O Boeing passou e desalinhou-lhe o penteado,
isso realmente a tirou do sério, afinal isso é um absurdo, abuso total, em que
mundo estamos? Despentear uma Dama?! Isso é demais. Olhou para cima, visualizou
bem aquele imenso avião sobre a sua cabeça e desancou um gesto obsceno,
daqueles que uma verdadeira cortesã jamais faria, mas fez e, digo aqui muito
intimamente, fez muito mais, praguejou de tal maneira que aquela gigantesca
aeronave foi transformando-se, reduzindo-se, a cada sílaba tornava-se diminuta,
diminuta até que ao final, não passava de um aeromodelo na mão de uma criança.
Gargalhou.
O andar era firme, usava uma sapatilha
chinesa vermelha com minúsculas flores amarelas de miolo verde água bordadas
que saltavam da sapatilha e lhe tatuavam a perna, ramificavam torneando a perna
alva que lhe servia de amparo e iam brotando de maneira compulsiva como que a
dizer-se feliz por estar em local tão fértil. E assim era. Não precisava ser
grande observador para perceber que aquelas alvas pernas não tinham fim. A
Terra era pequena para aqueles passos.
Estava um pouco atrasada, sabia disso, mas
tranqüilizava-se admitindo para se mesma que nada começa no horário marcado por
estas bandas, e, além disso, uma jovem menina nunca pode chegar antes da
expectativa de sua chegada. Sendo assim, os primeiros acordes soam para que
percebas o aroma de flor que vem do mar filtrado por seu vestido, seu cabelo e
suas florzinhas amarelas de miolo verde água bordado em sua pele e tatuado em
sua sapatilha chinesa vermelha que lhe da uma leveza confundindo-a com os
balões de gás coloridos que aquele senhor de longos bigodes verdes está
mercando.
Parou ao longo do meio fio e aguardou a
cavalaria passar para poder transpassar do universo das brisas marinhas para o
centro nervoso da vila: fumaça, ambiente de penumbra, garrafas, copos que se
espatifam nas pedras do chão, bocas que se abrem e fecham sem cessar, bocas que
se abocanham e tecem poemas, poemas que são catapultados pela força dos corpos
em atrito e chegam ao tablado sendo captados pelos captadores dos instrumentos elétricos,
retornando em solos, riffs e melodias.
Enquanto batia a ponta da sapatilha vermelha
impacientemente no chão, observou a passagem da cavalaria cansada, os navios a
vapor com suas imensas pás laterais em busca da cidadela de Cachoeira, as velas
brancas dos saveiros da Rampa do Mercado, e, por fim, o medo dos que se apegam
à realidade como uma religião, como uma verdade. Enfim atravessou a linha do
tempo e chegou aonde à expectativa de sua chegada já lhe aguardava.
Sentou-se ao lado do tempo passado e, sem
precisar falar, apenas com os olhos desculpou-se pelo tempo futuro roubado.
O som estrondou no local, o espaço ficou
totalmente tomado de música: ritmos sobre ritmos, harmonias, melodias, solos,
vozes, risos, som, som como a grande explosão originária do universo, o som do
parto, um pacto hermético entre a vida e a vinda.
Olhou para aqueles quatro cavalheiros munidos
de suas guitarras, baixo, bateria, aparelhos, microfones, fios, caixas, ou
seja, um universo de elementos que faz som e lembrou vagamente de uma letra
de uma canção inédita que sabe que existe, pois enumera ações que se impõem
quando se faz mais que necessária a vida, ela vai tocar no rádio. (cantarolou
mentalmente a canção Rebento de Gil, mas na versão de Elis).
Estava entre amigos, as pequeninas flores
amarelas se enramavam por todos, as garrafas gigantes não permitiam a
desertificação, a mesa abaixo da placa que indicava preço e hora para se jogar
bilhar permanecia frenética com as bolas coloridas que corriam para todos os
lados fugindo da possibilidade de serem devoradas pelo universo paralelo dos
portais abertos.
Neste momento, no meio daquele solo, entre o
tempo e o contratempo a sapatilha vermelha de minúsculas flores amarelas de
miolo verde água subiu na bota preta de cadarço, apoiou a fina mão de dedos
longos no ombro a sua frente e o convidou para dançar. As velas dos castiçais
se ascenderam, o quarteto de Paulinho continuou a tocar o rock, as bolas do
bilhar ficaram incontroláveis, o mundo ficou de ponta-cabeça, o bumbo bateu as
doze horas e do nada, apenas havia encostada à bota preta uma linda sapatinha
chinesa, bordada de minúsculas flores amarelas de núcleo verde água.
(Onde será que anda meu amigo Barba?)
Roger Ribeiro
18 de novembro de 2013