O elevador estava cheio, um corpo colado no
outro, uma expiração sendo inspirada por outro pulmão. Desce; para; entra mais
gente, tecidos; cabelos; couros dos sapatos, cobrindo peles, pelos, dores e
odores humanos. Uma multidão em uma caixa fechada descendo, andar por andar, de
uma grande caixa abarrotada de gente por todas as portas e janelas.
- Licença...
- Meu andar, por favor.
- aí!
- Opa! Desculpe-me foi sem querer.
- Sim... Não agora não dá pra falar, estou no
elevador, ãh... olha não ta dando pra escutar nada, depois te ligo.
Ah! Enfim térreo, pés no chão novamente. Mas,
são muitos pés, o chão treme, muita gente, cada uma com seu peso para carregar
passo à passo, são dois pés para cada indivíduo, todos saindo ao mesmo tempo da
inércia na caixa do elevador para o desequilíbrio do passo após passo, todos
estão com pressa, ou parecem estar, creio que na verdade o que todos desejam
avidamente é sair daquele emaranhado de corpos, todos querem ar entre os seus
corpos e os outros corpos da multidão.
Mas a expectativa trai, por vezes, o sentido.
Após o vão do saguão, pós-elevador, chega-se à porta que abre a perspectiva da
libertação! Do outro lado é estar à rua; um vão sem teto, sem a compressão
entre os espaços esmagados pelos corpos.
- Sim, agora sim, te escuto perfeitamente...
Não preste atenção... e´ que...
- Minha filha, pare com isso... Sim vamos
chegar, mas...
- Ave Maria... não agüentava mais...
- Sim minha querida, é para hoje sim...
- Bom dia seu Carlos, olha vai chegar
minha...
Pés pisando forte no tabuado, som, som sobre
som, as paredes reverberando, ecos por todos os lados, tudo multiplicando a
multidão... Preciso sair daqui rápido, meu coração está acelerado, preciso
alcançar a rua. Ah! Enfim, o vento no meu rosto, espaço, não tanto quanto
gostaria, mas para quem há poucos minutos se encontrava em uma prensa humana,
aquilo era tudo que se podia querer.
Ônibus. O dia parece interminável, são
centenas de pessoas passando para todos os lados, bocas que abrem e fecham sem
cessar, após o advento do celular, reduziu-se a sensação do quantitativo de
aluados, poucos agora falam sozinhos, a maioria fala ao celular, ou será que
fingem falar? Será que existe alguém do lado de lá? Mas, o fato é que na
atualidade todos falam o tempo todo e, parece-me, pelo menos, que o universo
não está tendo capacidade de absorver tanto som.
O ônibus vai parando de tantos em tantos
metros e muito mais gente vai entrando, diria que para cada cinco pessoas que
entra no coletivo desce apenas um. Existe um desequilíbrio, estamos ficando
cada vez mais uma massa de células grudadas tendo apenas os olhos libertos pela
transparência das janelas abertas e o espanto das pessoas nas calçadas ao nos
ver passar, é uma multidão se locomovendo, em linha horizontal, levando um
carregamento humano, e neste carregamento estou eu.
- Licença...
- Olha o caramelo...
- o Senhor é o caminho... já fui drogado...
- Poderia estar roubando, matando, mas
estou...
- Espera aí motorista... Ôôôh, cobrador e meu
troco?
- Um passo à frente aí... o coletivo está vazio!
Vazio?! Será que estou sonhando? Existe uma
multidão aqui dentro, todos falando, respirando, pensando... Este coletivo deve
está pesando infinitamente mais do que apenas o peso da matéria. Há o peso da
intenção. Preciso atravessar esta multidão e descer, o meu ponto é o próximo,
será que irei conseguir? Se conseguisse parar de pensar creio que ficaria muito
mais fácil conseguir ultrapassar esta barreira... Vamos lá, sem desespero,
primeiro puxar a cordinha, fazer saber que preciso descer... Já carrego tantas
partículas de tantas pessoas que já não sou mais eu. Será?
Ponto, rua, praça, mercadores, transeuntes,
músicas, expirações, inspirações, pensamentos, o vento nos corpos, na estátua,
o tempo nos milhares de relógios com seus sons característicos, o virar dos
olhos daquela menina, a bengala no solo, a tosse do senhor da bengala, a
criança que tenta explicar o inexplicável para que não quer ouvir, os sonhos de
cada um, os automóveis derretendo os sonhos de Ícaro... Enfim enxergo você ao
lado de sua bicicleta, sentada na mureta da praia do Farol da Barra, absorta,
quase uma serpentina humana ao vento, olhando o mar.
Existe uma multidão entre mim e você ao
vento. Vendo você assim, permitindo o vento carregar as suas partículas, vejo
que não percebes a multidão. De longe tento te mandar um sinal, um aviso:
“Meu coração tem catedrais imensas,
(...) Como os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
(...) E erguendo os gládios e brandindo as
hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!*
Mas é impossível: existe uma multidão em mim,
milhares dentro da minha existência, um quebra-cabeça de milhões de sons,
cheiros, sensações, braçadas no ar.
Roger Ribeiro
17 de setembro de 2013
* Vandalismo (edição livre) – Augusto dos
Anjos