segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

São meninas tão bonitas!




O convite veio pelo correio. Era um envelope estranho todo lacrado, mas, à frente vinha um nome conhecido: o meu. Já no verso o remetente era um enigmático conjunto indefinido de algarismos construindo um notável enigma que me levou um bom mói de tempo para ao fim não chegar a lugar algum.

Era algo jurássico, um telegrama, creio que muito dos que estão atentos a esta narrativa jamais conheceram um, mas digo, já foi tão revolucionário na comunicação quanto a internet e seus penduricalhos. E, como sempre, telegrama era algo de travar a respiração de qualquer um, afinal quem e porque teria tanta pressa de falar com alguém assim? O mundo da era do Telex não era tão paranóico, as pessoas sabiam um pouco mais ficar sozinhas, ou se contentavam com suas companhias, um telegrama, e isso era indiscutível, ou trazia uma má ou, de preferência, uma ótima notícia.

Fico pensando nas bobagens que vejo hoje nas “redes sociais”, do tipo: “acordei, vou pra academia”, “bom dia a todos”, ”estou no avião”, “cheguei a casa”... E por aí a fora, como se seu deslocar, ou não, interessasse a todo mundo?! Meu Deus! Penso eu, será que alguém se deslocaria até uma agência do correio, escreveria e pagaria para enviar uma mensagem a todos dizendo: “cheguei da academia”? Bom mas são tempos modernos e o que já foi pago, já foi, assim pode-se escrever o que quiser...

Bem, voltando ao meu telegrama, senti aquele velho frio no estômago e pensei imediatamente nas pessoas mais velhas, mãe, tias, tios, amigos destes e etc, afinal este é, e seria, um meio de comunicação natural delas e assim sendo as notícias nestes meios sempre nos dão aquela expectativa, claro mantendo sempre o pensamento positivo. Abri vagarosamente o comunicado, com cuidado para não atingir nenhuma letrinha do valoroso escrito:

- Querido, espero por você, por favor, não se ausente.

Não havia assinatura, endereço, mapa, vestígios algum, nada, absolutamente nada... Como alguém, sujeito oculto, pode me convidar para um local indeterminado, sem dia, hora, nada! Como ela, ou ele, poderia querer que eu não faltasse? Mas que loucura é essa? Voltei à frente e fundo do envelope, afinal eu deveria estar enganado, em algum local, deveria constar os dados necessários para o meu comparecimento, olhei, refolhei, coloquei contra a luz (lembrei disso em um filme de espionagem que havia visto), e finalmente; nada.

Deixei-o de lado e procurei tocar meu dia, mas tinha mais do que certeza de que a maior parte dos meus sentidos ligados ao intelecto havia ficado ali sobre a mesa junto ao telegrama, de agora em diante, naquele dia eu não teria comigo nem dez por cento de minha condição de concentração e entendimento. Como alguém pode fazer isso com outra pessoa?

Sai, fui trabalhar, fiz tudo daquele instante em diante no chamado “piloto automático”, graças aos meus anjos da guarda nada apareceu que necessitasse de grande ação do intelecto, eram apenas coisas banais do dia-a-dia, e meu cérebro inteiramente deitado por sobre o papel cáqui da comunicação. Entendi mais do que nunca o poeta quando dizia que “o pensamento parece uma coisa à toa, mais como é que agente voa quando começa a pensar”, e lá estava eu, foram dez, sim sem exagero nenhum, dez horas voando sobre aquele enigma totalmente amedrontado de que ao fim deste estivesse a Esfinge sem o seu nariz.

Fim de expediente e como de costume alguém bradou:

- E aí galera quem topa uma gelada?

De imediato, praticamente no reflexo respondi:

- Aí “thurma da firlma”, hoje pra mim não vai dar, tenho algo muito importante me esperando, já fui...

O coro foi total: - Aêêê!! Vai tirar o pé da jaca heim!...

Nem olhei, saí em disparada, afinal certamente deveria haver um complemento por baixo da porta, não era possível que assim não fosse. Entrei esbaforido em casa com os olhos pregados no chão procurando. Olhei, abaixei, olhei mais pra cá, mais pra lá, afinal o vento podia ter levado e: nada. Decepção total.

Caramba! Olha (falei para mim) deixa isso pra lá, se quem mandou não deu referências é porque não quis, sendo assim... Vou tomar meu banho e fica como se isso não tivesse acontecido. Aliás, o que mesmo aconteceu? (tática de esquecimento).

Foi só o tempo de tomar a ducha, ainda estava abraçado à toalha quando a campa da porta disparou. Cheguei a tomar um susto, afinal para quem mora sozinho a única coisa que chega a sua porta sem você são os códigos de barra que passam, despudoradamente, por baixo dela. Perguntei de longe quem lá estava à porta, mas não obtive resposta, espiei pelo olho-mágico e nada vi. Abri vagarosamente a porta, ou pelo menos tentei, pois logo senti o tranco:

- Sai pra lá, você está lento hem camarada?! Não temos tempo a perder.

E invadiu o ambiente carregando algo enorme. Era uma linda moça de um metro e sessenta que, apesar de não ter dado tempo de se apresentar, ou ao menos de eu ver direito quem penetrava meu lar, deixou-me a nítida impressão de já ter visto aqueles cabelos castanhos ao vento em algum lugar. Olhei o corredor externo para me certificar de que não havia mais ninguém, fechei ainda assustado a porta e me virei temendo o que poderia encontrar.

Recuei incrédulo até bater as costas na porta, não era possível, no lugar de minha minúscula e entulhada sala, abria-se um imenso salão todo alvo como uma nuvem de verão! Não era possível avistar o fim, o brilho era intenso, era algo entre o inexistente e o inacreditável. Ao centro da sala havia um piano de calda igual ao que John Lennon tocou Imagine e sentada com as mãos cuidadosamente sobre as teclas estava ela, seus cabelos castanhos agora estavam enormes e flutuavam pelo imenso e brilhante vão. Meio incrédulo perguntei:

- Hoje é você?

- Bem que haviam me dito que você era meio leso, claro que sou eu, ou está achando que é quem?

- Podia ser Ontem? (falei)

- Infelizmente minha irmã Ontem se perdeu na bruma.

Quando lhe faria a pergunta, que tanto me atormentou, sobre o telegrama a companhia estrilou novamente, abri a porta e lá estava ela, linda com seus cabelos negros e seu vestido esmeralda. Do centro da sala veio a voz:

- Amanhã? Enfim você chegou... E começou a tocar a Valsa Romântica de Claude Debussy.

Amanhã e eu começamos a girar pelo infinito salão

Roger Ribeiro.
26 de dezembro de 2011.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Maria, a Bahia tem um jeito...



Criiiiiiiiiiiiiiiii.... Foi bem no meio da
Avenida Contorno, atravessado por uma Kombi bicolor que descia do Dois de Julho em direção à Conceição da Praia, e que simplesmente saiu; assim mesmo, como veio saiu, não olhou para um lado nem para o outro, aliás, nem para cima, pois se assim tivesse feito veria o próprio Jesus Cristo boca aberta, olhos arregalados e cabelos arrepiados com a barbaridade que fez.

O nosso coletivo vinha “na banguela” ladeira abaixo, o vento zunia pelas janelas, os rádios ligados misturavam “de um tudo”, era música evangélica, hip-hop, pagode, a coisa dentro do velho Campo Grande/Ribeira tava mais quente que festa de Largo na barraca do Juvená nos anos setenta. Como dizem por estas bandas, o dendê tava fervendo!

Foi aí que veio aquele “freio de arrumação” que você ouviu lá na primeira linha, eu vi tudo, não havia alternativa, ou estancava o “bumbão” ou ia voar caco de Kombi pra tudo que é lado. Pegaria pelo meio e, se não me falham os cálculos neste momento de emoção, iria sair a Kombi voando por sobre o Solar do Unhão e iria parar no meio da Baia de Todos os Santos, algo assim entre a Gameleira e o Farol de Humaitá. Seria uma tragédia,sem dúvida.

Mas foi daí que a Kombi, que nem notou nada seguiu seu curso e a nossa odisséia começou. Prá início de conversa a freada foi tão violenta que os dois pneus dianteiros do “buzú”, simplesmente
estouraram! O motorista só teve uma reação que foi escancarar o bocão e gritar a pleno pulmão:

- Fela de uma put...!

Clamor, aliás, o qual nós passageiros respondemos em uníssono:
- ôôôôÔô.
Pois nestas ocasiões, com o coletivo razoavelmente lotado, o primeiro culpado é sempre o motô (motorista para os não acostumados com o vocabulário local), daí até explicar que Chico não é
Francisco, corre um rio Amazonas por baixo da ponte.

Para piorar um pouco a situação, uma elegantíssima senhora que vinha em seu poderoso e importado automóvel no vácuo do nosso “bumbão”, não conseguiu parar e... Crashhhhhh-pracatabrum... entrou com tudo no fundo, slaflet abriram-se duas bolas de ar que não permitia ver nada dentro do poderoso automóvel, lentamente a porta se abriu e ela desceu com seu vestido longo prateado, seu cabelo cheio de laquê e sobre o salto de lá mesmo começou, delicadamente, a berrar:

- Seu Viad... FdP, ta com o olho no c...

Menino era um festival de impropérios que até eu, que não sou disso, fiquei rubro. Quem diria que uma senhora tão fina heim?!

Neste contexto externo, pegando fogo, o nosso querido e injustiçado motorista, levantou-se do seu acento e muito gentilmente dirigiu-se ao interior do coletivo:

- Tem alguém machucado “aê”?

- Aííí “motô”, tô toda quebrada... rodei pela borboleta (nome local para torniquete) umas quinze vezes, afff... tô completamente tonta e toda roxinha! Olhe só estou te vendo a cara do Lázaro
Ramos! Aliás dá um beijinho aqui no meu joelhinho que ta dodói...

Todos nós nos viramos para ver quem falava: xiiii, a coisa tava feia pro nosso querido condutor, o ser falante era algo um tanto quanto indefinido, mas como este é meu trecho de vida cotidiano, e sempre fui muito observador, lembrei-me no ato daquela fisionomia, aliás, era um tanto quanto difícil de esquecer, se algum dia já tivesse posto o olho naquele genuíno ser de uma Salvador contemporânea. Se não vejamos:

Cabelos longos descoloridos, com mechas em tons de roxo, vermelho e verde; olhos, um verde outro azul, denunciando as lentes de contato, ombros estreitos e peitoral delicado, da cintura em diante abria-se um “pandeirão” de fazer inveja as antigas “Mulatas do Sargentelli”, descendo para pernas fortes e torneadas, fechando com um “coturnão”, 46/bico largo.

Esta sua formatação lhe facilitava a vida, eu sabia disso, pois um dia já havia conversado com aquela criatura e ele havia me explicado como o Grande e Soberano Senhor lhe havia presenteado com aquela forma física, que aliado ao talento nato para produzir vozes as mais diversas, lhe permitia ser pela manhã ajudante de pedreiro, pela tarde vendedor de lingerie nas lojas do Tabuão, ao fim de tarde virar uma das mais charmosas Baiana de Acarajé da região da Conceição da Praia, pra onde aliás, estava se dirigindo, sem contar que aos fins de semana vendia coco verde pelas praias, onde aliás o conheci.

Não podemos negar, ali Deus foi benevolente e pródigo, assim nosso amigo conseguia viver, criar dois filhos da nova companheira e ainda pagar a pensão para as três crianças que havia tido com
Dona Maria dos Prazeres, a qual sempre se referia com toda a deferência, era a mãe de seus adorados filhos os quais não cansava de mostrar as fotos, que ocupavam mais de noventa por cento de sua carteira.

O semblante do nosso condutor ao ouvir o pedido do nosso companheiro de viagem foi realmente algo impar, e se alguém havia se batido, ou sentia alguma dor naquele momento, tudo se dissipou. A gargalhada foi geral, até a nossa madame que havia trombado de frente no fundo do coletivo não agüentou, colocou a mão na cintura, e batendo o pezinho, de salto e tudo, no chão metálico do ônibus, olhou para o “motô” e disse:

- Hummm, achou em heim!?

Mas o pior era a realidade pura que vivíamos naquele momento, fomos todos descendo do ônibus desolados, sem saber o que fazer, afinal, dois pneus furados, um carrão enfiado entre os pneus traseiros e no meio da Avenida Contorno, aonde o único vizinho é a Bahia de Todos os Santos. Começamos lentamente a caminhar em fila indiana para evitar maiores transtornos quando se ouviu o estrondo:

CABRUUUMMMMMMMMMMMMMMM!!!!
E o horizonte que já estava se arroxeando estourou em um clarão que a nos cegou por alguns instantes... Neste momento lá do fundo de nosso caminhar se ouviu o berro, de quem? Ora imagina... Só podia ser dele mesmo, com joelho doendo e tudo a criatura esganiçou a voz e berrou:

- Valei-me minha mãe, vamos todos para o Pelourinho reverenciar Yansã!

“Senhora das nuvens de chumbo
Senhora do mundo dentro de mim
Rainha
dos raios, rainha dos raios
Rainhas dos raios (...)”*

A vida vai passando e a gente não nota, mas era 4 de dezembro, acho que por isso as minhas bochechas estavam tão vermelhas.

Roger Ribeiro
01 de dezembro 2011.

*Iansã - Caetano Veloso

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Quase uma canção

“Desde o começo do mundo
Que o homem sonha com a paz
Ela está dentro dele mesmo
Ele tem a paz e não sabe (...)”*

O domingo nascia junto ao sol e lá estava ela sentada na escada frontal da Igreja de Santana com sua roupa branca toda amarrotada e suja, a maquiagem borrava-lhe todo o pálido rosto, dando-lhe um ar surrealista, poderia passar facilmente por um ensaio fotográfico moderno, mas não era.

Os “vampiros” saindo dos bueiros do Rio Vermelho atolados de tudo passavam e dirigiam-se à ela de forma jocosa, desrespeitosa, indelicada, estavam acelerados demais em suas realidades provinciano-universais, para perceber que existe algo além das fronteiras demarcadas do prazer.

A ela nada afetava, desde as tentativas mais engraçadinhas até as mais bebadamente grosseiras, não lhe atingiam, ela simplesmente não absolvia, não ouvia, não é que estivesse ignorando, não! Simplesmente não existiam aquelas pessoas, aquelas palavras.

Olhava fixamente com os olhos encharcados para o amanhecer que refletia um alaranjado quase ouro à enseada de onde saem as flores para o mar no dia dois de fevereiro. Parecia que, em algum plano, conseguia dialogar com algo que estava ali, mas só ela percebia, só ela via, tudo estava entre a Casa do Peso e a Pedra dos Pássaros. O ar soprava fresco espalhando, ao transpassá-la, um aroma de Acássia que deveria acalmar o ambiente, se os humanos ao redor se permitissem.

Homens, ainda quase bêbados da noite anterior, desciam as escadas com suas cordas, linhas de pesca, varas, tarrafas, panos... Peito nus iniciavam um dia de sal, de salitre de balançar pelas águas em busca do peixe que, sabe como, apesar de toda barbaridade cometida, ainda se mostravam, se não abundantes, pelo menos o suficiente para manter aquela comunidade em sua atividade artesanal.

Acostumados a ver o invisível sobre seus saveiros, e inebriados pelo alto volume de álcool, que se perpetuava em suas veias, passavam por aquele olhar borrado e ornado pelo despenteado e farto cabelo, mas ali não viam nada demais, era apenas mais uma visão de um calhau se espatifando na proa do saveiro. Alguns a olhavam com uma visão apaixonada, certamente lembrando-se de velhos sonhos passados e carcomidos pela força cortante do sal.

Poucos carros ainda trafegavam e alguns começavam a trazer as pessoas para o Templo de Santana, aonde outrora sinos chamavam os seus seguidores fieis. Hoje o badalar mecânico, soa distorcido, mas não abala à fé de quem as possui. Era efetivamente um típico amanhecer de um domingo, aonde uns lamentam o fim da noite de sábado, outros botam sua fé em atividade, seja na oração de agradecimentos, seja na força do saveiro cortando as águas escuras do mar.

A esta altura a moça de branco que sofria, havia descido a ascadaria que levava à praia, tirara a sandália prateada e molhava os finos e alvos pés nas águas geladas, onde Manteiga arremessava sua incansável tarrafa em busca das Pititingas, que iriam alimentar iscas para pesca e óleos quentes no decorrer do domingo.

Sem dizer uma palavra uma mão escura e enrugada a pegou pelo antebraço, e a conduziu de volta para a escadaria do Templo, pacientemente retirou-lhe a areia dos pés, calçou-lhe novamente as sandálias, ajeitou-lhe, dentro do possível, os cabelos, limpou-lhe o rosto dos excessos, sorriu-lhe como se lhe dissesse: pronto. Ergueu-a e entraram braços dados pela porta central do Templo, aonde todos em silêncio levantaram e as olharam.

Elas, firmes e benevolentes, olhavam fixamente para um ponto acima do altar, a jovem reverenciando o filho a velha, o neto.

Poucos perceberam, “eles estão surdos”*.

Roger Ribeiro
22 de novembro de 2011


* Todos Estão Surdos
Roberto Carlos

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Cada um crê no que convém




Passou na banca, comprou o jornal uma pastilha de hortelã e retirou-se meio que olhando os buracos do chão meio que as manchetes do jornal. De quando em quando olhava as pontas dos dedos e balançava negativamente a cabeça, afinal como podia um diário daquele que possuía um belo parque gráfico, que por muito tempo gabou-se de ser o jornal de maior tiragem do Norte e Nordeste, pintar-lhe, despudoradamente, os dedos de carvão daquela forma? Paciência (rosnou mentalmente).

Aportou no velho botequim escolhido cuidadosamente para ser a sua base de leitura aos domingos no meio-dia. Sim! Esta ressalva é necessária, teria de ser um local aonde não servisse almoço, pois assim poderia calmamente sorver sua “tubaína” de malte e cevada, com a despretensiosa e preguiçosa leitura do jornal dominical que, segundo o próprio, é o diário de quem não gosta de ler jornal.

Sem nem mesmo precisar levantar o olhar ou pedir qualquer coisa, já sobre a sua mesa foi postada a “ampola” de líquido amarelado e estupidamente gelado, acompanhado de uma pequena louça contendo azeitonas pretas e queijo branco. Fez um leve aceno com a mão como quem dissesse: muito obrigado meu querido Barriga (como era conhecido carinhosamente o garçom que ali estava há anos, atendendo quase sempre as mesmas personalidades).

Estava um belo meio-dia azulado e quente, o suficiente para tornar aquela mesa e cadeira postada à calçada o melhor lugar do mundo para se estar naquele momento. Por vezes elevava a cabeça refletindo alguma informação acabada de ler, pelo seu olhar podia-se deduzir se concordava ou discordava desta. Muito raramente emitia algum parecer, se barriga estivesse por trás “pescando piabas” de seu jornal, falava para este, se não valava para o colarinho de sua própria camisa, algo inaudível e intraduzível, um verdadeiro rosnar.

Mas, óbvio, aquele certamente não seria um domingo qualquer! Disso eu tinha plena certeza desde o início, afinal o que estaria eu fazendo naquele local àquela hora sob a sombra de uma amendoeira, observando aquela cotidiana e, por vezes, enfadonha cena?

Dito e feito. O carro surgiu do nada, veio acelerado, a mil! E ao chegar exatamente em frente às mesas e cadeiras sobre a calçada, freou abruptamente, freada daquelas que faz soar o pneu travado no chão. Ali mesmo, no meio da rua, impedindo qualquer trânsito ela desceu, largou a porta aberta o som do carro gritando ao mundo:

– (...) nem parece o mesmo / tá ficando pirado / onde você encosta dá curto / você passa, o mundo desaba(...)”.*

Ela vinha nitidamente enfurecida, passos duros e olhar reto, mirava o seu alvo sem piscar, pensei: é... Esse não escapa, mas quem seria? Olhei para Barriga em busca de uma pista, percebi que também ele estava incrédulo com a cena. A chegada ao alvo foi triunfal, a mão subiu e desceu - zastrasss-brucstrimmmm! Voaram azeitonas, queijo e porcelanas por todos os lados.

Por sorte tratava-se de um boteco de marmanjos já escolados pela vida se não... Certamente seria um corre-corre dos infernos, acompanhado de gritarias e tudo que estas coisas agregam em si. Mas não, o máximo que aconteceu foram, aqueles que liam observaram sobre os jornais para se certificar do que ocorria, os que de cabeça baixa pensavam na vida ou nas dívidas, apenas levantaram os olhos com cara de quem pede: “por favor, sem barulho”, nada além disso, Barriga se recostou junto ao caixa e ficou confabulando sobre um assunto qualquer com o Galícia, o “Homi-do-Dinheiro”, como era conhecido. Tudo isso aguçou minha curiosidade, afinal, além da moça do automóvel, da louça estilhaçada e dos acepipes pelo chão... Nada mais ocorria.

“(...) Vivendo em tempo fechado / correndo atrás de abrigo / exposto a tanto ataque / você ta perdido (...)”, continuava a berrar o automóvel no meio da pista e todo arreganhado. Nosso amigo foi o único que não abaixou o jornal, aliás acho que nem notou que o vazo de tira-gosto que havia se transformado em um 14-Bis desastroso tivesse sido o dele. Este desdém foi o suficiente... a mão levantou-se novamente, todos arregalaram os olhos, pararam de respirar, aliás o mundo parou por um instante e... ZAAAZZZZZZZZZZZZZZ, a mão desceu zunindo e apanhou o jornal pelo meio...

- Cachorro, canalha, porque você esta inventando isso de mim? O que te fiz? Você não pode ficar por aí, impunemente, inventando estas sandices, eu nunca fui isso, nunca fiz nada disso...

Os olhos dela faiscavam, o ódio era latente, percebia-se, mesmo de longe que era uma ira incontrolável... Enquanto isso o nosso amigo com ar de quem nada está entendendo procurava sobre a mesa por seus óculos que havia retirado enquanto lia o, agora já inexistente, jornal.

“(...) E pra se ajudar / você faz promessas / e pra piorar até o papa te esquece / e pra te arrasar nem o inferno te aceita (...)”*, o som do carro agora assessorado por um turbilhão de buzinas inconformadas, aumentavam o suspense e a expectativa, enquanto isso nosso amigo, agora já com uma fisionomia preocupada, apalpava freneticamente a mesa em busca de seus óculos, foi quando o golpe final foi dado...

Ela olhou e, o pior viu! La estava sobre a mesa ele: o copo de cerveja gelada e cheio até a boca... A mão novamente levantou, sacou do copo e chuááá!!! Vôo o líquido sobre o rosto sem óculos que incrédulo o máximo que fez foi balbuciar: - mas, mas...

- O quê é? (ela virou-se para o ambiente) Tão com pena deste miserável? Vejam a cara de sínico dele!

Neste momento, acho que se sentindo plenamente vingada apontou para o nosso amigo e...

- Nãããão! Não é possível! (disse ela)
- Sim é possível. (disse o nosso amigo)
- Mas de olhos fechados, dentro do carro e você atrás do jornal não havia a menor dúvida de que era...
- Sim, de olhos fechados pode ser, mas, não sou.
- Meu Deus, como pode ser? Eu tinha total certeza...
- Pois é, era o que tentava te dizer... Estavas mirando o inimigo errado, veja se ele não está dentro de você?! Barriga, por favor, uma gelada e uma porção de azeitonas pretas e queijo branco.

Ela, mãos sobre o rosto, dirigiu-se ao escancarado carro que junto às buzinas berrava:

(...) E pra te danar
Nada mais dá certo
E pra piorar
Os falsos amigos chegam
E pra te arrasar
Quem te governa não presta”.*

Roger Ribeiro
08 de novembro de 2011.

* Declare Guerra - Barão Vermelho

terça-feira, 18 de outubro de 2011

O vento em seus cabelos


Para Dona Yara.




Olho os seus cabelos de longe e imediatamente me vem a imagem do Everest, longos... esvoaçam levemente das pontas castanhas claras subindo por suas cerdas ao cume da cabeça, desnudando um branco alvo e brilhante que orna de forma quase mítica os sulcos do rosto que traduz a sabedoria do sobreviver.

Encantei-me ao perceber que não mais porás tintas nos cabelos, na verdade a idéia que esta nova realidade me passou é que não podemos passar tinta nos caminhos, nem os percorridos muito menos os por percorrer. Senti-me perfeitamente bem, feliz ao constatar que tantos anos se passaram e tanto ainda tens a me ensinar.

Como sempre, um ensinamento de quem sabe por onde navega a possibilidade do conhecimento, sabe que nem sempre as palavras são as transmissoras da sabedoria, às vezes é difícil para quem não o conheceu entender como um andarilho urbano podia dizer algo tão simples que, para muitos hoje, pode parecer banal, piegas até: “gentileza gera gentileza”, mas, para quem conheceu o olhar e o desprendimento daquele ser, sabe o quanto esta frase se insere feito punhal nas ruas por onde andou.

Mais uma vez não foi a palavra, desta vez foi a simples visão de como tão miúda, tão pequena tornastes a mais imponente muralha do nosso planeta, o saber que se levanta da terra rumo ao céu.

A sabedoria acumulada e tão gentilmente partilhada transformou-te em um impávido e absoluto habitante da Terra. Dos pequeninos pés, da cor do recôncavo, até a neve dos cabelos que tornam o ar rarefeito, as idéias leves, tão leves e fluidas que podem penetrar nos castelos mais sombrios, nos corações mais petrificados arejando as mentes mais conturbadas.

O vento apenas coopera na expansão desta visão, a neve do topo de sua cabeça não gera frieza, muito pelo contrário, produz à possibilidade de contração, de condensação, o vento há de, ao passar pelos fios dos seus cabelos, espalhar sobre a forma de chuva a possibilidade de diluir as verdades, os dogmas, a ilusão de que alguém, além de você mesmo, acredita nos seus moinhos, seja você quem for.

Aquele mínimo corpo, gigantesco Everest, sabe que do seu topo as civilizações tornam-se apenas e somente imensos formigueiros, indistintos em seus detalhes, máximos em suas possibilidades de arregimentadas cruzarem florestas e desertos.

Sentado com minhas velhas botas pretas, mal engraxadas, na bela (e espero eterna) balaustrada do Porto da Barra que aponta para a Ilha de Itaparica, neste fim de tarde roxo-azulado, todas estas imagens e aprendizados me invadiram ao ver um objeto, que não quis identificar, plainando sobre o mar da Baia de Todos os Santos, entre o meu olhar postado sobre a branca balaustrada e a ponta da Pirâmide da Eubiose de Mar Grande, soou pleno nos meus ouvidos:

“Minha senhora
Onde é que você mora
Em que parte desse mundo
Em que cidade escondida
Dizei-me que sem demora
Lá também quero morar (...)”*


Assim, assisti à noite cair em paz, enegrecendo a linda Baia. Saí distraidamente sorrindo, lembrando de quanta, ao certo, felicidade te traria, minha muralha do Everest, saber que seus cabelos brancos apontam para um horizonte aonde não há tinta que encubra as cores da vida.

Nem que para isso se leve uma vida para saber.

Roger Ribeiro
18 de outubro 2011

*Minha Senhora – Gilberto Gil

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Uno? Não mais


Andava com a mente um tanto quanto turva. Os fatos não o ajudavam e não conseguia entender como havia entrado naquela espiral de turbulências que afetaram seu estado de espírito de forma abrupta e covarde.

Em todos os locais que freqüentava era sempre tido como alguém de muito equilíbrio e de um senso de justiça que o fazia de referência, jamais imaginou poder ser vítima de uma trama cósmica, ou seria cármica? Mas de uma coisa tinha absoluta certeza, tratava-se de algo de outro planeta, outra galáxia, outro mundo!

Agora aquele ser lúcido vagava como uma alma penada, a mente sempre em desalinho, para concentrar-se nos afazeres do cotidiano era um exercício hercúleo, ao fim do dia estava exausto. Sua aparência antes sempre muito bem cuidada cedeu lugar a um flagelo humano, estava praticamente irreconhecível, todo o seu ciclo estava apreensivo com seu estado e a pergunta rondava a cabeça de todos: o que houve? Que raios aconteceu com ele? Porém, resposta não havia.

Às vezes passava o dia vagando, andava a beira mar do Farol da Barra ao Farol de Itapoã, outras vezes sentava-se em um banco da Praça da Avenida Centenário e passava o dia olhando fixamente para um ponto qualquer. Nada percebia, nada o afetava, havia perdido qualquer contato com o seu ser sólido, vivia em um mundo paralelo, onde apenas as sensações existiam.

Disso tudo fiquei sabendo apenas depois, pois até aquele fim de tarde de domingo, nunca o havia visto. Mas o acaso ou os predeterminantes (depende de sua leitura sobre os fenômenos da vida humana), fez a diferença e colocou-nos um no caminho do outro.

Andava eu um tanto quanto distraído e apressado, estava meio atrasado para o meu encontro musical semanal com os amigos, assoviava o chorinho “André de Sapato Novo”, que iria sugerir para colocarmos no repertório, quando um bela moça sentada na grama tocando violão tomou toda a minha atenção, concentrei e tornei-me só ouvidos para captar o que ela tocava. A concentração era tal que nada mais percebia, apenas ouvia aquela voz miúda, porém bem afinadinha, alguns passos mais e consegui a audição total:

“Casa verde, portão aberto
Vejo à frente o deserto
Até o circo chegar
Pai, mãe, eu vou partir
Tem um circo em frente a casa
Pai, mãe, lá fora o sol é radiante
e meu vestido esvoaçante
tem um corte
Um grande beijo
Um abraço forte
Eu vejo o sol pela janela”*

Era uma bela moça, cantando uma bela canção, e com uma emoção, um sentimento tão límpido, que reduzi a velocidade do passo para poder aproveitar o máximo daquela situação. Foi exatamente aí que ocorreu:

Pruft ...cabrummm, lona, lá estava eu, violão e tudo mais esborrachado no chão, e pior entrelaçado com uma ser que nunca havia visto em minha vida. Após tomar ciência de que havia pisado e tropeçado naquele ser que até aquele momento julgava estar ali em paz e em segurança, até que minha distração o fez, a ele e a mim, retornar abrupta e sem escala para o chão úmido da pista de caminhada da Praça.

- Ôh! Não olhas para onde anda? Ou não andas por onde olhas? Veja (mostrou-me a perna que sangrava, não muito, mas sangrava).

Sem graça olhei-o e... O que mais podia fazer? Levantei-me e pus-me a ajudá-lo a levantar.

- Vamos (falei), logo ali tem uma farmácia, vamos lá fazer um curativo.

- Não há curativo que estanque, que cure... Veja (apontou para as árvores), elas estão aqui faz tempo, já assistiram de tudo, me contaram coisas que jamais poderia imaginar, dores e alegrias, risos e choros. Não tem jeito amigo, não tem cura!

- Mas o que é isso?!Porque tanto niilismo? Veja, olhe ao redor! Veja aquela menina mesmo ali, tocando e cantando, apontei...Olhei...Olhei novamente e... Ué! Cadê ela?

- Ela quem? Ali não havia ninguém...

- Como não? Eu vi e ouvi. Aliás, por causa dela que esbarrei em você.

- Vamos pegue seus apetrechos, a noite vem chegando e o destino ainda está muito longe.

- Como assim? Que destino? Não estávamos indo juntos a lugar algum! Aliás, se não me falha a memória, eu não o conheço. Assim como podemos estar indo...

- Você realmente, continua o mesmo... Por isso me desprendi de sua pessoa...

-Hã? Mas, espera aí... Do que você está falando? Das duas uma, ou você é louco ou eu estou ficando louco.

Do nada vi o vulto da menina que cantava passando ao meu lado, olhei-a e ela me mandou um sorriso largo, lindo! Seu rosto inteiro sorria para mim...

- Veja! (virei rapidamente pra o meu novo amigo) Não falei que ela estava lá? Olhe... Ôxi, cadê você?

Olhei trezentos e sessentas graus e... Nada. Como podia? De repente senti um desconforto na perna e vi que ela sangrava (pouco, mas sangrava), olhei novamente o vulto da menina e ela também já não mais estava.

A noite havia caído definitivamente. Peguei minhas coisas e voltei a caminhar, agora sem pressa, a sensação no meu peito era que nunca mais seria uno. Neste momento percebi o meu novo amigo apoiado no meu ombro direito, e a menina cantora abraçou-se à minha cintura esquerda.

Voltei a crer na cura.

Roger Ribeiro
13 de outubro 2011.
*Circo - Ronei Jorge

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Apenas uma manhã



Acordei com a frase de uma canção na cabeça e esta passou a conduzir os caminhos dos meus pensamentos como se em um lapso de tempo, um universo paralelo se apoderasse do meu ser. Já não possuía autonomia alguma sobre mim, aliás nem mesmo uma breve referência de quem era possuía, minha mente estava a serviço isso era fato.

“Devia ser proibido uma saudade tão má, de uma pessoa tão boa”*.

Esta frase começava a construir um universo particular em minha mente, sempre concordei com ela, mas era algo que reinava apenas no campo lúdico poético, porém hoje pela manhã tudo se transformou. Toda a realidade existente passava por este dizer. Sim “uma saudade tão má de uma pessoa tão boa”.

De posse de minha mente, construções de idéias se consolidavam, inversões pertinentes que jamais havia imaginado tornavam-se óbvias de um momento para o outro, desta forma também se tornou real que saudades boas de pessoas más também são reais, porém deveriam estar no rol das proibidas, afinal para que perder tempo com estágios sólidos belos de elemento sutis ruins?

Esta falta de posse sobre mim mesmo começava a me agoniar, não poderia responder mais por mim? Esta situação poderia acabar por gerar condições conflitantes, principalmente com pessoas próximas que de uma hora para outra não mais entenderiam minhas supostas ações... Supostas sim, pois eles não sabiam apenas eu possuía a consciência de não se tratar de mim.

- Mas quem você pensa que é?

Esta voz veio de algum local indefinido. Na verdade não sabia se a pergunta se dirigia a mim, ou ao dono de meu ser? Ou sei lá o quê? Só sei que respondemos juntos, eu e minha cabeça dominada por uma frase:

- Como assim? sou o que não deveria! Êpa, espera aí oh voz, quem respondeu isso não
fui eu, foi a outra voz. Mas com quem finalmente você quer falar?

Virei para um lado, depois para o outro e finalmente vi a voz, ela era realmente poderosa e elegante. Postava-se como se pela eternidade estivesse ali, mas tenho certeza de que ontem, pelo menos ontem, ali ela não estava, disso, pelo menos, tenho certeza.

- Olha meu caro é melhor você ficar calado, faz o seguinte fica aí na sua, olha só (falou minha cabeça e, dirigindo-se àquela outra voz continuou) ele acha que tem alguma certeza...

Os dois: a voz e a minha cabeça caíram na gargalhada e apontavam para mim, ela, a voz, de fora pra dentro e minha cabeça de dentro pra fora.

- Como assim fica calado? Olha me deixa colocar as coisas aqui em pratos limpos: primeiro o ouvido é meu, sua voz petulante e eu escuto o que eu quero e, quanto a você, esta cabeça é minha e não me recordo de tê-la sublocado para ninguém, portanto vá pegando seus paninhos e dando o fora daí, pois tenho de me adiantar para o trabalho.

Mais uma retumbante gargalhada! Desta vez percebi que novas vozes apareciam e uma briga se instalou, pois, meu olho esquerdo insistia em ver o que se passava de um lado e o direito, no lado oposto, discutiam de forma que a cabeça teve de intervir pra que não viessem a vias de fato. Meu Deus! Meus olhos foram ocupados, o movimento dos sem olhar haviam encampado os meus queridos olhos. Isso já estava passando dos limites.

- “Uma pessoa tão boa”, cabeça! Você não acha que poderíamos trocar esta condição?

- Claro voz!
Os olhos dirigiram-se para a janela, lá, perto das sete horas da manhã, uma multidão de transeuntes para lá e para cá, formavam um rio humano que cheirava a pasta de dente de hortelã...

- Vamos fazer o seguinte voz, a boa fica e trocamos por um punhado de mais ou menos ou um caminhão de más!

- não seja tão cruel... Olhos por favor, não sejam preconceituosos no olhar, vejam todos com os mesmos olhos.

Mas era impossível, afinal enquanto o esquerdo mirava os executivos o direito só tinha olhos para os estudantes, todos começamos a ficar meio tontos, e para piorar o nariz, e só aqui percebi que também já não me pertencia, anunciou que não suportava mais aquele cheiro de hortelã.

Corri para o chuveiro e mergulhei em uma ducha forte e gelada, quem sabe assim a realidade em real se transformava?

“Devia ser proibido uma saudade tão má, de uma pessoa tão boa”... Olhei para cima de onde vinha a água e... Não era possível! Em vez de gotas de água o que caia sobre o meu (meu! Será?) corpo eram letras que ao virar a cabeça os olhos liam claramente d e v i a s e r p r o i b... e assim por diante. Já era demais, havia passado dos limites.

Sai do chuveiro, coloquei rapidamente uma roupa, peguei meus livros, abri a porta olhei para todos eles que debatiam efusivamente sobre o que deveria e o que não deveria ser ou não ser proibido, fechei todos os meus sentidos e bradei:

- Quando voltar não quero ver nenhum de vocês por aqui. Tá entendido? Bati a porta e sai para a rua.

Da rua olhei para cima, mirei a minha janela e avistei todos pendurados na janela gritando em uníssono:

- (...) Dizer adeus, ir embora
Você partir e ficar
Pra outra vida, outra hora
Devia ser proibido...*

Roger Ribeiro
23 de setembro de 2011
*Devia Ser Proibido – Itamar Assumpção.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Amanhã



Não soube o que aconteceu. Avistei pela última vez entrando no coletivo que se dirigia ao centro da cidade, daí em diante, aonde desceu? Para onde se dirigiu? O que
fez da própria vida...? Não sei dizer, o fato é que sumiu, desapareceu de vez, virou fumaça.

Enquanto todas estas dúvidas pairavam em minha cabeça, continuava, sentado na biblioteca com aquele livro do “Nuvem Cigana” em minha frente, porém não conseguia absorver nada, lia as letras e estas não formavam palavras, as palavras não formavam frases, as frases não formavam períodos, enfim o abstrato não se materializava em nada e isso me deixava efetivamente desnorteado, desde pequeno desenvolvi uma verdadeira aversão ao nada. Afinal nada é muito pouco.

Mas, foi assim mesmo, do nada ela entrou na sala de leitura, aliás, antes dela efetivamente entrar o que entrou foi o seu cheiro... Um cheiro forte de mata ao amanhecer. Imediatamente ergui os olhos, não foi nenhum sacrifício, afinal do “Nuvem Cigana”, nada absorvia mesmo - que me perdoem os velhos vanguardistas cariocas - mas a nuvem não chovia no meu cérebro.

Em pé à porta estava ela, percorri a sua geografia e fui me divertindo ao vê-la. Seu cabelo estilo “joãozinho”, que junto a um óculos daqueles de armação grossa e grande que normalmente as mulheres só aceitam sobre o nariz quando escuros na arreia da praia, mas os dela não, eram branquinhos, translúcidos e seu aro inferior praticamente moldava um leve sorriso de quem ainda observa se estava no local certo, na hora certa e, isto bem mais subjetivo, fazendo a coisa certa.

O ponteiro de segundos mal se moveu, porém as horas voavam, será que todos viam o que eu via? Bem, uma coisa é certa ela não via nada, pois seu olhar por de trás das grandes lentes brancas não fitavam nada... Olhava absorta para a parede de livros sem procurar efetivamente nada. Seus passos relapsos dirigiram-se ao recepcionista da sala e com a voz empostada e em tom alto perguntou:

- Ele já chegou?

- Desculpe senhora (falou o recepcionista), de quem a senhora está falando?

- Por favor, não se faça de desentendido. O senhor escutou muito bem...

- Sim, não estou negando, realmente escutei, porém não sei há quem a senhora se refere.

- Ele...Ela...

- A senhora por acaso já observou nas outras salas se ele, ela, não é assim? Por lá não está?

- Creio que o senhor está querendo esconder algo de mim. Marquei aqui, veja o relógio! Marcam exatamente 9:35 desta quita feira, 25 de agosto de 2011. Não existe equívoco algum tudo foi milimetricamente acertado.

- Minha senhora! Aqui se escondem nestas páginas destas centenas de livros, muitas histórias, muitos encontros e desencontros, porém como a senhora pode perceber, só a senhora sabe com quem marcou, sendo assim como eu posso saber se já chegou ou não? É homem ou mulher?

- Não importa o que espero não tem sexo. Vou caminhar pela sala, talvez não tenha observado o suficiente.

Andou pela sala tentando disfarçar, olhava atentamente a todos, e quando a pessoa se sentia observada, desviava o olhar, fingia ajeitar o cabelo, tossia, ou seja, disfarçava, aliás... muito mal.

Retirou um tipo de echarpe muito fino de motivo indiano da bolsa e cobriu os cabelos curtos e arredondados, olhou-me atentamente, levantei a vista e, pela primeira vez não tentou disfarçar, permaneceu esquadrinhando cada centímetro de meu rosto, minha expressão. Aproximou-se e respirou fundo, queria inalar o meu aroma. Na mesma comprida mesa em que eu estava havia uma jovem estudante atribulada com suas pesquisas escolares.

Ela sentou-se ao lado da minha vizinha estudante, olhou-a fixamente, puxou-lhe o livro que lia e quando esta levantou a vista para saber do que se tratava...

- Você está aqui há muito tempo? (disparou ela à jovem).

- Desde as 8:00, quando abriu, porque? (respondeu-lhe de forma ríspida característico dos jovens estudantes)

- Você então deve ter testemunhado a chegada?!

- Que é isso minha senhora? É algum tipo de brincadeira?

- Não brinco com coisas sérias. Foi visto entrando em um coletivo em direção ao centro da cidade, portanto, claro que já deve está aqui.

- A senhora é louca?

A jovem levantou assustada dirigiu-se ao recepcionista e falou algo inaudível para nós. Antes, ao ouvi-la falar de alguém que havia se transportado em direção ao Centro e não havia vestígio, levantei a vista e fitei-a. Ela olhou-me novamente e disparou:

- Você também aguarda, não é mesmo? Eu sei que sim, seu cheiro é de quem aguarda.

- Não sei se falamos da mesma coisa, mas faz tempo que soube que transitou em direção ao Centro, mas aqui não chegou.

Ela sorriu de forma leve e serena, ergueu-se, caminhou lentamente, como se flutuasse, até a mim, fitou-me mais uma vez atentamente, pegou em minha testa pressionando-a para trás, passou o dedo entre meu nariz e meu lábio superior, balançou negativamente a cabeça, virou-se e saiu lenta e levemente andando e dizendo-me:

- Se Amanhã chegar, por favor, diga-lhe que Hoje esteve aqui.

Dirigiu-se à estante e, se não fiquei louco, achei que havia entrado em um determinado livro. Balancei a cabeça, apertei os olhos para certificar-me de estar acordado e são. Para que ninguém notasse e pensasse tratar-se de um louco, deixei o tempo passar... Levantei-me e discretamente dirigir-me até a estante. Puxei o volume que, para mim, ela havia entrado, sorri ao ler: CRONICA DE UNA MUERTE ANUNCIADA - GARCIA MARQUEZ, GABRIEL. Estava tudo explicando.

Roger Ribeiro.
25 de agosto de 2011.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Arquitetura do Ser

Para uma jovem avó, que me ensinou que o verdadeiro arquiteto é o poeta - a verdade.




"Responder a perguntas não respondo.
Perguntas impossíveis não pergunto.
Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.

Toda a minha experiência, o meu estudo,
sou eu mesma que, em solidão paciente,
recolho do que em mim observo e escuto
muda lição, que ninguém mais entende.

O que sou vale mais do que o meu canto.
Apenas em linguagem vou dizendo
caminhos invisíveis por onde ando.

Tudo é secreto e de remoto exemplo.
Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
E todos somos pura flor de vento".*




Andava distraído, não havia um destino exato, era um caminhar misto de desocupação, contemplação e exercício. O dia era chuvoso, uma chuva fina, aquilo que os paulistanos chamam de garoa, umedecia a cidade e, naquela praça gramada e repleta de árvores, uma das poucas remanescentes da cidade, esta friagem era ainda mais sentida.

No ouvido o fiel fone ligado ao rádio, que de tanto ser o companheiro do solitário caminhador já havia sido batizado, ironicamente, de Orlando Silva – “O Cantor das Multidões”. Pois, foi exatamente dos poderosos pulmões, ou melhor, dos poderosos transistores de “Orlando” que lhe veio à surpresa. Havia, ele não sabia quem, transformado uma lenta e sensibilíssima canção de amor em uma levada funk pop, sem o menor sentido.

O nosso caminhador tomou tal susto que chegou a parar, ele não acreditava naquilo, como podia alguém transformar uma canção como “A Linha e o Linho” naquilo, não era possível, é algo impensável, para você ter uma idéia seria como retirar “Moon Over Bourbon Street” da obra “Bring On The Nigth” - o álbum duplo pós Police - e colocá-la em um arranjo típico do “Chiclete com Banana” (a banda baiana). Nossa! Como seria possível tamanha falta de sensibilidade?

Ele balançava a cabeça em negativa, estava realmente incrédulo com o que lhe invadia os ouvidos. Pensava: será que eles não percebem que esta poesia possui música própria?

Não agüentou, retirou os fones de “Orlando” do ouvido e passou a olhar aquela paisagem fria e úmida, algo quase londrino em plena Salvador. Pessoas passavam por ele com vestimentas de “malhação” sempre muito coloridas e ar de ausência, afinal quem pode estar em atividade física em plena quinta-feira às 9:00 horas desta manhã chuvosa de alguma forma se sente ausente, para o bem ou para a dor, do mundo robótico dos “normais”.

Continuou sua caminhada e agora mais do que nunca estava alheio a tudo que lhe cercava. Apenas a imensa interrogação lhe ocupava a mente: como podem ter feito aquilo?

Caminhando mais que distraído acabou por esbarrar em uma árvore; bateu caiu... Quando recobrou o mínimo de consciência estava deitado em um chão molhado, rodeado de olhares que lhe interrogavam de cima para baixo:

- Você, você, cê, c... Está, está, tá, t... bem, bem, bem be...b...?

Eram muitas vozes que lhe arrebatavam o espaço que até então era exclusivo de “Orlando”, balbuciou meio que embriagadamente:

- T... tudo bem... mas, algum de vocês pode me dizer como pode ser?

- Moço,olha o seu rádio...Caiu mas já testei, pra sua sorte ele tá funcionando.

- “Orlando”! Nossa não sei como te agradecer...

Olhou aquela mão fina e morena jambo, como as melodias de Jards Macalé, que lhe estendia o seu grande e único companheiro e foi lentamente reparando aquela menina encoberta por um vestido vermelho que lhe realçava a pele morena e o sorriso que lhe reduzia os pequenos olhos, que, menores ainda ficavam por detrás daquele óculos de lentes grossas.

- Ôcê poderia ter se machucado...

- Pior, muito pior, menina cor de jambo, eu poderia ter decretado a morte de “Orlando”, Deus do céu!

- Quem?!!

- “Orlando”, que você salvou para mim!

- Ah! Seu rádio chama-se “Orlando”?

- Sim, “O Cantor das Multidões”! E você, mineirinha né? Tem nome?

- Não sou mineira, morei muito tempo lá, mas sou daqui, de qualquer forma você pode me chamar de mineira, fica-me bem... e eu mato um pouco a saudade.

Passaram a andar juntos, ela, como boa mineirinha, matutando disparou:

- Mas o quê houve com você?

Ele olhou-a com uma ternura de séculos sorriu e disse:

- Os tolos pensam que podem ludibriar os poetas!

Roger Ribeiro
04 de agosto de 2011

*SONETO ANTIGO – Cecília Meireles

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Se é verdade?




All across the town, all across the night
Everybody's driving with full headlights
Black or white turn it on, face the new religion
Everybody's sitting 'round watching television!*



- Um abará só com pimenta, por favor.
- Dois e cinqüenta. Vai beber alguma coisa?
- O universo em um só trago!
- Humm... tome cuidado com o que você diz, as palavras são fortes, meu “fiu”.
- É... Então quero um milhão de dólares, ou como diz o saudoso Itamar, “ou coisa que os valha”.
- Só te digo uma coisa, cuidado!
- Valeu, até amanhã!
- Inté! Não esqueça, vá devagar.

Esta baiana vem com cada uma... O que será que ela viu? (saiu pensando), daqui a pouco vai dizer que tenho de cozinhar não sei o quê, andar de ponta cabeça, branquear ovo de codorna, nadar até Itaparica, assoviar o samba de Tião Motorista, andar em barra de trapezista... Mas, o que eu queria mesmo era vestir uma roupa linda feita pela irmã da menina Maria, ah! Isso eu queria.

Virando a esquina do bar Cravinho no sentido Terreiro de Jesus Praça da Sé, do nada e, aparentemente, em nada, tropeçou. Abriu os braços, buscou algum tipo de equilíbrio, os passos em desalinho variavam entre retos e tangenciais, a situação foi ficando incontrolável, na busca do equilíbrio foi acelerando e cambaleando...

- vixi! Uma hora desta e já está neste estado, creioemDeuspai...(condenou a senhora que saia da Catedral Basílica da Sé).

Crianças riam, um estudante, tirando onda de intelectual, cantarolou a canção de Aldir Blanc, “O Bebado e o Equilibrista”, difícil era definir ali, o que era bêbado e o que era equilibrista. Coitado não havia ingerido nem uma gota de álcool. O ser humano realmente.

Chegou à Ladeira da Praça e, a esta altura, seu movimento já havia virado um moto contínuo, já não havia como parar, o abará sorvido trafegava no estômago como a centrifugação da máquina de lavar. Passou por seu Jorge vendedor de acaçá que ao ver a cena balançou a cabeça e sentenciou:

- Falou demais, pediu e não agradeceu! Hum... Agora a verdade vai ter de encarar.

E assim foi. Era como se houvesse um motor de poupa. ao mesmo tempo algo o impedia de cair, parecia que sua função não era ir ao chão. Por sua cabeça apenas a preocupação de manter o tosco equilíbrio, mas mesmo no momento do “desandar dos ponteiros” lembrou do samba do Moreira e não conseguiu travar os dentes ao cantarolar, “descendo no samba a ladeira da Praça”, só que (pensou), no caso era descendo no tombo a Ladeira da Praça...

Pluuff, bummm. Caiu de costas na calçada. Olhou para cima e viu um rosto redondo e negro, ornado por uma vasta seqüência de límpidos e brilhantes dentes brancos a sorrir.

- vai prá onde meu branco?

Era uma negra gorda de semblante feliz, que ao ver a situação resolveu intervir, colocou-se à frente do caminho do nosso equilibrista e estancou-o entre os fartos seios e o farto abdome, foi tiro e queda, ou melhor, bater cair.

- Moça, affi... Não sei nem como te agradecer, achei que só ia parar em Itapoã.
Após uma larga risada que estrondou da Bahia a Minas Gerais, ela esticou o braço e de um só golpe o colocou de pé, ajeitou-lhe a gola da camisa, passou a mão nos seus cabelos e, sem perder jamais o sorriso, falou-lhe bem baixinho no “pé-de-ouvido”:

- Tem alguém te espiando!

- O quê?

- Oxi, vou ter que desenhar?

Olhou de um lado para o outro, notou que a vida continuava a mil, ninguém mais o notava, podia retomar o seu dia de onde havia parado.

Lembrou que a última coisa que, lúcido, havia pensado foi sobre a roupa da irmã de Maria. Olhou para aquela roupa de escritório que usava, lembrou de quantas rezas executara, quantos pedidos ao pé do altar por aquela vaga!

Meu Deus e agora onde estava? Que sentido aquele momento lhe proporcionava? Quantos documentos lhe restava? Quantos minutos de vida lhe faltavam...? E aquela roupa que lhe apertava!

- Moço, moço?!

Sentiu uma mão que lhe pegava, ouviu uma voz que lhe chamava, um olhar que lhe fitava, um frio que de repente do nada lhe arrebatara... Virou-se para quem lhe falara e disse apressado:

- Não adianta pedir, não tenho nada.

- Não é isso (disse-lhe a voz do menino que lhe pegara), apenas acho melhor por uma roupa, pois o poeta da Praça já está escabreado, a moça das flores apavorada, a devota de São Cristovam descabelada e a polícia tá com cara de que não tá gostando nada, nada!

Ao ser grampeado pelos “Homens da Lei”, seguro pelos braços e sem mostrar resistência, olhou para o alto do edifício, e viu na janela do décimo andar uma multidão se apinhando para olhar! Sorriu e, nu a todo pulmão, começou a cantar:

“Não pare na pista / é muito cedo prá você se acostumar”.**

Na cabeça a certeza: o movimento necessita do desequilíbrio!

Pela primeira vez ouviu-se um trovão soar em forma de um gostoso gargalhar.

Roger Ribeiro
07 de julho 2011.

* London's Burning -The Clash - Joe Strummer e M. Jones
** Não Pare Na Pista - Raul Seixas / Paulo Coelho

terça-feira, 5 de julho de 2011

Uma! Talvez uma



Era uma cidade diferente, não desconhecida, não isso não! Aliás, muito pelo contrário, era uma velha cidadela conhecida. Fazia um frio gostoso, nada abaixo de dezoito graus, o que fazia daquele caminhar entre prédios imperiais algo extremamente prazeroso.

Museus, teatros, cinemas, bares e restaurantes, tudo muito elegante sem perder o calor do abraço. Não era uma elegância fria de salão, era a imponência do belo e pleno, tudo composto para que a paisagem humana transitasse como notas musicais em uma partitura. Afinal não existe função para um pentagrama que não seja pendurar o tecido musical.

Aquele fim de tarde azulado pedia uma parada na padaria para um café coado, a conversa no balcão era intensa, porém calma e tranqüila, não havia alterações, alguns falavam de política, outros de futebol, praia, seleção, enfim era um universo múltiplo sem dúvida.

Após o café continuamos andando eu com minhas surradas botas pretas e meu amigo “Barba”, sempre com seu olhar atento, buscando fazer uma relação entre a larga avenida em que transitávamos e o que poderia ser aquele Vale no período pré-cabralino. Realmente um exercício intenso de imaginação e, claro, muito romantismo idílico.

Por um instante “Barba” parou. Senti os seus olhos se encherem d'água:

- O que houve? Perguntei-lhe.
- Olhe para frente...

Olhei e lá estava uma enorme e bela edificação religiosa.

- Bela não?
- O mais belo é o que foi refeito aqui.
- Como assim?
- Aquela igreja é a Candelária...
- Sim... Agora lembro; o local da chacina dos meninos.
- É... Veja o que fizeram! O largo está límpido, colocaram um monumento ao ocorrido, clarearam a região, mas, acima de tudo, mantiveram o luto, não empurraram para debaixo do tapete os fatos, eles estão ali, esta sociedade assume a sua culpa e não quer fazer esquecer, mas sim expor para não torná-la.

Calei-me e permitir-me refletir. Continuamos andando lado a lado, porém nos permitimos apenas calarmos, passamos pelas pessoas, pelas coisas, algum momento lembrou-me das poesias de Arnaldo Antunes e comentei com “Barba”, ele sem nem mesmo virar-se para mim subiu no pedestal da estátua e:

O buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar aqui
com um olho aberto, outro acordado
no lado de lá onde eu caí

pro lado de cá não tem acesso
mesmo que me chamem pelo nome
mesmo que admitam meu regresso
toda vez que eu vou a porta some

a janela some na parede
a palavra de água se dissolve
na palavra sede, a boca cede
antes de falar, e não se ouve

já tentei dormir a noite inteira
quatro, cinco, seis da madrugada
vou ficar ali nessa cadeira
uma orelha alerta, outra ligada

o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar agora
fui pelo abandono abandonado
aqui dentro do lado de fora*


- Desce daí rapaz...(falei)
- Olha lá como fala, este local merece uma poesia!

Refiz-me do susto e não tive outra opção a não ser concordar, sim aquele local merecia uma poesia...

Senti a mão dele no meu ombro que saiu me puxando,adiantou o passo. Saímos da fase contemplativa como se tivéssemos um compromisso inadiável, novamente não deu tempo nem mesmo de tomar fôlego, nem de falar nada. Quando me vi estava entrando em um prédio lindo, onde havia várias exposições, salas de espetáculo e uma livraria maravilhosa encostada à lanchonete.

Subimos ao terceiro andar e quando me vi, já estava sentado à terceira fileira de uma simpática sala de fazer rir e chorar.

- “Barba” o que teremos aqui?
- A tradução!
- Como assim...?
- Não sei o que está acontecendo com você, estás desconectado!

Não deu tempo de responder, as luzes se apagaram e após aqueles famosos cinco minutos de não pode isso, desligue aquilo, temos isso e aquilo, o silêncio se fez. Dois vultos entraram no palco sentaram-se. Um acordeom bem sutil junto a uma Gibson semi-acústica vermelha encheu de uma música plena, porém leve e suave o ambiente

As luzes foram se ascendendo lenta e progressivamente. Da penumbra para a claridade ao centro do palco estava um ser prateado de sandálias de gladiador, lá estava ela soberana. Antes que emitisse qualquer som, sua presença se fazia, como na retórica de Gilberto Gil, enchendo de si todo o ar da sala de sonhar.

Sobre a cabeça uma cabeleira que parecia ter sido emprestada por alguém de diâmetro, raio ou sei lá com que medida se analisa cabeça e cabelo, maior do que ela. Era realmente algo impossível de não se ver, de não se admirar.


Cantou um blues nordestino, triste... daqueles de doer nos ossos, e seus olhos brilhavam como lagoa em lua cheia onde sabe-se que deve-se mergulhar, porém jamais se sabe aonde vai dar.

Mergulhei.

Roger Ribeiro
05 de julho de 2011

*Os buracos do espelho - Arnaldo Antunes

quinta-feira, 2 de junho de 2011

NORMAL MEU CARO! NORMAL.


Saiu sem olhar para trás, aliás, não olhava nada, seus olhos miravam o chão, porém sua visão estava etérea, não enxergava nada a não ser as palavras. Precisava arrancar de si as palavras exatas e, sabia bem claramente, que estas não queriam sair, teria que arrancá-las, expulsá-las de dentro de si.

Sabia que sangraria, e por não ter o costume do sangue, não tinha certeza se sobreviveria. A cada passo seu peito ia apertando, seu pulmão o sufocava, sua respiração lhe inebriava, sentia vertigem pela existência e ao mesmo tempo nada lhe garantia existir. Sentia-se inexistente.

Passava pelas pessoas como se ninguém lhe visse, jogava-se furiosamente contra o ar era como se este fosse uma montanha que tinha de deslocar para poder mover-se.

Lembrou-se de milhares de músicas ao mesmo tempo e anteviu, ao olhar uma vitrine, que sua cabeça iria estourar. Não havia sincronia em nada no seu corpo, seu andar não estabelecia relação com a respiração, o olhar com a audição, os pensamentos com os batimentos cardíacos, o que antes era oco tornou-se solidamente preenchido, o que devia ser sólido se desmanchava, nada escapava, nada.

Atravessou a rua como um suicida, gerou protestos, não notou nada, apenas sentiu um braço fino e quente enroscar-se em sua cintura e conduzi-lo a algum lugar. Qual? não viu. Foi deitado por este braço e sentiu a umidade que identificou ser de grama, permitiu-se estar totalmente impotente frente à gravidade, tombou e pousou sua cabeça lentamente sobre um colo, qual? Não sabia a quem pertencia. Fechou os sentidos e sentiu um desfalecer de alívio, apenas escutou pelo interior do colo que lhe abrigava, o vácuo racional do solfejar de uma canção:

Well I followed her to the station
With a suitcase in my hand
Yeah, I followed her to the station
With a suitcase in my hand
Whoa, it's hard to tell, it's hard to tell
When all your love's in vain

When the train come in the station
I looked her in the eye
Well the train come in the station
And I looked her in the eye
Whoa, I felt so sad so lonesome
That I could not help but cry

When the train left the station
It had two lights on behind
Yeah, when the train left the station
It had two lights on behind
Whoa, the blue light was my baby
And the red light was my mind
All my love was in vain
All my love's in*

Despertou. Sua cabeça repousava sobre uma pedra negra e arredondada, a grama estava com um forte cheiro de noite, estava bastante confuso, não sabia a quanto tempo ali estava, levantou-se, olhou ao redor e avistou o que poderia lhe ser a solução, aproximou-se e perguntou:

- Tens água mineral?

- Só vendo coco.

- (vistoriou o bolso, certificou-se que possuia algumas notas) veja-me uma natural, por favor.

- Um real e cinquenta.

- Por acaso você sabe da pessoa que estava comigo?

- Desculpe senhor, mas chegastes sozinho, deitastes e apagastes, ainda fui até você saber se estavas bem? Você acentiu com a cabeça e nada mais falou.
Meu Deus! (pensou)O que teria acontecido?

- Que horas o senhor tem? Por favor.

- (o vedendor de coco, olhou no telefone as horas) 21:00.

Pagou e apressou o passo, estava atrasado...

Entrou em um local escuro e barulhento, recebeu muitos comprimentos, sorrisos, mas nada disse. Continuava com o olhar etéreo, estava em uma interface de tempo e espaço.

As luzes azuis e vermelhas se acenderam, se viu no centro do tablado alto, empunhando uma luzente guitarra verde. Permitiu-se, pela primeira vez naquele dia, olhar a realidade, tensionou com a palheta as seis cordas e vendo no salão centenas de corações expostos fora do peito bradou:

O meu cigarro apagou
Eu vou dançar o rock and roll
E o meu dinheiro acabou
Eu me liguei no rock and roll
E o meu cigarro, o meu cigarro
O meu dinheiro acabou
E hoje eu me liguei é só no
Rock and roll
E o meu cigarro apagou
E o meu dinheiro acabou
Posso perder minha mulher, minha mãe
Desde que eu tenha o rock and roll
Meu rock and roll
Posso perder minha mulher (rock and roll)
Posso perder a minha irmã (rock and roll)
Posso perder a minha mãe (rock and roll)
Posso perder até minha avó (rock and roll)
Posso perder minha mulher, minha mãe
Desde que eu tenha o meu rock and roll!**

Roger Ribeiro
03 de junho 2011.

*Love In Vain - Robert Johnson.
** Posso perder minha mulher, minha mãe, desde que eu tenha o rock and roll - Arnaldo Dias Baptista / Ritta Lee / Arnolpho Lima Filho (Liminha)

terça-feira, 10 de maio de 2011

Buracos de alma



- Vamos, anda logo... Levanta daí.

Confesso que me assustei, afinal estava, tranquilamente deitado em um banco da praça sob uma frondosa amendoeira, tentando tirar uma soneca compensatória por uma noite mal dormida e aquela voz, forte e grave, cortava, o até então, pacato som bucólico característico de praças arborizadas, para me trazer de volta à sombria realidade da condição humana!

Imediatamente achei tratar-se da Guarda Municipal e esperei o complemento do tipo: não é permitido deitar no banco, ou, Não é permitido dormir na praça... Mas, nada disso aconteceu, quando a voz soou novamente, já foi inquirindo:

- Desde quando usas barba? Estas se disfarçando? Fugindo da polícia? Ou fugindo de você?

Abri os olhos e vagarosamente fui observando aquele ser de pé ao meu lado. Botas pretas gastas, um dos “bicos” abertos, calça jeans surrada, camisa de meia branca básica, e uma barba grisalha que praticamente só deixava de fora a ponta do nariz e os olhos... Perguntei-lhe: e agora usas chapéu?

- O céu está desmoronando por isso agora uso chapéu.

Lá estava meu amigo Barba! Havia muito tempo que eu não o via... Senti um alívio ao ver seu, sempre gentil, sorriso para mim!

- Aliás, meu caro (continuou ele), estava te procurando exatamente por isso. Porque ainda não levantastes?

- Calma Barba, já vai...

- Veja como andas; você nem mesmo percebeu como nestes últimos tempos que os dias não estão sendo tão claros e as noites não estão escurecendo o suficiente, não foi mesmo?

- Te confesso que não reparei, mas também tenho tido dias muito confusos e atribulados, não tenho reparado muito as coisas.

- Pois este é exatamente o problema, você tem visto muito pouco e o pior, não deu crédito ao que viu, assim não tomou as atitudes e decisões que deveriam ter sido tomadas.

As coisas aqui fora são bem diferentes meu velho amigo, muito diferentes... Veja! Você nem reparou que o céu está despencando! Tá vendo aquele buraco ali? E aquele ali?

Olhei para cima e tomei um susto, era verdade, o céu estava cheio de buracos, o que será que estava acontecendo? Logo o céu?!

- Pois é o que eu estava te dizendo (continuou Barba), nem o céu agüenta mais esta humanidade e suas farsas, humanidade de humanóides sem o sentido filosófico, que isso fique claro!

Vamos levanta logo daí e vamos ali para você me pagar um bauru com um suco de laranja, que vou te explicar o que tenho visto e que você não viu.

- Colé Barba, tá sem grana?

- Não de forma alguma, mas pagar um lanche para um amigo é algo nobre dentro de uma amizade! Sendo assim, vamos ali à padaria que tem um sanduiche ótimo.

- Tá bom. Mas o que explica estes buracos no céu?

- Seus olhos.

- Ãh... Como assim?

- Você continua enxergando o mundo com os olhos internos meu caro!

- Barba, sinto ter de dizer, mas acho que as seqüelas dos anos 70s finalmente se revelaram!

- É nada, lembra de uma das últimas vezes que nos encontramos e você falava sem parar de um jantar que iria à noite?

- Caramba isso faz tempo heim...

- Pois, desde aquela época venho de longe te observando, e vi quando você começou a ficar sem cor, transparente, translúcido, flutuavas, parecia uma onda no mar... Só não se apercebeu que no mar existem os recifes para as ondas se espatifarem...
Por favor, um bauru e um suco de laranja sem açúcar.

- Barba acho que você está sendo dramático demais...

- Você acha mesmo? Você tá escutando? (apontou para a pequena caixa de som na parede).

De tudo se faz canção,
E o coração na curva de um rio...”*


Olhei para o lado e lá estava o bauru e o suco de laranja, mas o Barba já não mais estava, notei que havia mais um buraco no azul do céu.

Roger Ribeiro
10 de maio 2011.

* “Clube da Esquina II” - Lô Borges / Márcio Borges / Milton Nascimento

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Aff, eu devia ter ficado calado!



- Por favor, o senhor poderia falar mais baixo?

- Mas como assim?! Não vês que estou pregando a palavra do Senhor? Acaso é um destes hereges?

- Não meu senhor, sou apenas um trabalhador, retornando do serviço neste coletivo...

- Pois irmão! Não há hora melhor para que permitas que o Nosso Senhor se aloje em seu coração...

- Meu amigo, não tenho nada contra seu credo, apenas pedi para que falasse mais baixo, pois estás berrando no meu ouvido...

- Vejam vocês que absurdo! (apontando aos céus) Foi por pessoas assim que ele foi torturado, crucificado...

- Olha, sinceramente, prá mim chega! Você fica aqui berrando no ouvido de quem quiser, eu vou descer.

Pééééémmmmmmmmmmmm, puxou a cordinha e desceu no primeiro ponto.

Resolveu ir caminhando prá casa, ao todo seriam uns 8 a 10 quilômetros, seria bom para desopilar de um dia tenso no trabalho. Não conseguia tirar a idéia da cabeça de injustiça global sobre seus ombros, afinal como podia, um ser como ele, tão capaz, tão inteligente e responsável, ter que labutar dia-a-dia em algo tão indigno?! Ficar recebendo e cumprindo ordens ínfimas, que nada afetariam a humanidade, nada, nada que ultrapassasse as paredes sujas daquele escritório bolorento...

Parou em uma pastelaria.

- Por favor, um pastel de queijo.
- Só tem misto, pizza e carne.
- O de pizza tem presunto?
- Presunto, queijo, tomate e orégano.
- Hummm,
- Sim, quer do quê? A fila tá grande e o senhor esta ocupando espaço!
- O problema é que não como carne e...
- Então, vá procurar uma pastelaria natural e me deixe em paz!
- Você é um animal!
- E daí?! Você não come carne mesmo... vá...

Antes que o atendente complementasse a frase, o lado direito e esquerdo de seu rosto foi atropelado por braços portadores de fichas que aos berros tentavam se comunicar com o balconista!

- Uma esfirra, um de pizza, duas coxinhas...

Era um tumulto, foi assim que, posso dizer, foi praticamente expurgado do ambiente e exposto em seu limite vegetariano na calçada onde uma senhora esquálida olhava-o balançando negativamente a cabeça. Imaginou o que poderia se passar pela cabeça daquela senhora... Dirigiu-se a ela falando:

- Não precisa me julgar... Tome (entregou-lhe o dinheiro que antes tentava trocar pelo alimento), vá lá e compre a porcaria que quiseres.

- Obrigado senhor, que Deus o dê em dobro.

Pela calçada continuou seu percurso, até chegar a uma pequena praça que nunca havia observado existir. Ali se sentou e começou a refletir sobre os seus dias, sua existência e de como passou a vida inteira tentando ser uma pessoa boa e que ao final sempre ressoava a mesma classificação sobre si: - Um coitado.
- Coitado é a puta que pariu...!

Brandiu do nada, a todo o pulmão.

Uma senhora que passava carregando a sacola com pão e leite, levantou-lhe a vista e com um ar sério de repreensão acusou-o:

- Velho tarado, não se respeita? Aqui é um lugar decente!

Olhou ao redor e enrubesceu, realmente ali só haviam crianças brincando acompanhadas por suas mães ou babas. Ficou sem ação ao ter a certeza de que havia externado o que, por anos a fio, apenas passava em sua cabeça...

- Perdão gente! Não foi minha intenção... Eu juro!
- De boas intenções o inferno está cheio (censurou uma destas senhoras portadora de criança).

- Desculpem-me!

Retirou-se apressadamente, sem se dar conta de que havia esquecido a gravata e a pasta de trabalho sobre o banco da praça. Andava apressado assim como disse o poeta Paulo Leminski, como se sentisse alguma dor. Na verdade sentia, era uma dor profunda, muito funda que não tinha a coragem de atormentá-la. Por fim fatigado, pensou que não poderia chegar em casa ofegante daquela forma. Parou mais uma vez, desta vez em um boteco, destes de esquina e pediu uma cerveja bem gelada.

- Engraçado nunca o vi por aqui... (comentou uma jovem, morena, não diria atraente, mas pelo trajar, diria ser bem oferecida).

- É verdade, não costumo freqüentar este local, aliás, prá ser sincero, nunca o havia visto antes...

- Aqui é bom! A cerveja está sempre gelada e temos um cardápio especial que fica logo ali dentro daquela saleta atrás daquela cortina roxa... (falou isso a menos de 5 centímetros do seu rosto, piscou o olho e saiu, fazendo um andar que ... Bem não é preciso nem dizer que ninguém anda daquela forma).

- Humm... Eu heim; que dia! (falou para si mesmo).

Pagou a cerveja e terminou o percurso. Chegou ao prédio verdinho em que morava, respirou fundo para superar os três andares de escada, subiu, abriu a porta e... Lá estava ela, sua querida mulher, com ar de exausta após também um dia puxado de trabalho... Estava enfim salvo. Ela o olhou,olhou, mirou e disparou:

- Ôxeee, cadê a gravata?
- Hã...
- E sua pasta de trabalho? (aproximou-se e...) Mas que cheiro de perfume é esse? (apalpou-o cheirando-o e...) E cadê a sua carteira? Tá suado, cheirando perfume barato e cerveja...Olha...

- Amor não é nada disso... Foi um dia... Senta aqui que vou te contar...

- Contar coisa nenhuma... Bem que Creuzinha sempre me alertou... Velho tarado!

- eu?! Vocês é que vivem inventado coisas...

- Inventando?! Tá me chamando de mentirosa?... De mentirosa é...?!

Crashhh... foi-se a garrafa d’água, cabrumm (vaso), splasshhh... brawummmm, voou mais de metade da casa pela janela... E o grito ecoava sem parar...

- Mentirosa é? Seu velho tarado...

O vizinho aumentou o som para nada ouvir...

“Meu bem
Já não precisa
Falar comigo
Dengosa assim...”*


Roger Ribeiro
14 de abril de 2011
*gatinha manhosa – Erasmo Carlos

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Façamos um Brinde!





Dia 31 de janeiro;
é dia de um baiano retado.
-



- Saúde! Muita saúde!
- Dinheiro! Felicidade! Saúde, sim saúde!
- Ao Baêêa!!
- Nada, aqui, só dá o Leão!
- À vida! Todos de pé, vamos lá... À vida!

O retorno veio rápido e certeiro; uma voz cambaleante, verdadeiramente embriagada, vibrou do último banco do balcão.

- Nem saúde, nem dinheiro, nem felicidade, nada! Nada disso, só e apenas uma coisa é fundamental para se viver nesta Vila dos efes gregorianos; humor, muito senso de humor meus jovens, nada mais que isso, aliás, sem ele o destino é um só: acabarás louco, aluado, doido varrido!

O silêncio se instaurou. O local não estava muito cheio, e o barulho que até então fazia lembrar estarmos em uma taberna contemporânea, vinha exatamente daquele enfileiramento de mesas onde, mais ou menos, quinze adolescentes tentavam brindar a alguma coisa que não se definia.

O silêncio foi quebrado em fim com uma zoada seca: scapufff! Todos olharam e era o nosso querido interpelador de brindes que havia despencado do seu banco e resmungava algo, acho que, em “aramaico arcaico” estatelado no chão.

Alguns meninos levantaram na intenção de socorrer quando a voz de dentro do balcão intercedeu:

- Não se apoquenta não criança, é assim todos os dias a mais de quinze anos, ali é o lugar dele. Vê aquela obra ali... Pois, tive de mudar o toalete de lugar, pois a entrada do anterior era exatamente onde este ser deita todos os dias, não sei como Deus ainda não o levou, pior, deixa esta cruz aqui para eu e meu bigode aturar. Se incomodem não, vão brincar, daqui à uma hora ele levanta toma mais uma e cai novamente (falou abrindo um sorriso que mostrava sua boca toda dourada).

- Mas gente... - falou a menina magrinha de cabelos avermelhados e longos - finalmente a que vamos brindar?
- Já falei... crianças, arg! Não aprendem, ao humor!
- Fica quieto Neneca, se não mando chamar dona Margarida, prá te levar e por debaixo de uma boa ducha fria, que é o que estás a precisar.
- Bom (desta vez tomou a palavra um rapagão, forte de cabelos curtos e voz um tanto quanto fina para a potência do seu corpo), devemos brindar ao que move o mundo! Viva o amor!

- Ai... Esta até doeu, será que nenhum destes cretinos irá usar o cérebro!

Nosso querido Neneca começou a buscar o banco como aliado para uma tentativa um tanto quanto hercúlea; Levantar a velha carcaça carcomida por um oceano de álcool, ao qual estava submerso; creio, desde o naufrágio do Galeão Sacramento, esforço daqui, esforço dali, força, a luta contra a gravidade era efetivamente grega, Odisseu virava conto infantil em sua lida com os Deuses frente aquela batalha que ali, no fundo escuro do imundo bar, ops! Bar não, Empório.

Sim Empório, e tinha de ser assim com letra maiúscula, o Empório São Cristovam de Seu Alaor, aafi, se ele ouvisse ou soubesse que você havia chamado o estabelecimento de bar... Hum! Das duas uma, se estivesses nele eras convidado a retirar-se, se nele não se encontrasse, terias seu nome escrito no quadro de giz em frente ao Empório, como pessoa não grata no estabelecimento.

- Vejam o Seu Alaor meninos, vive nestas bandas a mais de sessenta anos, possui o último Empório do além mar, vive aguardando a Nau trazer as barricas de bacalhau, azeite e especiarias, cultivou esta protuberância estomacal com o mesmo zelo que mantém este “ruibarboseano” bigode. É a memória viva, fez o bufet do casamento de Diogo Alves Correia e Catarina Paraguassú, vendeu pastel com guaraná da Fratelli Vitta para JJ Seabra e Antônio Balbino, conseguiu cobrar e receber dívida de Quincas Berro D’Água, conseguiu fazer Mário Sérgio brindar com Roberto Rebouças, ou seja um homem na história desta cidadela e é assim... Rabugento...

- Olha que te arremeto o salame na fuças... seu...

- Não falei, olha só, tá parecendo um pimentão não consegue ser feliz. Sabem por quê? Heim... Alguém aí sabe?

Stttrrrechhhh... Desta vez além de se “estabocar” no chão, levou também a mesa de metal - graças ao Senhor do Bonfim só havia um copo que se espatifou junto a ele.

- Ai minha Nossa Senhora de Fátima... Com este já vai prá mais de uma dúzia só este mês.

Do chão mesmo, Neneca completou:

- Não tem humor... É um velho ranzinza, mal amado, triste... Não consegue conviver com os carros sobre as calçadas, nem com o cheiro intenso de urina por todos os cantos, sem falar dos palavrões em qualquer lugar e a qualquer hora. Até o carnaval, que ele tanto gostava, saía vestido de viúva lisbonense, pois até o carnaval, para ele virou depravação pura, odeia as músicas de carnaval atual, diz que se enganou, pensou que nada seria pior do que o Rock, quando nos anos cinqüenta por aqui aportou, hoje acha o tal do Rock angelical frente aos locais mais inusitados e depreciativos em que as moças são clamadas a esfregar a tcheca, a bochecha, o than e os cambaus!!

- Aêêê, colé seu Alaor, assim não dá... vai dizer que não gosta de um pagodinho?
- Olha meninos desaforados, é melhor não dar ouvidos a este cachaceiro de uma figa, se não boto cês tudo pra correr.
- Não falei? Eu disse a vocês! E agora vocês querem ficar como ele? Como eu? Então garotada... Vamos todos de uma única vez, levantemos os nossos copos e com uma sonora gargalhada brindemos:

E o som ecoou pela cidade – Longa vida ao bom humor!

- Seu a Alaor (falou um molequinho que entrou no Empório), mainha pediu pro senhor mandar um quilo de farinha de guerra e por na caderneta.

Chaff, chiiiii... Ficou no ar o som da farinha escorrendo no saco de papel pardo.

Roger Ribeiro.
31 de janeiro de 2011.