quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Traços de Cor


Um dom um tanto quanto estranho, mas não por isso, menos fascinante. Por vezes dolorido.

 

Por vezes parece uma criança, os olhos brilham como se estivesse frente a um sorvete bem colorido já iniciando a escorrer pela lateral, coisas de domingo de sol, mas ao mesmo tempo finca-se sólida e inabalável, parece que se protege em algo quase translúcido, uma Muralha da China!

 

Mas o surpreendente mesmo é que ao mesmo tempo em que seus lábios rasgados dizem uma coisa os seus olhos de menina dizem outra, em qual destes caminhos trilhar? Depende apenas do nível de ilusão que suportes!

 

Pois, exatamente nesta semana, aliás, diga-se de passagem, uma semana que há muito já estava escrito ser especialmente turbulenta, se não, veja você: começa com o fim do mundo, nossa! Já imaginou... Não é todo dia que se vive o fim do mundo, aliás, na verdade seria o fim da Terra, mas independente de ser do mundo ou da Terra, imagine você o trabalhão que é acordar, arrumar tudo, deixar as coisas todas antecipadamente resolvidas, fazer mercado, pagar contas, presentes de Natal, visitar amigos enfermos, telefonar aos sadios, e mais uma série de atribuições que encheriam esta página, e tudo isso antes que o mundo, ou a Terra se acabasse, vixi!

 

Bem, continuando a listagem da semana, no outro dia, após o fim do mundo, tem a comemoração dos vinte e cinco anos de casamento da menina dos pés de areia! Marcado com um ano de antecedência e sem possibilidade de faltar, a não ser que estejas desgostoso a tal ponto que não ame a sua vida. Festa linda,havia pessoas de todos os cantos, até de outras galáxias! É bom você vivenciar as aventuras, principalmente quando elas dão certo, e, aqui prá nós bem baixinho, misturar sua química com a de outro ser é algo invejável, uma aventura única e sem volta, pode até não dar certo, mas não há retorno, você abriu as sete portas do seu ser para que o outro se aninhasse, bisbilhotasse, remendasse, penetrasse em cantos secretos que até mesmo você tem receio de penetrar... Foi. Não tem mais forma de passar borracha, está feito.

 

Bem, ainda tem de passar no “clube sócio-cultural para marmanjos desocupados, mais conhecido como O Boteco, pra confraternizar com a rapaziada, afinar o violão, iniciar a famosa marcha da vitória – “vestiu uma camisa listrada e saiu por aí (...)”. Dar um mergulho nas águas cristalinas da praia do Farol, providenciar alimentos, filmes, etc, etc. Até chegar o Natal! Foi exatamente neste momento em que a semana deveria terminar, afinal no dia 25 teríamos o show televisivo de Roberto Carlos, que se não anuncia o fim do mundo, posto que este já havia acontecido, anuncia, impreterivelmente, o fim do ano. Hora de cair na rede e descansar!

 

Ledo engano. Tudo parecia que correria para o mar, como é natural, mas sabe lá por qual carga o mar foi se distanciando e a corrente começou a ir rio acima, as Piracemas se perderam, não sabiam mais para que lado pular! Pois te digo, foi exatamente neste momento que a brisa soprou e trouxe com ela um aroma inebriante, coisa de Xamã, Druida, Bruxa, Pajé, Repentista/Cantador, Oráculo, Rezadeira ou sei lá o que, só sei que, do nada, me enfeitiçou!

 

Era, por vezes, um traço colorido furta-cor, logo mais adiante a silhueta de uma mulher acarinhada por uma renda caleidoscópica de formas e cores, linhas sempre elegantes e vibrantes. Já não sentia o sol escaldante sobre o meu corpo, aliás, não sentia nada, era como se todos os meus sentidos estivessem adormecidos caminhando por dentro de um organismo humano alheio, e como se fosse aqueles velhas máquinas de Pinball, cada lugar onde meu corpo encostava acendiam caminhos multicores, meu corpo era arremessado para novos dutos os quais seria impossível saber onde iam dar, descrever então: impossível, não se descreve o impalpável.

 

Apenas aqueles olhos que me tragavam os sentidos, ali era a porta! Procurei o som, sim só ele poderia recompor a minha capacidade de ser dono de mim mesmo, enquanto estivesse no emaranhado de cores e linhas, estaria encasulado no feitiço, apurei o máximo que o sentido auditivo pode alcançar, era como um exército de micro-partículas esgueirando-se por veias, artérias, músculos tudo em busca de um som!

 

E lá estava ele, da própria fonte que me enfeitiçou vinha a porta por onde eu poderia transpor de um plano para outro, não que onde estava fosse ruim, pelo contrário, todo aquele universo que me tragou pelo olhar me era tão terno, me aquecia de forma tão complacente, que se lúcido, talvez optasse em jamais sair dali, mas...

 

“(...) a voz de alguém

Quando vem do coração

De quem mantém toda pureza

Da natureza

Onde não há pecado

Nem perdão” *

 

Ao meu lado uma senhora de cabelos longos, muito longos, brancos azulados, e de idade impossível de precisar, mas aparentando séculos, ou até mesmo eternidade de existência, virou meu rosto com doçura para a luz e lá estava o feitiço que me encantava.

 

Percebi que as linhas e cores em que eu transitava, na verdade guardava os limites onde trafegava. Era de uma leveza tão implícita que a impressão que tinha era que flutuava, bailava por sobre a brisa, com seu vestido de linhas e cores: era feitiço puro. Seus olhos me convidavam para bailá-lo, mas seus lábios impediam... Um dom um tanto quanto estranho, mas não por isso, menos fascinante. Por vezes dolorido.

 

Depende apenas do nível de ilusão que suportes!

 

Roger Ribeiro

26 de dezembro de 2012

 

* Alguém Cantando – Caetano Veloso.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Curto Circuito


 
Ela o mirou de longe, na realidade ele passava pelo outro lado da rua, mas ela sentada por detrás do tabuleiro seguiu os seus passos até que ele desapareceu dobrando a esquina. Nada disse apenas re-arrumou as folhas que havia posto acima do tabuleiro, sussurrou algumas palavras incompreensíveis, limpou os dedos no vento que corria e retornou ao seu afazer.

 

- Completo...?

 

Na outra ponta, o rapaz seguia seu caminho distraidamente, tão distraidamente que não percebeu que aquele vento que lhe estremeceu o corpo não seria algo normal em um final de primavera ao meio dia de um azul escaldante, não se deu conta, entretido estava com seus vagos pensamentos e vagando com eles permaneceu.

 

De costume há anos só saia entre as 11:00h e às 14:00h, pois só neste intervalo a linha composta pela sombra dos fios estavam em posicionamento adequado para que pudesse trafegar. Só andava por sobre estas sombras, se sentia energia pura! A matéria que, por ventura, alguém enxergasse não passava de miragem, alucinação, ou simplesmente um condicionamento coletivo constituído a partir da consolidação do “capitalismo selvagem”, como costumava protestar.

 

Ele não. Era energia máxima, podia transpassar o universo por dentro de fios, cabos, fibras ópticas, condutores e receptores de forma geral. Vivia em um emaranhado de redes de conduções que simplesmente interligava todo o universo terrestre, por isso mesmo, apesar de aos olhos de nós humanos parecer ser um solitário andarilho urbano, tratava-se na realidade de um ser único. Para que você possa entender, o mais próximo que temos em relação a este estranho personagem é a construção literária do Surfista Prateado.

 

Hoje caminhava, concentradamente, pela trama de sombras de fios entre o Largo da Vitória e o Farol da Barra, evitava o trajeto da Vitória/Campo Grande, pois apesar de achar muito belo, até onde conseguia enxergá-lo, sabia que os seus condutores estavam, naquela área, com bastantes interrupções geradas pelas copas das grandes árvores, porém não se queixava afinal, e sempre disse a todo o pulmão, e olha que pulmão de energia tem no mínimo duas fases, que as árvores eram suas irmãs ancestrais, pois sempre foram as verdadeiras antenas de ligação entre o impalpável interior e o invisível externo!

 

Eu por minha vez sempre tive o hábito de trafegar pelo trecho da Avenida Sete alcunhado de Corredor da Vitória, isso também vem de velhas datas, desde o tempo do “bar Crivos”, um dos berços da música desta cidadela, e olha que são muitos, até os quase diários passeios de mãos dadas com a mais bela pétala morena que Minas deixou escapar por suas montanhas. Como o “Crivos” não existe mais e a minha pétala morena enfeita outro jardim, encontrei no meu amigo, equilibristas de fios, razão para continuar freqüentando, este tão frondoso Corredor.

 

Sento-me em um tamborete junto ao isopor de Dona Marta, que por sua vez fica ao lado da Baiana Chica, refiro-me à vendedora de acarajés e outros quitutes e não às naturais do Estado, e ali fico de prosa com uma turma que foi se juntando com o tempo e onde, se não estiver chovendo, pois pode dar curto-circuito, o meu amigo equilibrista passa.

 

Com o tempo e de tanto oferecermos acostumou-se a parar, equilibrado na sombra da junção de um entroncamento de fios, para beber água e dar “dois dedinhos de prosa”, aliás, estes “dois dedinhos” foram após meses, mas enfim confiou parou e passou a narrar suas aventuras pelo mundo da velocidade e de como, de micro explosões em micro explosões, foi moldando novos seres que a humanidade não mais permitia ver pelo excesso de luz criada.

 

Discorria por um bom tempo sobre o porquê o homem necessitava das luzes artificiais? Porque às 12 horas de luz não lhes eram suficientes? E quanta coisa este mesmo homem perdia contato por não perceber as energias da noite, os ventos, a água correndo nos seixos, o sal que se tatuava na rocha após a explosão de um amor furioso entre a onda e a pedra, o voar das criaturas da noite, o mapa que as estrelas traçam para guiar sua emoção. Por esta falta de coragem, dizia: o Ser Humano sempre temeu o eclipse, nunca percebeu que ali se abre o portal.

 

Ao resto do mundo, ele não passava de um louco, para nós era um ser que conseguia nos fazer enxergar nas fagulhas que estalavam no ar, quando Dona Chica iniciava a ascender seu fogareiro, bailarinas lindas rodopiando!

 

Um dia o equilibrista não apareceu, passaram-se dias e... Nada. Ninguém sabia dele, procuramos, fomos a todos os lugares possíveis de ter alguma informação, nada. Por fim resolvemos, um dia, ficamos todos até o anoitecer. Até a luz se desdobrar por detrais dos mega prédios da Vitória. Quando o sol desceu e a noite começou a cair, do nada, as luzes se apagaram, só havia as bailarinas que saiam do fogareiro da Chica e de tantas outras Baianas rodopiando no ar.

 

Disseram depois ter sido um apagão por razões desconhecidas, mas enfim a cidade da Bahia pode vivenciar:

 

“As criaturas da noite
Num vôo calmo e pequeno
Procuram luz aonde secar
O peso de tanto sereno (...)”*

 

Roger Ribeiro

11 de dezembro 2012-12-11

* Criaturas da Noite – O Terço