terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Pé com Cré


 



O meu tênis emperrou. Descia do ônibus ali, bem próximo ao Largo do Fechadinho, quando do nada, bem no último degrau do coletivo, ele, sem aviso algum brecou. Não tinha santo que o fizesse andar. Os cadarços revoltaram-se, agarram-se ao primeiro obstáculo que viram e faziam jeitão de paisagem.

 

A fila atrás de mim aumentava. De repente todos queriam descer no mesmo ponto, nunca havia vivido tal situação, pegava diariamente esta linha, cortava a cidade em seu sentido dali para lá e nunca tinham mais do que eu, o motorista e o cobrador, ninguém ia ao Largo do Fechadinho. Não era um local aprazível, nem turístico, lá não existiam cinemas, bares, lanchonetes, salões de beleza, nada! No Fechadinho não havia absolutamente nada. Na verdade eu era a única pessoa que conheço que se dirigia a tão sinistro e insignificante local.

 

E o meu possante tênis verde e branco empacou que nem Mula, quando ainda se viam Mulas por aí. Não havia o que fazer, sentei no degrau superior para retirá-lo dos pés e desimpedir a passagem das pessoas que já começavam a ficar impacientes, para dizer a verdade, intolerantes, visto até minha senhora genitora já ter sido citada quando nem presente estava.

 

O miserável, até eu já estava impaciente com o dito cujo, agora não mais queria largar do meu pé, agarrou-se a ele com fúria, amor e desprezo. Um dos seus cadarços enroscou no meu tornozelo, enquanto o outro largou do suporte da porta e penetrou pelas costuras da bainha da minha calça puxando-a com força, emaranhando-se pelas linhas da costura lateral rompendo-a como se fosse faca na manteiga, deixando-me cada vez mais constrangido, olhava apavorado e via os olhos esbugalhados da passageira que incrédula gesticulava e vociferava coisas estapafúrdias em uma língua indecifrável.

 

A esta altura do campeonato perdi a referência do violão e das flores que levava, o meu tênis que em um ato de rebeldia descosturou a minha calça neste momento saboreava a minha cueca, sabe qual né? Aquela estilo lutador de boxe, com aqueles olhos e a boca inclinada, já não sabia mais o que fazer, apenas percebia todos os olhos me olhando e todas as bocas acusando-me de todos os impropérios possíveis e imaginários... Até gracinhas tive de ouvir:

 

- Olha a calcinha da boneca...!

 

Alguém recitou por detrás de uma poça de desespero que era eu naquele exato momento.

 

Rezava, pedia, implorava, prometia talquinho, lavagem especial, uma noite de lua com a bota vermelha da vizinha que tanto admirava, mas qual... Nada! Estava irredutível em sua meta estática. Uma senhora de cabelos azuis e corpo de Sabiá que passava na calçada vendo meu desespero veio ao meu auxílio, cantou, piou, bicou, puxou-me, pegou seu spray de pimenta e tacou no danado... Tudo em vão. Não havia mais o que fazer, levei as mãos à cabeça e perguntei aos céus o que estava acontecendo?

 

Óbvio que o céu com suas preocupações pessoais, que não são poucas, nada respondeu, apenas enviou-me uma chuva daquelas que em dois minutos transformou o Largo do Fechadinho em um rio caudaloso e furioso que arrastava o ônibus, o tênis, eu e as certezas do mundo em direção à única opção possível: à frente.

 

Em pouco tempo lembrei que estava em um Largo sem saída, daí inclusive o seu belo nome – Fechadinho, e o seu ponto extremo era o ponto do Ralo, -“fim de linha”, falou-me às gargalhadas a faixa branca daquele maldito tênis verde.

 

Por um instante vi a cabeleira azul de minha salvadora passar pela corrente d’água a uma velocidade estonteante. Dentro do coletivo todos se jogavam pelas janelas temendo o pior, o último a sair desejou-me boa sorte e partiu. De agora em diante era eu, meu tênis verde e branco e um veiculo enorme e desgovernado, batendo por todos os lados de um ex-Largo que se havia transformado em aquário.

 

Por minha volta começaram a passar Espadinhas, Carpas, Pintados, Atuns, Aratubaias e Cações! Êpa, protestei, mas que desassossego é este? Isto aqui é mar ou rio? A chuva fez uma trégua, reuniu-se, confabulou e sentenciou: Isso é tudo que te resta, meu filho. Ainda pensei em argumentar que aquela situação estava irregular... Mas de que adiantaria mesmo?

 

Enfim aquele enorme veículo começou a girar como se fosse um peão, percebi que chegávamos ao ponto do Ralo, ou ao ponto final. Tonto, tentava manter os sentidos, foram muitas horas girando, girando até que estancou. A chuva passou e enquanto o ônibus parava lentamente de girar um quarteto de cordas sobre o seu teto executava A Volta da Asa Branca, para um solo de assovio de feira.

 

Olhei-me de cima a baixo: não havia calça, minha marrenta cueca muito menos, minha querida camiseta do Ramones havia virado pó. A única alegria foi perceber que meu querido violão do nada reapareceu debaixo do meu braço e as flores, mesmo meio murchas, estavam na minha mão esquerda, sorri por um instante.

 

Mas não era o dia e percebi que havia sorrido no momento errado, olhei ao redor e lá estavam: o cobrador, o motorista, meia dúzia de curiosos e a polícia. No meio disto tudo, lá longe... Sobre os telhados das velhas casas do Largo, uma presença fluida se projetava no espaço junto aos peixes que segundos atrás por mim passavam, linda na sua delicadeza assustadora! Lembrei o que estava indo fazer no Largo, olhei a floresta no meu pé, era o verde encabulado que colocastes no teu ser, e saístes bailando por entre os ventos!

 

- Vamos engraçadinho, põe tua viola no saco, na delegacia você se explica. Disse a possante voz.

 

Lá me fui: eu, meu violão e meu tênis verde e branco. Ainda havia força para tentar uma última argumentação...

 

“Senhor delegado
Seu auxiliar está equivocado comigo
Eu já fui malandro
Hoje estou regenerado...”*

 

Roger Ribeiro

16 de fevereiro de 2016.

 

*Senhor Delegado - Germano Mathias