos.

Chegou sem pedir licença, recebeu um leve sorriso, o primeiro, daqueles olhos avermelhados, trançaram-se os braços e saíram a andar como rei e rainha por sobre a cidade.

Dirigiram-se ao bairro da Ondina onde em uma área circular começaram a bailar. Não se deram conta de que estavam em uma ruína circular, um escombro do que um dia deveria ser uma praça, uma área de lazer, mas que repleta de lixo, de um mau cheiro entranhado de anos de descaso, não passava de um depositário do escárnio da sociedade soteropolitana.

Nada os atingia, rodopiavam, reinavam leves, flutuando, revivendo aos meus olhos quando há tempos neste mesmo local brilhavam, girando, girando ao centro do picadeiro do Circo Troca de Segredos, ao som da Grande Orquestra do Maestro Vivaldo Conceição.

Roger Ribeiro
26 de agosto de 2010

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Quem falará?


Eram quase onze horas da manhã quando ouvi aquele barulhinho inconfundível de papel passando por baixo da porta, lembrei imediatamente do comentário do meu amigo Pedro Santana: - “e os códigos de barra continuam passando por baixo de minha porta!”.
Aproximei-me da porta para apanhar a nova conta, sim! O que mais seria?

Olhei, olhei novamente e percebi que aquela correspondência era nova. Parei, pensei: ora, não fiz nenhuma compra, não adquiri nada de novo a não ser os problemas de sempre, o que seria aquela correspondência com ar sério, parecia uma intimação! Minha nossa será que me descobriram? Brinquei comigo mesmo.
Deve ser alguma propaganda, afinal correspondência em papel, por debaixo da porta hoje só existe duas: ou é conta a pagar ou propaganda para que você venha, em futuro breve, adquirir nova conta a pagar.
Lentamente e, confesso, até com um certo temor, abaixei e peguei o dito envelope. Abri com cuidado e... Lá estava:
- pt. Encontre-me 20 horas pantera pt assunto urgente pt não falte pt barba.
Caramba! Falei alto, é um telegrama!? Isso ainda existe? Senti-me no túnel do tempo, havia voltado ao século XX! Incrível ainda existir tal comunicador e, mais incrível ainda, alguém ainda passa (como se falava) um telegrama para outrem! É admirável, aliás, sendo do Barba, claro que seria algo admirável.
Você, que acompanha à revelia estas escritas, o conhece, é aquele mesmo que fala com a bota, que fala de sorrisos, poesias e etc. Quem ainda não o conhece, irá conhecer.
Mas, o que afligia o meu amigo assim para marcar algo tão imediato? E mais, pela seriedade do clube sócio-intelectual escolhido para a comunicação, realmente deveria ser algo grave.
Pronto, passaria eu agora o resto do dia até as 20 horas, tenso, avexado, agoniado para saber o que de tão importante havia se passado assim no mundo para tamanha extraordinariedade de comunicado. Lembro que a última vez que Barba marcou comigo assim algo tão sério e urgente foi para que convocássemos um conclave entre os seres de todos os universos para que se posicionassem a respeito da falta de critérios globais a respeito de uma doença tão retrógada quanto a AIDS.
Então veja você que meu querido amigo não é de ficar fazendo tempestade em pingos d’água, algo realmente estapafúrdio deve ter ocorrido.
Liguei para algumas pessoas mais próximas para saber se sabiam de algo, afinal, nesta manhã estava atolado com alguns textos para analisar e por isso não havia saído de casa, nem ligado o rádio, nem passado a vista no jornal que jazia sobre o pequeno e sujo sofá.
Não, ninguém sabia de nada extraordinário a este ponto. Eram as notícias de sempre... desabamento aqui, intransigências ali, gols de alguns, casamentos de poucos, o velho deixa disso e vamos àquilo, ou a kilo, como tem sido mais comum às notícias.
Terminei os textos, tomei banho, saí para o trabalho, fiz tudo o que tinha de fazer, mas confesso, tudo automaticamente. Não via nada na minha mente apenas o tom grave do telegrama de Barba. Será o Benedito? Pensei que os quatro meninos de Liverpool devem ter ficado no mesmo dilema que eu para poder anunciar ao mundo que “o sonho havia acabado”.
Cantarolei uma música deles, lembrei que não sei inglês e achei que os meninos de Liverpool poderiam ser os quatro meninos de Santo Amaro, qualquer santamarense de plantão certamente concordaria comigo, assim eles comporiam e cantariam em Português, o que seria, para mim, muito bom. Ou não!
E assim o dia se arrastava, problemas surgiam, se resolviam e eram reenviados a quem de direito. Documentos produzidos, resoluções tomadas, dúvidas brotavam aos borbotões. Ainda no início da tarde fui convocado a uma reunião, daquelas que se dizem importantíssimas, até começar, claro, depois desvelam-se inúteis, inglórias. Mas, apesar de tudo isso, o tempo, contrariando Cazuza, se arrastava, não passava de forma alguma.
De cinco em cinco minutos retirava do bolso, o já surrado, telegrama, examinava-o minuciosamente em busca de pistas, será que Barba não havia cifrado nada? Conheço bem a peça, sei que era capaz de deixar algo entesourado, escondido, algum enigma para só ser desvendado daqui há anos. Mas, não, desta vez não. Passei da curiosidade à preocupação.
Mesmo o relógio correndo oposto ao tempo, as conspirações da natureza foram maiores e enfim, o relógio bateu 19 horas, saí apressado, tão tenso que só notei já sentado no ônibus, que nem havia me despedido de ninguém, todos devem ter notado, afinal não era de meu feitio. Mas, paciência, depois pediria as devidas desculpas.

Cheguei ao largo do Chame-Chame, às 19 dezenove horas e 40 minutos, após descer do coletivo, caminhei lentamente até o “Clube Recreativo Cultural para Marmanjos Calejados A Pantera”, de longe avistei o Barba. Não era difícil, pois seu corporal avantajado com sua longa barba vermelha e sua indefectível bota preta era perceptível a longas distâncias.

Percebi de longe que estava agitado, olhava para a bota com tensão, quase indignação. Gotas de suor estavam fixas em sua fronte. Temi, juro que temi e tremi, realmente a situação era mais grave do que imaginava.

Cheguei e antes de poder dizer qualquer coisa ele falou:
- Você foi pontual, mas esperava mais de você. Deveria ter chegado a pelo menos uns 30 minutos antes.
- Perdoe-me, não consegui sair mais cedo e...
- Não importa, você não sabe, mas estas pequenas coisas humanas não mais terão importância.
- Mas o que é tão grave assim?

Ele puxou-me pelo braço para um canto mais reservado, aproximou a boca de meu ouvido e com os olhos mareados disse.

- Toda a esperança que nutri durante toda minha existência frente a este nosso país se acabou. (pausa).
- O que houve Barba, diga logo.
- O JB, o Jornal do Brasil, irá fechar as portas. Agonizava, eu sei, mas sempre tive a esperança de que seríamos salvo no último minuto. Perdemos definitivamente o apreço pela evolução humana. É o fim (decretou).
Tremi, senti um frio correr na minha coluna. Nada consegui dizer, olhei para os seus mareados olhos e apenas pensei no amigo Felix de Athayde.
Colocamos nossas botas pretas em movimento, lado a lado, caminhamos sem nada dizer.
Não havia mais nada a ser dito.

Roger Ribeiro.
26 de julho de 2010

terça-feira, 27 de julho de 2010

Sabe o que é que é?



Prééééééééééééeééeíiiiiinnnnnnnnnnnnmmmmmmmmm!

Levantei de um pulo só, o livro que lia chegou a cair da mão! O toque do apocalipse, só podia ser isso.

Prééééééiiiiiinnnnnnnnnnmmmmmm!

Nossa. Enfim voltei para o mundo dos mortais, era a minha campainha que estava tocando, aliás, tocando não: berrando. Meu coração estava disparado. Estava tão absorto na minha leitura, jamais esperava aquele som estridente e alto daquela forma. Tudo bem que é minha campainha, mas como nunca estou em casa e quem vem aqui normalmente chega comigo, poucas vezes eu a presenciei e, sempre que isso aconteceu me assustei, sempre pensei: - tenho que mudar essa campainha, preciso pôr uma daquelas que fazem Blllimmmm/Bllllommmm assim grave abafada, com cara de tia do interior. Nunca me lembro, só quando, trrrriiinnnnnnmmmm, aí; já foi...

Dirigi-me à porta e, como não tenho olho-mágico, que é outra coisa que só me lembro quando preciso usar, abri-a vagarosamente. Lá bem em frente, com um sorriso impassível no rosto, estava ela. Não devia ter mais do que um metro e cinqüenta e pouco, magrinha, bonitinha a danada, uns olhos brilhantes e o pezinho esquerdo, em uma sandalinha de couro, impacientemente batia no chão. Olhei para ela e ela olhando para mim sorria, por fim falou:

- Não está me reconhecendo?

Era uma voz linda, assim meio angelical, nem aguda nem grave, não era voz de menina, o que ao prestar mais atentamente atenção, percebi pelos finos sulcos ao lado dos olhos que não se tratava de uma menina, era uma mulher jovem.

Parei de delirar e pensei na pergunta que me foi feita, afinal o pezinho havia dobrado o andamento, o que significava que a impaciência também devia ter dobrado. Refleti, refleti mais um pouco e cheguei à conclusão óbvia; euzinho jamais havia visto aquela criatura em minha vida, e, juro, não precisava de tanto tempo para chegar àquela conclusão, afinal uma mulher linda como aquela, jamais se esquece. Respondi:

- Não. Deveria?
- Claro que sim, ou melhor, claro que não. É sempre assim, sempre chego, todos sabem que existo que estou por perto, mas quando chego... Nunca me reconhecem, tá vendo?
- O quê? (apontou para baixo)
- O meu pé, tenho sempre de pôr ele na porta se não as pessoas fecham. E se tiver olho-mágico e for mulher que vier abrir então!? Ah! Aí é que tô ferrada de vez!
- E se as pessoas fecharem a porta com medo, não irá machucar você?
- Claro, e isso acontece muito, vivo no departamento médico. O diagnóstico é sempre o mesmo: luxação no pé. Pronto, lá vou eu ficar pelo menos três semanas no “estaleiro”.
- Estaleiro é para navio, você é um avião (fiquei feliz de ter sido rápido no gracejo)
- Menos né meu filho! Avião de um metro e cinqüenta só se for em Liliput! (sorriu)

Sorri também, ela também era rápida, ou será que passava por isso o tempo todo?

- Sim, mas você não vai me deixar entrar, preciso sentar um pouco e de um copo de água bem fresquinho.
- Oh! Desculpe-me é que ainda estava respondendo a sua pergunta...
- Tudo bem, mas podemos continuar com esta conversa aí dentro, veja: não porto bolsa, meu vestido é largo, branco e de certa transparência... Tira o olho daí. Logo se estivesse portando uma submetralhadora, uma bazuca, um foguete bélico transatlântico, você já teria visto, não é mesmo? Portanto feche a boca, tá parecendo, bobo, levanta essa vista e me convida pra entrar.
- Tudo bem (fiz um enorme esforço para não gaguejar), entre, por favor.
- Muito obrigada.
- Sente onde achar melhor. Você deseja água ou quer um suco?
- Humm! Um suco é bom, não é mesmo? De que é?
- Olha tem de laranja e posso fazer um de lima rapidinho.
- Lima! Nossa eu quero, sem açúcar e com bastante gelo.
- Tudo bem, enquanto faço o suco poderíamos ir nos apresentando não é mesmo? Afinal acho, ou melhor, tenho quase certeza de que você bateu na porta errada. Por acaso você não é vendedora? Representante comercial? Ou o que seria mais louco ainda, uma obreira de uma destas religiões que vão à casa das pessoas com procuração divina, não é mesmo?

Olhei de canto de olho e vi que ela sorria de minhas colocações e que havia se levantado e passeava pela sala.

- Você tem um belo apartamento! Tem bom gosto, e sabe aproveitar bem os espaços, você é arquiteto?
- Não...
- Artista?
- Quem me dera...
- É... Deveria ser, pois é tudo muito poético aqui.
- Olha seu suco. E finalmente quem é você?
- Você e suas perguntas, não é possível que ainda não saibas quem eu sou!
- Posso ser sincero?
- Deve.
- Não faço a menor ideia, só sei que se pudesse pedir para papai do céu uma companhia para mim, seria igualzinha a você!
- Engraçadinho... Mas, não se preocupe viveremos juntos...
- Como? (tomei um susto que meu rosto bateu no chão e voltou), Mas como assim?
- Por um tempo.
- Ãh!? Você tá piorando bem as coisas...
- Onde tem um espelho?
- Só lá no banheiro.
- Vamos lá.
- Mas como assim, vamos lá? Nós acabamos de nos conhecer, você acabou de dizer que vai viver comigo, não temos a menor intimidade e você quer ir ao banheiro comigo?!
- Deixa de ser leso, vem logo.

No banheiro me colocou de frente ao espelho e perguntou:

- O que estás vendo?
- Eu. Porque deveria tá vendo algo mais?
- Veja aqui. (apontou para o espaço entre o nariz e o lábio superior)

Havia feito a barba naquele dia, ali não havia nada... Olhei para ela e percebi que estava com as mãos na cintura se balançando e batendo pezinho; acho que a paciência dela havia se esgotado. No meio da minha confusão mental...

Prrrrééééééééééééééééééeéééeiiiiiiiinnnnnnnnnnnnnnmmmmmmm

Não! (pensei), de novo não.

Saí do banheiro aliviado (enfim aquela maldita campainha havia servido para algo), atravessei a sala e abri a porta de vez... Não acreditei no que vi. Ali, bem na minha frente mais três lindas jovens mulheres tocavam, cantavam e dançavam, era uma festa. Olharam-me, pararam de tocar e uma delas perguntou:

- Minha irmã está?
- Quem?

De lá de dentro ouvi a voz:

- Amanhã! Há quanto tempo heim!? Entre... Fique à-vontade.

As três ainda do lado de fora falaram quase em coro:

- Felicidade! Puxa como foi difícil te encontrar.

Olhei para o meio da sala e lá estava ela, linda! Bem debaixo do meu próprio nariz!

Roger Ribeiro.
11 de junho 2010.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

A Ironia da História.



“Querido amigo Afonsinho” que bom encontrá-lo por aqui, afinal o Itamar Assumpção já partiu, foi lá encontrar com o Leminsk, que, te confesso, também poderia me ajudar, assim sobraram poucos, dos bons, e os que por aqui ficaram são raros, difíceis, quase impossíveis encontrar. Assim, creio que você possa me explicar: afinal o que está acontecendo?

Veja você meu amigo cabeludo, estou a cinco (anos-luz) dias da final da primeira Copa do Mundo da África, e a coisa mais sensacional que dela brotou foi a bola, ela, a redondinha, linda, escorregadia, a pelota, a tal da Jabulani... Tanta gente dela reclamou, mas o que seria desta Copa sem ela?

Veja só os três últimos maiores jogadores do mundo, todos três ainda novos e garbosos, chegaram ao Continente africano e partiram sem dizer para que vieram. Só ela, garba, driblando a todos, entortando os marcadores, os atacantes, os melhores goleiros do mundo dela tornaram-se vassalos. Desfilava bela, linda e solta pelas quatro linhas sem ser incomodada por ninguém.

O grande astro, o grande encanto foi a Jabulani, ninguém conseguiu dominá-la!!

Sabe Afonsinho, conheci o futebol através de uma bola marrom, que tinha a cara do Pelé estampada, meus pais traziam-na semanalmente do supermercado, sua validade era de uma semana, já vinha toda empenada, oval, parecia a cabeça do Edson Arantes mesmo, toda torta, por isso tínhamos de rapidamente desenvolver um talento enorme para dominá-la minimamente, mostrar quem mandava ali! E enfim, conseguir dar aquele passe perfeito. A bola nos obrigava a aprimorarmo-nos, termos talento. A bola estava sempre em desequilíbrio então tínhamos também de nos desequilibrar! Nós, a bola, ou melhor; a “ovoala”, as traves de chinela Japonesa e o goleiro.

Para piorar jogávamos em uma rua calçada de paralelepípedos o que fazia com que nossa Jabulani jamais descrevesse uma linha reta, portanto era necessário ser um Cezar Lattes, um Mário Shemberg, Einstein, ou algo do gênero para descrever trajetórias que levassem a um passe, um lançamento perfeito. Por isso quando revejo os lançamentos de Gerson, Clodoaldo em 1970, Mário Sérgio, Osni e Gibira em 1972, Zico, Sócrates, Junior e Falcão em 1982, tantos outros..., tenho a certeza de que eles devem ter começado pela bola Pelé.

Mais tarde, lançaram a bola Chuveirinho e por fim a Dente de Leite, aí tenho também certeza, o futebol começou a acabar, iniciou-se a Era dos batedores de falta, os torpedos humanos que só sabiam chutar forte, mas e o “elástico do Rivelino! Cadê?

Pois é Afonsinho, agora inventaram que estádios para as Copas do Mundo, tem de ser HI-TEC, cheio de balangandãs, novinhos, ultramodernos, grama quase de ouro, arenas não sei das quantas, salas Vips, centrais de irradiações alfa, beta e gama, um monte de periferia, um monte de dinheiro jogado fora e, eu te pergunto, prá quê? Tudo está lá, menos o futebol, mas pra que futebol se já tem tudo isso?

Você viu onde as seleções ficam?! Meu querido, marajá perde, são palácios, hotéis e clubes quinhentas estrelas, é um luxo absurdo em terra de famintos! É uma afronta, o povo de vuvuzelas chinesas na mão, literalmente soprando a felicidade na saliva e os “astros” banhando-se em “águas de prata”, sem dó nem piedade de exigir vasos sanitários mais custosos do que a renda mensal de um terço da população local somada... Vixi! Lembrei do que o velho Mané fazia nos campos enlameados Brasil afora.
É meu querido, transformou-se o mundo! A Olimpíada que nasceu para ser praticada na nudez e o futebol que se jogava nas várzeas do Brasil, Argentina, Itália e até mesmo na Alemanha, hoje só pode acontecer se milhões de dinheiros forem pegos emprestados, se milhões não forem parar na educação, na saúde... Só assim Afonsinho, “eles” terão certeza de que ninguém vai perceber que dia 30 de abril de 2010, a mais alta magistratura jurídica do nosso país disse ao mundo: NÃO EXISTE CRIME DE LESA HUMANIDADE!

Que vergonha que sinto amigo... Pior ainda será a crueldade da história se fizer da Holanda, uma das criadoras do regime do Apartheid a nova Campeã do Mundo, em plenos milionários estádios da África do Sul, sitiada de miséria por todos os lados.
Roger Ribeiro
07 de julho de 2010.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

A GAROA TURVA




Para que minha amiga fique bem


- Venha para dentro, saia deste sereno, menina!

Ela apenas balançava a cabeça adornada com seus cabelos cor de ouro barroco. Tremia muito e os olhos estavam brasis. Suponho que estivesse febril. Na verdade, debruçado de minha janela, observava a voz e a menina. O que será que ela tinha? Era tudo muito rápido, as mudanças eram bruscas, por vezes parecia uma criança frágil, quase um bebê indefeso, suplicando que algum colo lhe aquecesse, logo em seguida era um rompante vulcânico, tornava-se enorme, engolia a própria sombra que se projetava a partir da luz do poste.

- Não se maltrate, seja uma boa menina venha para dentro, olha pegue esta toalha e tome um banho morno, você se sentirá bem melhor.

Novamente apenas os cabelos sacudiam em uma extensa negativa à voz cansada que quase escorria pela sarjeta junto a água da fina e fria garoa que se impunha entre o solo e a nuvem. Não a via cair, ela flutuava, estava estática no ar abraçando a tudo que fosse sólido e estivesse no espaço delineado por aquelas minúsculas gotas d’água.

Coloquei a mão para fora da janela para sentir aquele véu abraçá-la, abri um buraco na garoa que logo se ajeitou anatomicamente ao meu braço, resfriou-lhe e por segundos senti que havia dois sentidos em um só corpo, a úmida e fria pele, carne e líquidos do meu braço e o seco e morno resto do meu corpo.

- NÃO, não faça isso!

O grito da voz me fez voltar ao mundo real. Assustei-me e também gritei: PARE! Não faça isso.

Seguiram-se alguns instantes e a perna dela ficou no ar, não tocou o asfalto, um pé firme na ponta do meio-fio, o outro suspenso. O carro passou muito rápido, creio que ele nem viu a perna suspensa sobre o início do asfalto. Os pneus ergueram água o suficiente para encharcar-lhe o vestido. Fiquei surpreso, pois a garoa não molhava o vestido, as gotas se sobrepunham intactas sobre ele, não se partiam, não viravam água, permaneciam gotas.

Porém, a levantada pelo pneu não, esta formou uma parede sólida de água que se projetou violentamente sobre o vestido, este por sua vez que rendia a ela uma levitação, passou a sugá-la, colou no seu corpo e passou a pingar pela barra intensamente, e quanto mais pingava mais ela se esvaía, não era a água da poça sobre ela que pingava, era ela.

Vi-me aterrorizado, presenciava de minha janela algo fora, completamente fora de minha capacidade de entendimento. Ela perdia massa, peso, volume, cor! O chão a sua volta parecia ter enferrujado, ela se ia descendo a calçada, desfeita, e nada fazia.

- Não, Não, por favor não se permita isso...

“Não se permita isso”, esta frase dita a ela entrou por meus ouvidos como se fosse para mim. Abri os olhos com tamanha energia que lentamente, ela lá em baixo, perto ao poste que esticava a um sem fim sua sombra, que seguia o mesmo sentido do seu corpo que se ia, esvaziando o vestido branco, foi virando a cabeça em minha direção, lentamente ergueu a cabeça, retirou os longos fios de cabelo da fronte e mirou com seus olhos brasis o brilho alvo dos meus olhos.

De repente percebeu que não estava só, de repente percebi que também não estava só. Éramos eu, sobre a janela, ela sobre a bruma d’água e a voz deslocando o que havia de mais sólido naquele momento; o ar.

- O que você vê? Perguntou-me ela com uma fio de voz, mas que chegou a mim perfeitamente como se ela estivesse a apenas centímetros de mim.

- Porque me observas? O que queres descobrir? Não sabes que não se deve ater-se aos eclipses?

Percebi um contra movimento na calçada, as formas começavam a se reagrupar, subia-lhe pelos pés finos e alvos e re-preenchiam o vestido, os cabelos antes lânguidos agora esvoaçavam, eram como tocha, iluminavam aquele corpo antes frágil, agora magro, porém firme como se fossem de pau-ferro, seu olhar já não era brasil, mas sim de um branco cristal, impossível de fitar.

Por um instante tudo parou, estacionou o tempo e o espaço, a voz ficou suspensa no ar, meu gesto não se completou, estancou no meio do caminho, a garoa estática não caía, nada... Por longos segundos não houve nada, apenas ela transformava-se em um oceano de átomos girando sobre si mesma como um grande rodamoinho, era um clarão inimaginável, a luz da irrealidade, o clarão da loucura, a beleza da insensatez!

Quando o brilho cessou e o mundo voltou ao seu movimento normal, estava eu e ela dançando no asfalto molhado como um mestre-sala e sua porta bandeira, rodopiando, loucos de tanta alegria, enquanto a voz cantava a pleno pulmão:

- Quem é você?
- Adivinha se gosta de mim
Hoje os dois mascarados procuram os seus namorados perguntando assim:
- Quem é você, diga logo...
- ...que eu quero saber o seu jogo
- ...que eu quero morrer no seu bloco...
- ...que eu quero me arder no seu fogo
- Eu sou seresteiro, poeta e cantor
- O meu tempo inteiro, só zombo do amor
- Eu tenho um pandeiro
- Só quero um violão
- Eu nado em dinheiro
- Não tenho um tostão...Fui porta-estandarte, não sei mais dançar
- Eu, modéstia à parte, nasci prá sambar
- Eu sou tão menina
- Meu tempo passou
- Eu sou colombina
- Eu sou pierrô
Mas é carnaval, não me diga mais quem é você
Amanhã tudo volta ao normal
Deixa a festa acabar, deixa o barco correr, deixa o dia raiar
Que hoje eu sou da maneira que você me quer
O que você pedir eu lhe dou
Seja você quem for, seja o que Deus quiser
Seja você quem for, seja o que Deus quiser.*

No meio da algazarra total percebi que no vestido branco dela, existiam minúsculas margaridinhas amarelas bordadas.

Roger Ribeiro
27 de maio de 2010.

*Noite dos Mascarados - Chico Buarque

terça-feira, 18 de maio de 2010

De onde raios viestes?


Apreciava leituras soturnas, vivia de sebo em sebo em busca das letras grafadas com asco, dizia que estes livros eram sempre encontrados em excelente estado de conservação, mesmo que fossem edições antigas, de vinte, trinta anos ou mais


Eram conservados por que ninguém conseguia lê-los, teorizava. – “Repare! Mostrava a quem lhe desse ouvido, veja como até a página 45 há marcas de dedos, de manuseio, porém a partir daí... Nada! Veja páginas virgens, nunca dantes vistas, lidas, acarinhadas”.


Sentava-se por volta das 16 horas em um dos bancos que ficam em frente ao farol da Barra, dizia que ali era o melhor lugar da cidade do Salvador, mas só a partir das 16 horas quando a sombra começava a se projetar sobre o gramado e o vento nordeste fresco, vindo do mar, sopra baixo deixando sua alma presa a você em ângulo reto, como um lençol preso ao varal em dia de vendaval.

Neste espaço, portanto, entre senhores que sentam para olhar as meninas passarem com seus trajes de corrida, colegiais que escapuliram dos muros das escolas para namorar ao por do sol, vendedores de bugigangas fedidos, desgrenhados, loucos para vender um colarzinho, uma fitinha para comprar algo que os entorpeçam, enfim em meio a uma “fauna” urbana doentia e instigante, ele sentava-se com no mínimo dois ou três amigos, como chamava seus livros, e retirava a âncora de sua caravela!

Deixou-se invadir pelas características do olhar sobre a obra. Sobre o lábio superior, um grosso bigode em total contraste com a tez clara cera, adornada por uma cabeleira rala e lisa, cor de cenoura, completamente irregular que combinava com a imperfeição linear do fino aro do óculos dourado de vidros grossos. Era realmente uma figura um tanto quanto exótica para uma cidade litorânea e tropical.

Um dia, o vi entretido com “A Hora da Estrela” da Clarice Lispector, percebi ao longe que algo o incomodava na leitura, parava repetidas vezes, balançava a cabeça, olhava para cima, levantou reclamou com a baiana de que o cheiro da fritura do acarajé o desconcentrava, ouviu um olhar de desprezo dela e nada mais. Sentou-se novamente e novamente entregou-se a Clarice de tal forma que passou a lê-la como se fosse um locutor de rádio-relógio.

Ficava meio agoniado, pois sabia que seu tempo era curto, afinal o local é mal iluminado, sendo assim quando escurece... Já não há mais possibilidade de leitura, os seres voltam às suas capas duras.


Escreveu várias vezes para os jornais, telefonou para as rádios e televisões pedindo solução para a questão da precariedade da iluminação, mas nunca obteve solução dos poderes constituídos. Também nunca teve esta esperança, afinal seu niilismo era afiado o suficiente para entender a mente e as ações do Ser Humano, principalmente aqueles que se julgam poderosos. A eles, a lâmina fria das letras de Schopenhauer.


Mas não julguem que sou um desocupado, que fico olhando a vida dos outros, não é isso, é que tenho uma bússola nata nos olhos que se atraem a seres diferenciados. Gosto de ver como se estabelecem e encontram espaço para serem assim em um mundinho tão limitado, tão previsível. Acho que busco através destes seres, alimentar em mim, a idéia de que é possível construir um universo paralelo sem que as pessoas fiquem o tempo todo dizendo que você é isso ou aquilo por não conseguir divertir-se com as carências alheias.

Meu amigo “nietzscheriano” me instiga de que algo pode e deve acontecer. Não se contentava em ser uma Macabéia, também não possuía a intenção de ser um astro, pelo contrário, divertia-se em ser apenas um corpo para dar vida a seres incríveis como “O Homem que Sabia Javanês”, ou Dr. Simão Bacamarte, ou Josef K, Brás Cubas, enfim milhares de Policarpos, centenas de Quaresmas espalhados entre o branco do papel e o negro da tinta, mesmo que seja nos confins das prisões siberianas, ou no quarto fétido ao fundo da loja de antiguidades.

Hoje, vou anotar a data para nunca esquecer, ele estava diferente, formal, sustentava em seu corpo esquelético um elegantíssimo terno escuro completo, usava um chapéu de feltro, cinza escuro, o sapato brilhava, o cabelo cuidadosamente penteado, só o óculos permanecia torto formando um ângulo de 45 graus com a linha dos olhos. Era outra pessoa, o que será que aconteceu? Ou o que será que iria acontecer?

Eram 16 horas em ponto, ele ergueu-se, pegou o pacote que estava sobre o banco, desenrolou cuidadosamente, ergueu o livro de capa negra à altura dos olhos e brandiu:

- No princípio criou Deus o céu e a Terra,
E a Terra estava vasta e vazia e havia trevas sobre a face das águas,
E disse Deus: haja luz; e houve luz.
E viu Deus que a luz era boa;
E fez Deus a separação entre a Luz e as trevas...

Sorri, ele enfim havia superado seus mestres. Hoje a noite se fez às 16 horas!


Roger Ribeiro

18 de maio 2010.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

O Brilho na Linha Amarela




Dizia ele:

- Quando não houver o que dizer, fique calado. Apenas observe. Se ela passar por você, fique nublado, deixe chover, escorrer pelo cabelo, descer pela coluna até o calcanhar mal disfarçado.

- Não deixe jamais trovejar, relampejar então, nem pensar, não que haja necessidade de ser um ator de teatro, não! Mas a faca entre os dentes é sempre um prenúncio de pecado, de desafio mal tocado, de seresta desafinada, de cordel mal ritmado. Escute o que te digo não há nada pior do que um choro mal chorado.

Ele andava de um lado para o outro em frente ao Rei do Pernil, no Comércio, onde não por acaso eu estava encostado no balcão tomando um refresco de tamarindo, bem geladinho, para aliviar o corpo interior naquela tarde abafada.

Fiquei olhando fixamente para ele e apesar do seu aspecto físico de louco, não via loucura em suas palavras, simpatizava com elas, achava-as até mesmo sábias. Será que ele havia passado por essas coisas de que se referia? Notei que olhou para mim com uma certa afeição, acho que percebeu que eu o dava atenção, aliás acho que eu era o único ali naquele balcão que notava-lhe a presença. Com um gesto, me pediu um pouco do meu refresco, pedi ao balconista que lhe servisse um inteiro. Paguei o meu e o dele e saí, meio constrangido, me sentindo meio mal ao perceber que o dele havia sido servido em copo descartável.

Saí cabisbaixo refletindo sobre a condição humana, lembrei que li algo de um intelectual local que traduzia as obras de Freud do alemão diretamente para o português brasileiro e que, em determinado momento ele dizia que era lento na ação e que traduzia uma página por dia (seria em busca da exatidão? Pensei), ri com ele ao dar conta de que ele havia encontrado uma função para toda a vida. O que seria que ele me diria sobre copos de vidro e de plástico na psique de um ser humano?

Lamentei que minha louca amiga tradutora também não mais estivesse com um mínimo de contato comigo, pois ela certamente saberia me dizer algo sobre tradutores e pessoas que passam o dia na rua traduzindo frases vagas, olhares, andares, sons emitidos, soluços fingidos, alegrias tristes, sorrisos sem dentes de ilustres desconhecidos que passam pela rua, sem notar-lhe a presença, mas dele não escapando. Sua tradução é afiada, é como dizia aquela antiga canção do Belchior: é como “um canto torto que como faca, corta a carne de vocês”.

Mas a diferença entre o meu copo de vidro e o copo de plástico dele, continuava a me incomodar apesar de eu entender a posição do dono da casa do pernil, que temia perder sua clientela se vissem aquele homem em estado natural, sem sabonete, perfume, xampu, cremes, dentifrício, aparelho de barba, nada, bebendo o seu refresco no copo de vidro que depois seria usado pela secretária executiva com seu talleur acompanhado de seu sapato de salto alto e fino, ornando com o cabelo preso na parte superior da nuca.

Não tinha jeito, mesmo entendendo a posição de coisificação humana do dono do pernil e também dono do refresco, não achava que ele fosse dono da verdade, muito pelo contrário, continuava achando que não haveria nada de mais em servir o nosso psicólogo social com o copo de vidro, situação de incômodo, diga-se de passagem, minha, pois ele não demonstrou nada, muito pelo contrário, pegou o refresco que lhe dei e saiu feliz e fagueiro, mas, julgava eu, era só lavar o copo, como, aliás, era feito após qualquer um ter tomado o refresco.

Eu ainda achava mais, afinal, e disso tinha certeza, da minha boca saíam muito mais besteiras, bobagens, comentários chulos, rasteiros, palavras feias, descabidas do que da boca dele. Portanto meu copo era muito mais sujo do que o dele, essa certeza me confortou e me envergonhou ao mesmo tempo.

Segui meu caminho, subi o Plano Inclinado Gonçalves, ultrapassei a Praça da Sé, o Elevador Lacerda, olhei com dor o abandono do Palace Hotel na rua Chile e resolvi entrar no novo Cine Glauber Rocha, para olhar uns livros, mas, principalmente, para me refestelar no ar refrigerado, fugindo do calor intenso.

Fiquei no ar frio de dentro observando as pessoas que passavam no ar quente do lado de fora. De repente revi o meu psicólogo social novamente. Vinha caminhando lentamente e largando suas observações para que o vento as carregasse, do nada parou, virou de frente para mim abriu um imenso sorriso de poucos dentes o que acabou por me seduzir a sair do meu aquário de ar frio. Chegou mais perto de mim, pegou no meu ombro e disse:

- Um sorriso é tudo o que o homem necessita, lhe foi dado uma caixa cheia e renovável deles, mas ele com seus medos o guardam, como fazem com seus bens, trancam no cofre do peito. Têm vergonha de dizer que são felizes onde tantos sofrem. Uns bobos.

Sorri para ele e como mágica brotou na minha memória o sorriso mais lindo que já vi em minha vida, ele vinha iluminando a cidade sobre a linha amarela da pista de automóveis entre a Barra e a Ondina, no meio da multidão.

Concordei com ele, sim uma linda raça de bobos! A sorte é que os melhores fabricam música!

Roger Ribeiro
06 de maio de 2010.


Roger Ribeiro
06 de maio de 2010.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

33 1/3 rpm



Este texto foi feito para Patrícia

Ficava melancólica, triste mesmo, todo dia ao final da tarde. Dizia que eram os tons, ao que eu rebatia afirmando serem os dons. Sempre ganhava um sorrisinho com isso, mas era apenas de boca, os olhos não enganavam, a melancolia dominava aquela menina de forma tão profunda que só poderia ser efêmera. Durava o tempo necessário do azul claro do céu avermelhar, arroxear e por fim tornar-se breu, aí... Adeus melancolia! Já era hora de pensar nas luzes, no brilho que se deitaria sobre a cidade morna em uma noite de outono.

Gostava de me levar para passear, se íamos ao teatro, ao cinema ou à casa de um amigo qualquer, sempre queria fazer o caminho mais longo, gostava de ver, de olhar e, principalmente, sentir o vento salgado bater no seu rosto, dizia que um dia viraria uma estátua de sal. Hoje, quando vejo estes artistas de rua fazendo aquelas performances de estátuas prateadas, douradas, ou seja lá como for, sempre me pergunto se ela virou uma de sal.

Viajamos muito juntos, tínhamos um jeito de gostar muito semelhante e isso nos atraía de maneira intensa, adorávamos as montanhas, as cachoeiras, os rios e ficávamos dias nas serras invertendo a realidade, inventando a nossa própria visão que nos permitia olhar, entre os nossos compridos cabelos, uma verdade que hoje pareceria infantil. Tudo são épocas, cada qual com seus moinhos, porém tenho de revelar, estive um dia em um local onde o céu era verde e a terra e sua vegetação eram azuis. Por favor, não ria.

Hoje, passando por uma antiga loja de discos, tão antiga que seus produtos a venda ainda se compõem de vinis, sim! Vinis, LPs, Compactos simples e duplos, tudo feito para girar em 33 1/3, dei-me conta de que o mundo já girou nesta velocidade. Engraçado pensar isso, hoje os Compact Discs (CDs) giram a uma velocidade estonteante, mas o que sai deles não possui a fúria que saía dos velhos 33 1/3, porém isso não tem a menor importância, foi só porque eu lembrei da guitarra de Alvin Lee & Ten Years After.

Mas, retomando a prosa, parei na loja dos discos e avistei de longe a capa de um álbum que freqüentava muito as nossas vitrolas e, assim como ela, há tempos eu não ouvia e nem via: Ivinho ao Vivo no Montreux Internacional Jazz Festival, um LP de Ivson Wanderley, registrado nos idos 1979. Entrei, comprei e não permiti que o dono da loja colocasse no saco quadrado preto fosco, não... Eu queria sair com ele debaixo do braço para que todos vissem o que eu tinha, o que eu ouvia, afinal era assim que arranjávamos as nossas namoradinhas!

Com o Ivinho debaixo do braço, continuei minha peregrinação pelo centro da cidade em direção ao trabalho. Era uma manhã quente, passei por bancas de rua improvisadas que vendiam peixes frescos, olhei para um Vermelho Ariacó fresquinho e fiquei meio frustrado, pois já o via nadando no dendê na minha panela de barro, mas tinha ainda um longo dia de trabalho pela frente e, tenho certeza, meus colegas não ficariam muito satisfeitos com aquela presença por muito tempo. Foi uma pena.

Tudo enfim parecia que seria igual à ontem, ou a antes de ontem, ou a qualquer dia desses mornos de outono, mas as aparências, muitas vezes, enganam. No caminho de sempre havia algo novo, era um tumulto, uma roda de pessoas que se espremiam para acompanhar algo que acontecia no meio daquele círculo humano. Fiquei curioso, afinal era algo novo no meio de um caminho que eu fazia de segunda a sábado, invariavelmente, há anos.

A ordem estava quebrada, as pessoas faziam exclamações de surpresa, depois se calavam atentas para novamente externarem um “ÔH!”, em uníssono, um verdadeiro Cantus Planus Gregoriano.

Olhei para o meu relógio e constatei que não daria tempo, era tudo cronometrado, se parasse me atrasaria e, se me atrasasse, quebraria uma tradição que já durava mais de década: jamais me atrasei.

Fiquei em uma situação embaraçosa, minhas pernas caminhavam para frente, mas meu cérebro contornava, retornava, atravessava para o lado oposto, para o lado de lá. Lembrei que jamais havia feito o caminho pelo lado de lá, não o conhecia, éramos estranhos um ao outro, fiquei frio, em plena manhã quente de outono, tive a certeza de que se atravessasse... Se irrompesse aquela divisória invisível, estaria para sempre perdido.

Onde estaria? Como regressaria? Se eu estava indo de lá para cá, só poderia ir por esse lado, pois aquele outro lado, apesar de paralelo, certamente conduziu de algum lugar desconhecido para qualquer outro lugar longe, muito longe, de onde eu tinha de ir. Onde estaria eu?

O temor me fez afogar no meu próprio suor, as pernas não mais iam, elas teimavam em vir, tropeçavam uma na outra, que absurdo, como minha mente podia ter a ousadia de mandar em minhas pernas?!

Senti na vertigem que alguém puxou do meu braço o disco do Ivinho. Isso já era demais saí feito louco a uma velocidade de 33 1/3, no rastro do LP, a vertigem me fez perder o equilíbrio, segurei em algo, respirei fundo e ouvi a melodia entrar por todos os meus poros:

I look at you all see the love there that's sleeping
While my guitar gently weeps
I look at the floor and I see it needs sweeping
Still my guitar gently weeps
I don't know why nobody told you how to unfold your love
I don't know how someone controlled you
They bought and sold you
I look at the world and I notice it's turning
While my guitar gently weeps
With every mistake we must surely be learning
Still my guitar gently weeps
I don’t know how you were diverted
You were perverted too
I don’t know how you were inverted
No one alerted you
I look at you all see the love there that's sleeping
While my guitar gently weeps
Look at you all...
Still my guitar gently weeps *

Senti meus olhos arderem, a boca secar, era como se tivesse acabado de sair do mar... O disco do Ivinho estava sobre o meu colo, o brilho ao redor era de uma intensidade tal que tornava impossível a nitidez plena, o real não passava de vultos brilhantes. Tive a sensação de que entre a floresta de brilho que estava, ter avistado um vulto especial, sorrindo para mim, um vulto de sal girando a 33 1/3.

Roger Ribeiro.
29 de abril de 2010.

* While My Guitar Gently Weeps
George Harrison

terça-feira, 20 de abril de 2010

Ling,Ling, Lin, Rouxinol!


Apertou o nó da gravata, passou um pano seco para dar brilho no sapato, fechou o paletó, passou a mão esquerda nos cabelos e saiu sem olhar para trás, sem dizer uma palavra, sem alterar o semblante. Os olhos cor de mar da Penha na Ilha de Itaparica pareciam brilhar mais intensamente naquela noite escura de lua nova.
Era o momento de escutar as criaturas da noite, por isso se fazia necessário todo um ritual de preparação; durante o dia o mínimo deexposição a sons altos ou estridentes, agudos demais, falar então... somente o indispensável. Era preciso estar pleno, todo aberto, era como se o corpo como caixa de ressonância precisasse estar vazia, limpa, limpíssima, para captar até os sons mais longínquos, de freqüências quase imperceptíveis, quase como se necessário fosse ouvir o som da luz se espatifando na parede!
Era realmente uma figura estranha: alto, muito alto, magérrimo, curvo para frente daquela forma em que o nariz chega sempre muito antes do resto do corpo nos lugares, vestia-se de uma elegância um tanto quanto, se não assustadora, pelo menos morbida. Terno completo e negro, acompanhado de uma camisa de seda grafite e o mais claro era a gravata italiana de um cinza chumbo, ornada por uma garra com um rubi. Logicamente, evitava locais de grandes aglomerações ou intensa presença de veículos. Seus locais eram ruelas residenciais de preferência com alto índice de moradores da terceira idade, pois estes dormiam cedo, silenciando suas casas e arredores, havia mapeado a cidade e sabia de todas as ruas e ruelas que possuíam estas características.
Certa feita, ao ser entrevistado por estudantes universitários, destes que acham que o que não é regra é cult e é moderno gostar de pessoas cult (como costumam chamar os seres que minha geração chamava simplesmente de malucos). Perguntaram-lhe porque não ia morar numa mata, na Chapada Diamantina, no Capão, afinal cult que é cult, vai pro Capão se integrar com a natureza, Nosso amigo curvado que estava com o queixo apoiado nos punhos e o braço no joelho, abriu levemente os “líquidos” olhos azuis esverdeados e disse, calmamente: “sou um homem urbano”.
Já não era jovem, aliás, longe disso. Seus cabelos ralos e de longos fios grisalhos demonstravam claramente se tratar de um senhor, criavam-se muitas histórias que iam cada vez mais mitificando aquele senhor de tez alva cera, mãos compridas e dedos finos, aquilo que costuma-se chamar de mãos de pianista. Diziam que já havia sido professor universitário, coveiro, pianista, pintor. Também surgiam histórias horripilantes que o vendiam como vampiro, fantasma, seqüestrador de crianças e, aquela verdade para todos nós, que há décadas atrás, tínhamos não mais do que dez anos: lobisomem, sim na nossa cidade havia um legítimo.
Estas lendas eram passadas de um para o outro e, ainda hoje, todos explicam suas saídas apenas na lua nova ao cansaço que tinha de tantas e tantas metamorfoses de homem para lobo e de lobo para homem. Possuía um par de orelhas enormes. Será que assim ficaram de tanto ativar para melhor ouvir? Não sei, mas que eram enormes isso eram! E com este belo par de orelhas saia para escutar as criaturas da noite.
Dizia que as urbanas eram as mais instigantes, comunicavam-se por sons nunca antes perceptíveis pelos homens e viviam em todos os lugares, nas frestas, nas crostas das arvores, debaixo do asfalto, das calçadas, algumas eram aladas e, como morcegos, se guiavam por reverberações sonoras, andavam por debaixo da terra, mas acima de tudo emitiam sons.
O velho grisalho não carregava consigo gravador, microfones, nada para registro. Sabia que estes seres eram muito ariscos, não gostavam da civilização humana e não queriam por ela serem descobertos, sabiam que se assim acontecesse seus dias estariam contados. Viviam no mesmo planeta, e no mesmo espaço que nós, porém é como se estivessem em dimensões diferentes, paralelas.
Tudo isso fazia daquele homem um ser efetivamente estranho, cult para os mais novos ou louco para os mais velhos. Mas uma coisa é certa, por todas essas décadas nunca ninguém havia ouvido falar de uma maldade se quer produzida por ele. Um Homem incapaz de machucar uma formiga, diziam.
Nesta noite, saiu por volta das 20 horas, impecável, não usava perfume, pois o cheiro forte e artificial inibia as criaturas, pegou um táxi e saiu como quem vai da beira mar para o interior da cidade, uma cidade aonde já não se encontram ruas e ruelas silenciosas, uma comunidade que produz uma enormidade de barulhos compatível à de lixo. Uma cidade aonde os anjos já não adormecem no peitoril dos sobrados, um lugar aonde as pessoas falam alto, muito alto, gritam muito, berram... Uma cidade onde as pessoas não sabem mais o que dizem e porque dizem.
As criaturas da noite silenciaram ao amanhecer, acordei na alvorada e fui para o portão de casa para ver meu velho vizinho chegar. Oferecer-lhe uma xícara de chá quente e pedir-lhe para que me narrasse as aventuras sonoras dos micro tons desta noite.
Ele não desceu do táxi, não subiu a rua com seu terno negro e seu passo largo, não olhou-me com aqueles olhos de mar.
Acho que esta noite ele reencontrou seu grande amigo Walter Smetak.
Você está ouvindo?

Roger Ribeiro
14 de abril 2010.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

O Super-Homem





Colocou a calça jeans cor de couro cru que tanto gostava e escolheu a camisa de tecido branco de manga longa para proteger a pele do sol, sempre dizia que as pessoas erradamente se protegiam do calor se expondo ao sol, para ele o segredo era exatamente o oposto, quanto menos o sol tocasse sua pele mais fresca ela permanecia e consequentemente, menos calor sentia.

Era uma teoria, não havia necessidade nem de concordar nem de discordar dela, afinal não mudaria o curso nem do tempo, nem do espaço, muito menos da humanidade.

Neste dia em especial estava eufórico, não pensava em outra coisa a não ser nos físicos cientistas que havia posto em funcionamento o acelerador de partículas, só lamentava que não houvesse sido aqui em sua terra e sim lá no hemisfério norte, na Europa. Isso o enfurecia, afinal porque tudo tinha de ser no hemisfério norte? Ora, dizia – eles deveriam nos respeitar observar nossa busca incessante pelo equilíbrio entre a terra e o oceano.

Bem aí já é uma outra teoria do nosso jovem rebelde que para ser a reencarnação perfeita do James Dean, só faltava o topete e o olhar melancólico. Nem tudo pode ser perfeito, mas dos seus devaneios não abria mão em hipótese alguma.

Passou por mim apressado e quando me notou retornou correndo, pegou em meu braço e saiu me puxando ao mesmo tempo em que falava como um texto da ‘Geração Beat’, não havia pontuação, pausa, não havia nada, era um encadeamento de palavras que iam se sobrepondo, no caso dele, sem formar algo, nem ligeiramente, inteligível.

Consegui que ele parasse um pouco, pedi que respirasse e pausadamente me falasse o que desejava. Não foi fácil, mas enfim...

Passou então a me falar sobre o acelerador de partículas da ciência física e como esta em breve entraria em contato direto com as experiências da célula tronco, das ciências biomédicas e como deste encontro, um novo ser surgiria, segundo ele seria a redenção, algo com o poder de abstração e conhecimento de César Lattes, somado à sensibilidade social de Darcy Ribeiro, mais a poesia de Bob Dylan, mais o equilíbrio de Vaslav Nijinsk, e a percepção de Salvador Dali. Seria algo grandioso para a humanidade.

Fiz uma cara de interrogação e perguntei-lhe:

- Meu caro! Essa experiência toda não seria algo perigoso? Isto me remete a coisas de Homens Perfeitos, raças superiores e estas coisas que a história já nos mostrou serem eugênicas demais. O homem é o que é. Essa diversidade o torna um ser efetivamente interessante...

- Você não está achando que quero criar um super-homem e substituir a raça humana por este, não é mesmo? Ora te conheço há décadas e sei que tens mais cérebro do que isso.

- Bom; obrigado pelo quase elogio, mas pelo seu discurso...

Não me deixou acabar a fala.

- Claro que não, afinal eu não preciso criar o que já existe. O que creio é que a conjunção destas experiências físicas e biológicas podem, isso sim, acordar este ser que adormeceu. O homem necessita recobrar em sua memória que ele é o super, e que justamente por isso muito, ou quase tudo que está em cima desta bola depende deste despertar.

- Hum... A coisa está começando a clarear. Por falar nisso não sabia desta tua paixão pela física.

- Escuta vem comigo que quero te mostrar algo.

Pegou novamente no meu braço e saiu me arrastando, falando novamente sem pontuação e sem pausas, o que atribuía a sua fala um idioma ininteligível. Pegamos um transporte para a Ribeira e ao chegar paramos na rua da orla e ficamos por um tempo a observar o fundo da Baia de Todos os Santos, Eram onze horas da manhã de um dia claro e azul, a luminosidade transformava o entorno entre a Ribeira e Plataforma em algo quase místico, era de uma beleza indescritível.

Meus olhos marearam enquanto os dele permaneciam “duro”, fixos em algo entre uma margem e outra. Sua fisionomia era inabalável, sabia exatamente o que procurava, enquanto eu não procurava nada, apenas me permitia poetizar o meu olhar.

- Venha!

Acordou-me do meu êxtase visual, entramos em um cais, pagamos um real cada e entramos no transporte marítimo que liga uma ponta à outra. Exatamente no meio da travessia, ele voou com uma agilidade incomum para a sua idade e desligou o motor da embarcação. Todos o olharam assustados e perplexos, ele com sua calça deans cor de couro, sua camisa branca de manga longa e tecido fino e sua “surrada bota de guerra”; bradou:

- Vejam, olhem ao redor desta bela baia, o que vocês vêem? Beleza?! O super-homem precisa despertar rápido em nós ou o “Crac”, continuará corroendo a humanidade de nossas crianças, transformando águas cristalinas em lodo, poesia em meras palavras, música em barulho.

Abaixei a cabeça, por um instante e lembrei de uma poesia do Bob Dylan em que ele alerta que “uma forte chuva irá cair”.

O motor retomou o seu funcionamento e, novamente em terra firme, não consegui mais enxergar aquele local como antes.

Roger Ribeiro
05 de abril de 2010