quarta-feira, 25 de maio de 2016

As três janelas


O rosto projetado sobre uma parede caiada branca erguida nas rochas sobre o mar. Era uma parede de pedra e barro erguida no século XVI para ser Forte. E ali, bem na espessa construção, projetava-se aquele rosto que ganhava dimensões ainda maiores quando saltava de sua luminosidade para invadir-me pelos olhos.

 

Uma esfinge cor de sertão sulcada. Os fundos sulcos rachados e escurecidos pelo tempo implacável debruçavam-se em um olhar opaco, como se a espera de algo que, no local onde projetado, era abundante. Abaixo daquela parede, sobre rochas incessantemente violentadas pelas águas, água que tanto faltava para preencher aqueles sulcos, umedecer aqueles olhos sem lágrimas para chorar. Era um contraste tão fundo que permaneceu em um local entre minha pele e minha alma, me fez desconfortável, mas ao mesmo tempo me prendia ali.

 

O que dizia mesmo aquela viola de arame emitindo sons agudos e secos em um diálogo quase improvável com o som d’água no rochedo, enquanto o rosto sertão fixava-se na cal? Tudo aquilo me era excessivamente íntimo e familiar, cresci assim, entre paredes de pedra assentadas, diziam, em barro embebido por óleo de baleias que me faziam ouvir a noite inteira os gemidos dolorosos dos cetáceos apresados naquelas paredes onde as águas do mar se atiram contra estas a reclamar o que lhes pertencia. Era o som do universo. Naqueles tempos o humano era mais silencioso, suas máquinas de fazer barulho eram ainda raras e precárias frente à ressonância do universo ao meu redor.

 

E no intermezzo entre minha pele e minha alma onde aquele todo se alojou ficava-me a dúvida entre os tempos, sei, racionalmente, que havia um tempo imerso que separava aquela construção seiscentista daquele rosto projetado, mas ao mesmo tempo o caiado branco recém pincelado contrastava com aquela fisionomia que pouco se distanciava da milenar terra rachada, sulcada, escuramente queimada pelo sol, pela falta d’água que não preenchia os sulcos, que não verdejavam, mas que explodiam na força daquele olhar opaco. Por um momento tive vontade de chorar, porém não era direito meu tal ato.

 

Ao deixar o imponente Forte, levei comigo a memória que o tempo insensatamente corrido me havia roubado. Rememorei o quanto me indagam: o que faço? Em que trabalho? O quanto me esforço? Seria razoavelmente bem sucedido, para poder ser sucedido no futuro, quem sabe, por alguém de maior sucesso? Cantarolei uma velha canção do Belchior acerca de um bom rapaz esforçado caminhando rumo ao reconhecimento do seu esforço sem perceber a impermanência que lhe espreitava.

 

Revivi, em instantes, a praça e seus verdes, a igreja velha, as antigas casas de paredes úmidas, as pedras pretas que calçavam as ruas onde se jogava bola, onde os raros automóveis que passavam naquele bairro distante esperavam para passar, o mundo não tinha tanta urgência, acho até mais, o mundo não tinha tanta importância, a Terra que até então era vermelho barro e verde, acordara de um dia para o outro azul, Êta! Esses russos...

 

O que teria mudado em todo este tempo que busquei ser competente?

 

Olhei para os meus pés, onde passei boa parte da vida, quando não buscava ser competente, ansioso à espera do evento maior - quando trocaria o Conga branco pelo o Vulcabrás de couro marrom, e eles estavam rachados, sulcados e enegrecidos.

 

Hoje passeando pelo que restou das velhas paredes úmidas do antigo bairro operário periférico notei que já não dava para escutar os cetáceos gritando, as águas violentamente chocando-se nas pedras, as aves noturnas com seus agouros. O mundo tornou-se surdamente barulhento e urgente.

 

As três janelas da minha casa foram emparedadas.

 

Roger Ribeiro

24 de maio de 2016

 

    

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Tino deu o fora!



 



- Tino, pare imediatamente com isso. Tino volte aqui.

 
- Tino, pare imediatamente com isso. Tino volte aqui.
A voz era incisiva e impositiva, porém Tino, que trata-se de um cachorro destes que tem a cara toda amassada e o corpo “toleital”, nem tchumf, caminhando estava, caminhando continuou. Nem uma olhadela de nada, absolutamente, não era com ele que aquela moça gritava.
- Tino, já te avisei...aos berros) volte já aqui!
Neste instante aparece na cena, o ajudante da jovem. Bem, nem tão jovem assim. Digamos da jovem senhora. Tratava-se de um distinto senhor, destes que usam bermuda branca com cinto marrom, meias esportivas ornando com aquele sapato de couro branco, Os cabelos ralos, lisos e grisalhos dava-lhe um ar nobre, algo meio “Orléans e Bragança”, sabe como é?!
- Não seria melhor ir buscar o osso? – perguntou o nosso nobre ao que recebeu de nossa jovem senhora histérica apenas um olhar. Nada mais do que um fulminante olhar.
Tentou pega-lo, o abraçou, ele apenas continuou andando sem prestar a mínima atenção, foi o suficiente para a jovem abraçadora se estabocar no chão berrando impropérios ao impávido Tino, e saiu em disparada atrás do totó. Ela nitidamente raivosa, ele na mais perfeita paz, o nosso nobre contentava-se a ir andando a passos lentos, acho que tentando, telepaticamente, fazer o Tino perceber que pessoas daquela posição social não pediam estar entre os gramados do condomínio de praia, correndo atrás de um cachorro. Cheguei a ver um balão de quadrinhos sobre sua cabeça escrito: onde andavam os criados?
De imediato identifiquei-me com o Tino e passei, silenciosamente, claro, era eu que estava no campo do adversário, a torcer pela sorte daquele cachorro que parecia um tolete albino. Passei a imaginar, caricatural e meio preconceituosamente , o cotidiano do Tino: desjejum de água fresca e ração dura e seca, ao final de tarde, outra bacia de água e ração dura e seca. Durante os telejornais nenhuma palavra, muito menos latidos, podiam ser proferidos, na hora da novela então, vixi, aí era correr risco de expulsão e excomunhão.
Crianças fedendo a talco, de roupas de frufrus a apertar a garganta do bichinho enquanto o gorducho, orgulhoso, mostrava a todos como seu garoto era forte e destemido, esta loucura aos domingos, todos os domingos... Ah! Se Deus fosse cachorro, duvido que inventasse o domingo.
Durante a semana, menos mal, a jovem senhora com seus milhares de afazeres sociais e o nobre em seu escritório resolvendo os problemas do mundo... Dizendo ele. Tino ficava em paz, só era lembrado na hora que sobrava uma comidinha e uma boa alma lhe dava às escondidas, no mais era como se não existisse, nem ele, nem ninguém ali, por isso, cheguei a grande conclusão: ele continuava andando pra onde seu nariz aponteasse, afinal aquelas pessoas não existem,aquele local idem, nem ele próprio existia, em sendo assim... lá se ía, como diz a música – “sem lenço e sem documento”.
De olho colado na cena, descuidei-me e acabei saindo do anonimato para dentro do roteiro. A jovem senhora me viu e, pior, no momento em que estava com um sorriso de prazer profundo colado no rosto. Não havia dúvida alguma de que naquele embate estava eu ao lado do nosso Dom quixote de quatro patas. Ao me ver saiu imediatamente da condição humanamente descontrolada, descabelada, enlouquecida para a pose da Rainha da Inglaterra, apressou o passo e disse alto para que chegasse a mim:
- Isso mesmo Tino, vamos passear! Você está muito gordo, necessita fazer exercícios, vamos.
Tino nem tchunf, como antes, continuou reto em busca do seu Nirvana, após um tempo descruzamos os nossos caminhos e os perdi de vista, mas continuei sorrindo e pensando:hoje a madame vai passar um dia de cão.
 
Roger Ribeiro
06 maio de 2016.



terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Pé com Cré


 



O meu tênis emperrou. Descia do ônibus ali, bem próximo ao Largo do Fechadinho, quando do nada, bem no último degrau do coletivo, ele, sem aviso algum brecou. Não tinha santo que o fizesse andar. Os cadarços revoltaram-se, agarram-se ao primeiro obstáculo que viram e faziam jeitão de paisagem.

 

A fila atrás de mim aumentava. De repente todos queriam descer no mesmo ponto, nunca havia vivido tal situação, pegava diariamente esta linha, cortava a cidade em seu sentido dali para lá e nunca tinham mais do que eu, o motorista e o cobrador, ninguém ia ao Largo do Fechadinho. Não era um local aprazível, nem turístico, lá não existiam cinemas, bares, lanchonetes, salões de beleza, nada! No Fechadinho não havia absolutamente nada. Na verdade eu era a única pessoa que conheço que se dirigia a tão sinistro e insignificante local.

 

E o meu possante tênis verde e branco empacou que nem Mula, quando ainda se viam Mulas por aí. Não havia o que fazer, sentei no degrau superior para retirá-lo dos pés e desimpedir a passagem das pessoas que já começavam a ficar impacientes, para dizer a verdade, intolerantes, visto até minha senhora genitora já ter sido citada quando nem presente estava.

 

O miserável, até eu já estava impaciente com o dito cujo, agora não mais queria largar do meu pé, agarrou-se a ele com fúria, amor e desprezo. Um dos seus cadarços enroscou no meu tornozelo, enquanto o outro largou do suporte da porta e penetrou pelas costuras da bainha da minha calça puxando-a com força, emaranhando-se pelas linhas da costura lateral rompendo-a como se fosse faca na manteiga, deixando-me cada vez mais constrangido, olhava apavorado e via os olhos esbugalhados da passageira que incrédula gesticulava e vociferava coisas estapafúrdias em uma língua indecifrável.

 

A esta altura do campeonato perdi a referência do violão e das flores que levava, o meu tênis que em um ato de rebeldia descosturou a minha calça neste momento saboreava a minha cueca, sabe qual né? Aquela estilo lutador de boxe, com aqueles olhos e a boca inclinada, já não sabia mais o que fazer, apenas percebia todos os olhos me olhando e todas as bocas acusando-me de todos os impropérios possíveis e imaginários... Até gracinhas tive de ouvir:

 

- Olha a calcinha da boneca...!

 

Alguém recitou por detrás de uma poça de desespero que era eu naquele exato momento.

 

Rezava, pedia, implorava, prometia talquinho, lavagem especial, uma noite de lua com a bota vermelha da vizinha que tanto admirava, mas qual... Nada! Estava irredutível em sua meta estática. Uma senhora de cabelos azuis e corpo de Sabiá que passava na calçada vendo meu desespero veio ao meu auxílio, cantou, piou, bicou, puxou-me, pegou seu spray de pimenta e tacou no danado... Tudo em vão. Não havia mais o que fazer, levei as mãos à cabeça e perguntei aos céus o que estava acontecendo?

 

Óbvio que o céu com suas preocupações pessoais, que não são poucas, nada respondeu, apenas enviou-me uma chuva daquelas que em dois minutos transformou o Largo do Fechadinho em um rio caudaloso e furioso que arrastava o ônibus, o tênis, eu e as certezas do mundo em direção à única opção possível: à frente.

 

Em pouco tempo lembrei que estava em um Largo sem saída, daí inclusive o seu belo nome – Fechadinho, e o seu ponto extremo era o ponto do Ralo, -“fim de linha”, falou-me às gargalhadas a faixa branca daquele maldito tênis verde.

 

Por um instante vi a cabeleira azul de minha salvadora passar pela corrente d’água a uma velocidade estonteante. Dentro do coletivo todos se jogavam pelas janelas temendo o pior, o último a sair desejou-me boa sorte e partiu. De agora em diante era eu, meu tênis verde e branco e um veiculo enorme e desgovernado, batendo por todos os lados de um ex-Largo que se havia transformado em aquário.

 

Por minha volta começaram a passar Espadinhas, Carpas, Pintados, Atuns, Aratubaias e Cações! Êpa, protestei, mas que desassossego é este? Isto aqui é mar ou rio? A chuva fez uma trégua, reuniu-se, confabulou e sentenciou: Isso é tudo que te resta, meu filho. Ainda pensei em argumentar que aquela situação estava irregular... Mas de que adiantaria mesmo?

 

Enfim aquele enorme veículo começou a girar como se fosse um peão, percebi que chegávamos ao ponto do Ralo, ou ao ponto final. Tonto, tentava manter os sentidos, foram muitas horas girando, girando até que estancou. A chuva passou e enquanto o ônibus parava lentamente de girar um quarteto de cordas sobre o seu teto executava A Volta da Asa Branca, para um solo de assovio de feira.

 

Olhei-me de cima a baixo: não havia calça, minha marrenta cueca muito menos, minha querida camiseta do Ramones havia virado pó. A única alegria foi perceber que meu querido violão do nada reapareceu debaixo do meu braço e as flores, mesmo meio murchas, estavam na minha mão esquerda, sorri por um instante.

 

Mas não era o dia e percebi que havia sorrido no momento errado, olhei ao redor e lá estavam: o cobrador, o motorista, meia dúzia de curiosos e a polícia. No meio disto tudo, lá longe... Sobre os telhados das velhas casas do Largo, uma presença fluida se projetava no espaço junto aos peixes que segundos atrás por mim passavam, linda na sua delicadeza assustadora! Lembrei o que estava indo fazer no Largo, olhei a floresta no meu pé, era o verde encabulado que colocastes no teu ser, e saístes bailando por entre os ventos!

 

- Vamos engraçadinho, põe tua viola no saco, na delegacia você se explica. Disse a possante voz.

 

Lá me fui: eu, meu violão e meu tênis verde e branco. Ainda havia força para tentar uma última argumentação...

 

“Senhor delegado
Seu auxiliar está equivocado comigo
Eu já fui malandro
Hoje estou regenerado...”*

 

Roger Ribeiro

16 de fevereiro de 2016.

 

*Senhor Delegado - Germano Mathias