segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Você tem uma banda de rock?


 

O Boeing passou e desalinhou-lhe o penteado, isso realmente a tirou do sério, afinal isso é um absurdo, abuso total, em que mundo estamos? Despentear uma Dama?! Isso é demais. Olhou para cima, visualizou bem aquele imenso avião sobre a sua cabeça e desancou um gesto obsceno, daqueles que uma verdadeira cortesã jamais faria, mas fez e, digo aqui muito intimamente, fez muito mais, praguejou de tal maneira que aquela gigantesca aeronave foi transformando-se, reduzindo-se, a cada sílaba tornava-se diminuta, diminuta até que ao final, não passava de um aeromodelo na mão de uma criança. Gargalhou.


O andar era firme, usava uma sapatilha chinesa vermelha com minúsculas flores amarelas de miolo verde água bordadas que saltavam da sapatilha e lhe tatuavam a perna, ramificavam torneando a perna alva que lhe servia de amparo e iam brotando de maneira compulsiva como que a dizer-se feliz por estar em local tão fértil. E assim era. Não precisava ser grande observador para perceber que aquelas alvas pernas não tinham fim. A Terra era pequena para aqueles passos.


Estava um pouco atrasada, sabia disso, mas tranqüilizava-se admitindo para se mesma que nada começa no horário marcado por estas bandas, e, além disso, uma jovem menina nunca pode chegar antes da expectativa de sua chegada. Sendo assim, os primeiros acordes soam para que percebas o aroma de flor que vem do mar filtrado por seu vestido, seu cabelo e suas florzinhas amarelas de miolo verde água bordado em sua pele e tatuado em sua sapatilha chinesa vermelha que lhe da uma leveza confundindo-a com os balões de gás coloridos que aquele senhor de longos bigodes verdes está mercando.
 

Parou ao longo do meio fio e aguardou a cavalaria passar para poder transpassar do universo das brisas marinhas para o centro nervoso da vila: fumaça, ambiente de penumbra, garrafas, copos que se espatifam nas pedras do chão, bocas que se abrem e fecham sem cessar, bocas que se abocanham e tecem poemas, poemas que são catapultados pela força dos corpos em atrito e chegam ao tablado sendo captados pelos captadores dos instrumentos elétricos, retornando em solos, riffs e melodias.


Enquanto batia a ponta da sapatilha vermelha impacientemente no chão, observou a passagem da cavalaria cansada, os navios a vapor com suas imensas pás laterais em busca da cidadela de Cachoeira, as velas brancas dos saveiros da Rampa do Mercado, e, por fim, o medo dos que se apegam à realidade como uma religião, como uma verdade. Enfim atravessou a linha do tempo e chegou aonde à expectativa de sua chegada já lhe aguardava.


Sentou-se ao lado do tempo passado e, sem precisar falar, apenas com os olhos desculpou-se pelo tempo futuro roubado.


O som estrondou no local, o espaço ficou totalmente tomado de música: ritmos sobre ritmos, harmonias, melodias, solos, vozes, risos, som, som como a grande explosão originária do universo, o som do parto, um pacto hermético entre a vida e a vinda.


Olhou para aqueles quatro cavalheiros munidos de suas guitarras, baixo, bateria, aparelhos, microfones, fios, caixas, ou seja, um universo de elementos que faz som e lembrou vagamente de uma letra de uma canção inédita que sabe que existe, pois enumera ações que se impõem quando se faz mais que necessária a vida, ela vai tocar no rádio. (cantarolou mentalmente a canção Rebento de Gil, mas na versão de Elis).
 

Estava entre amigos, as pequeninas flores amarelas se enramavam por todos, as garrafas gigantes não permitiam a desertificação, a mesa abaixo da placa que indicava preço e hora para se jogar bilhar permanecia frenética com as bolas coloridas que corriam para todos os lados fugindo da possibilidade de serem devoradas pelo universo paralelo dos portais abertos.
 

Neste momento, no meio daquele solo, entre o tempo e o contratempo a sapatilha vermelha de minúsculas flores amarelas de miolo verde água subiu na bota preta de cadarço, apoiou a fina mão de dedos longos no ombro a sua frente e o convidou para dançar. As velas dos castiçais se ascenderam, o quarteto de Paulinho continuou a tocar o rock, as bolas do bilhar ficaram incontroláveis, o mundo ficou de ponta-cabeça, o bumbo bateu as doze horas e do nada, apenas havia encostada à bota preta uma linda sapatinha chinesa, bordada de minúsculas flores amarelas de núcleo verde água.


(Onde será que anda meu amigo Barba?)

Roger Ribeiro


18 de novembro de 2013