terça-feira, 17 de setembro de 2013

Quantos ventos tens no bolso?



 


O elevador estava cheio, um corpo colado no outro, uma expiração sendo inspirada por outro pulmão. Desce; para; entra mais gente, tecidos; cabelos; couros dos sapatos, cobrindo peles, pelos, dores e odores humanos. Uma multidão em uma caixa fechada descendo, andar por andar, de uma grande caixa abarrotada de gente por todas as portas e janelas.


- Licença...

- Meu andar, por favor.

- aí!

- Opa! Desculpe-me foi sem querer.

- Sim... Não agora não dá pra falar, estou no elevador, ãh... olha não ta dando pra escutar nada, depois te ligo.


Ah! Enfim térreo, pés no chão novamente. Mas, são muitos pés, o chão treme, muita gente, cada uma com seu peso para carregar passo à passo, são dois pés para cada indivíduo, todos saindo ao mesmo tempo da inércia na caixa do elevador para o desequilíbrio do passo após passo, todos estão com pressa, ou parecem estar, creio que na verdade o que todos desejam avidamente é sair daquele emaranhado de corpos, todos querem ar entre os seus corpos e os outros corpos da multidão.


Mas a expectativa trai, por vezes, o sentido. Após o vão do saguão, pós-elevador, chega-se à porta que abre a perspectiva da libertação! Do outro lado é estar à rua; um vão sem teto, sem a compressão entre os espaços esmagados pelos corpos.


- Sim, agora sim, te escuto perfeitamente... Não preste atenção... e´ que...

- Minha filha, pare com isso... Sim vamos chegar, mas...

- Ave Maria... não agüentava mais...

- Sim minha querida, é para hoje sim...

- Bom dia seu Carlos, olha vai chegar minha...

 
Pés pisando forte no tabuado, som, som sobre som, as paredes reverberando, ecos por todos os lados, tudo multiplicando a multidão... Preciso sair daqui rápido, meu coração está acelerado, preciso alcançar a rua. Ah! Enfim, o vento no meu rosto, espaço, não tanto quanto gostaria, mas para quem há poucos minutos se encontrava em uma prensa humana, aquilo era tudo que se podia querer.


Ônibus. O dia parece interminável, são centenas de pessoas passando para todos os lados, bocas que abrem e fecham sem cessar, após o advento do celular, reduziu-se a sensação do quantitativo de aluados, poucos agora falam sozinhos, a maioria fala ao celular, ou será que fingem falar? Será que existe alguém do lado de lá? Mas, o fato é que na atualidade todos falam o tempo todo e, parece-me, pelo menos, que o universo não está tendo capacidade de absorver tanto som.


O ônibus vai parando de tantos em tantos metros e muito mais gente vai entrando, diria que para cada cinco pessoas que entra no coletivo desce apenas um. Existe um desequilíbrio, estamos ficando cada vez mais uma massa de células grudadas tendo apenas os olhos libertos pela transparência das janelas abertas e o espanto das pessoas nas calçadas ao nos ver passar, é uma multidão se locomovendo, em linha horizontal, levando um carregamento humano, e neste carregamento estou eu.

 
- Licença...

- Olha o caramelo...

- o Senhor é o caminho... já fui drogado...

- Poderia estar roubando, matando, mas estou...

- Espera aí motorista... Ôôôh, cobrador e meu troco?

- Um passo à frente aí...  o coletivo está vazio!


Vazio?! Será que estou sonhando? Existe uma multidão aqui dentro, todos falando, respirando, pensando... Este coletivo deve está pesando infinitamente mais do que apenas o peso da matéria. Há o peso da intenção. Preciso atravessar esta multidão e descer, o meu ponto é o próximo, será que irei conseguir? Se conseguisse parar de pensar creio que ficaria muito mais fácil conseguir ultrapassar esta barreira... Vamos lá, sem desespero, primeiro puxar a cordinha, fazer saber que preciso descer... Já carrego tantas partículas de tantas pessoas que já não sou mais eu. Será?


Ponto, rua, praça, mercadores, transeuntes, músicas, expirações, inspirações, pensamentos, o vento nos corpos, na estátua, o tempo nos milhares de relógios com seus sons característicos, o virar dos olhos daquela menina, a bengala no solo, a tosse do senhor da bengala, a criança que tenta explicar o inexplicável para que não quer ouvir, os sonhos de cada um, os automóveis derretendo os sonhos de Ícaro... Enfim enxergo você ao lado de sua bicicleta, sentada na mureta da praia do Farol da Barra, absorta, quase uma serpentina humana ao vento, olhando o mar.


Existe uma multidão entre mim e você ao vento. Vendo você assim, permitindo o vento carregar as suas partículas, vejo que não percebes a multidão. De longe tento te mandar um sinal, um aviso:


“Meu coração tem catedrais imensas,

(...) Como os velhos Templários medievais

Entrei um dia nessas catedrais

(...) E erguendo os gládios e brandindo as hastas,

No desespero dos iconoclastas

Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!*


Mas é impossível: existe uma multidão em mim, milhares dentro da minha existência, um quebra-cabeça de milhões de sons, cheiros, sensações, braçadas no ar.
 

Roger Ribeiro

17 de setembro de 2013


* Vandalismo (edição livre) – Augusto dos Anjos