terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Hummm, moqueca é?!


 

- Tô dizendo, era deste tamanho oi! (e mostrava algo abstrato entre as mãos)

- É o quê rapaz!?... Deixa de conversa, vai fechando estes braços aí!

- Mas, e aí... Como era o bicho?

- Prata! De um prata escuro, fundo... Veja, acredite, na medida que ia secando o bicho ia ficando cor de rocha! É... pedra mesmo!

- Hum... Só se for pedra de dar em doido!

- Olha, era grande. Deu trabalho pra tirar da água.

- O quê? Quantos quilos?

- Não pesei, mas menos de seis quilos não tinha!

- O quê?! Seis quilos?

- Isso sem contar a cabeça e o rabo (brincou Espirro, que a tudo observava e ria). Mas me diga: e que bicho era?

- Cavala!

- que Cavala nada... Eu vi a foto, o “bichin” era grande mesmo, mas era Xareu.

- Que Xareu o quê!? (ofendeu-se o nobre colega pescador), nada contra o Xareu, mas num era não. Ele era esticado, o Xareu é “toletado” (referência a algo curto e grosso)

- Pode então ser um Bonito! (arriscou o palpite o Tinha)

- Então era um bonitão! (brincou Orelha).

- Meu parente. (disparou Espirro para gargalhada geral).

 
E nisso se instaurou uma discussão generalizada em plena areia do Porto da Barra, uma roda de uns doze homens, em uma frenética discussão entre ter: seis quilos, cinco, oito! Ser Xareu, Bonito, Cavala, ou qualquer outro aparentado do Atum... O certo é que naquele sábado às oito e trinta da manhã formou-se uma polêmica que ia atraindo cada vez mais gente, até formar um “manguedaporra”!

 

Não tente ler ao pé da letra: “manguedaporra” é um substantivo próprio de gênero híbrido, singular de alcance plural, demonstrativo de tudo que pode caber dentro de um “diâmetrodaporra”! Faz parte do Panteão dos substantivos explicativos/demonstrativos/quantitativos, do conjunto que pode se iniciar com “páporra” (quantitativo e/ou espacial), “dáporra” (valor), “comáporra” (estado) e “sejaláqueporrafor”, entre outros derivativos da nação lingüística autóctones das praias Soteropolitanas.

 
Pois, foi neste calor discursivo que o Espirro pediu a palavra e mudou totalmente o rumo da prosa:

 
- Olha lá, meu povo! - e olhando fixamente para a região abaixo da linha onde são proibidos os golpes do boxe - disparou: Ali sim é que se faz uma moqueca dos deuses!

- Com dendê pilado, leite de coco coado no pano e feita no agdá! (complementou Cabelo).


E lá vinha ela andando areia à dentro com o tênis branco e rosa pendurado nos dedinhos da mão esquerda, o shortinho amarelo ornando com a blusinha de algodão branquinha, toda suada marcando a cintura de uma mulher, uma verdadeira representante do gênero feminino daquelas que já sabem que “atrás do porto existe uma cidade”! (frase muito usada pelos freqüentadores da dita praia em questão, tudo bem... Prá você não ter de voltar lá em cima do texto, eu te lembro: Porto da Barra).


- Olha a corzinha dela!

- verdade Secão, deve ser paulista!

- Pode ser também Mineira... (palpitou Roger’n’Roll)

- Não, mineira não é. As mineiras andam olhando pro vão. (lá estava o entendido Zito).

 
O shortinho deu com a areia em um compassado rebolado, enquanto os bracinhos para cima deslizavam o branco algodão por cima das “montanhas lisas do monte do peito”, como diz o menino marido da Flora. O caminho até a água foi o esplendor do dia! Ninguém mais se lembrava de Xareus, Bonitos, Atuns, ou seja lá o que for... No momento todos estavam em estado catatônico admirando aquela obra que parecia ter saído dos traços de Caribé!

 
- Boto uma porção de Agulhinha Branca frita por Dona Marta que é paulista. (desafiou Secão, piscando o olho para a dita baiana)

- Mineira. E dobro a porção (ficou valente o Pingunino)

- Nada, é gaúcha. Boto a agulhinha e mais a “tubaína” gelada (garganteou Pedro Santana).

- Olha, conheci uma criatura da Chapada dos Guimarães que tinha este mesmo jeitinho de segurar o tênis!

- Podes crer Frank, a Marcinha né?

- E finalmente, quem vai saber de onde ela é?

- Eu vou. (resolveu o sempre disposto Espirro).

 
Aproximou-se da água e, sem disfarçar, esperou que a sereia se refrescasse. Quando saia da água foi interpelada por ele:

 
- Minha fulô oceânica, estávamos ali discutido o rumo do universo, quando a sua presença se impôs e, entre palpites de se viestes para redimir ou enlouquecer a humanidade, instaurou-se uma “polêmicadaporra”... (faz parte daquele conjunto, lembra?).

- E eu posso ajudar? (falou com um sorriso de derrubar as Muralhas de Jericó).

- Claro! Veja bem: entre um Meteoro, um Cometa ou até mesmo a influência das naves intergalácticas, com suas Anas Universais, você apareceu com estes pezinhos lindos!... Acariciando as areias da nossa bela praia...

- Menos né?

- É verdade! Eu juro. Mas ta faltando, “pradarum sambadáporra” (variação do mesmo tema), saber de onde vem tão luminosa presença: De São Paulo? Minas? Mato Grosso? Rio Grande?

- ôxi menino, tá louco? Eu sou é de Jequié!


- Jequié?! Aí galera deu pedra na cabeça...

 
O tempo fechou, invernou, o “cacau caiu brabo” (chuva das grossas), a maré virou, deu calhau no Porto, o vento sul chegou varrendo até o pensamento...


Dona Marta fechou o tabuleiro, olhou o horizonte por detrais de Espirro que vagava só à beira-mar, se benzeu, balbuciou palavras incompreensíveis e se saiu “viradanaporra”.
 

Só deu praia novamente treze dias depois!
 

Roger Ribeiro

26 de fevereiro de 2013.

 

 

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Enfim, humano!


 

Havia passado mais um carnaval. Passava completamente ao largo de todas as discussões a respeito das transformações ou não da festança momesca. Pouco lhe interessava as celebridades dos trios elétricos, dos camarotes, quem era a rainha da música carnavalesca? Quem era o rei? Quais atores, atrizes, modelos, quem veio de fora ou deixou de vir?

Possuía o dom de se tornar transparente, invisível e isso dizia aos quatro cantos do mundo que, por sinal é redondo, ou quase.


Mas como diz um dos bons poetas do Recôncavo baiano: “você está / você é / você faz / você tem...”*. De tal maneira por saber ser, ou por se iludir nada temia, ninguém o via, ninguém com ele mexia, nada nem ninguém lhe tocava a carne sem que assim permitisse. Por isso saia de peito aberto. Quando o encontravam, antes ou depois da grande festa, e lhe perguntavam se não temia a nova realidade que se estabelecia, não apenas no dito carnaval, mas em toda a cidade da Bahia, pois por ser contemporâneo de Glauber Rocha, e o ler na época vorazmente em suas observações, adotara a geopolítica do cineasta sobre o entorno da Baía de Todos os Santos – A Cidade da Bahia!


Respondia aos seus interlocutores com muita calma:


- Jamais abrirei mão do meu prazer de dançar no meio da rua! Imagine, a cidade para! Os famigerados automóveis com seus olhos incandescentes, brancos por falta de sangue nas veias, param, desocupam os espaços, o furioso passar das pessoas atrasadas “sabe-se-lá-Deus” pra quê e pra onde, cessam, tudo para, até o sol se pudesse parava de rodar e puxava a lua pra dançar! E tudo isso para eu poder rebolar, pular, dançar no meio de uma rua! Local que no resto do ano só é meu por míseros segundos de sinal verde!? E querem que eu não vá? Vocês são loucos!


Todo este brandir, que presenciei por várias vezes, calava os seus interlocutores e, por vezes, acabava por explodir em aplausos, gritos e assovios de apoio vindo de todas as partes. Desta feita, inclusive, ocasionou um olhar de repreensão do responsável pelo mau-humor característico de um antigo e famoso restaurante no Largo do Mocambinho.


Neste ano não foi diferente, já na quinta-feira, dia da entrega da chave ao Rei Momo, deu vazão a sua fantasia e lá saiu para o que dizia ser o último resquício das felizes liberdades plantadas em Woodstock e que, só encontrou solo fértil nos seis dias de festa pelas ruas da Cidade da Bahia. Saía só, louco e transparente: “rebolando na Avenida / prá desgraça e glória / desta vida”**.


Daí até a não menos famosa “Quarta de Cinza”, viu, ouviu e dançou de tudo, encontrou um mar de gente, alimentou a alma de cores inimagináveis, mas ninguém o viu, ouviu ou se quer soube de sua passagem, mas lá estava! Como sei? Não sei, apenas escutei, ouvi falar.
 

Chegou até a mim à notícia de que enfim foi visto. Andava, ou melhor sambava pela Rua Chile, quando foi abraçado pela cintura e levado rodopiando como um pião até a Praça Castro Alves onde, inclusive, esconderam o Poeta Maior. Estancou no meio da rua, milimetricamente entre o Cine Glauber Rocha e a escondida, porém onipresente, estátua do poeta. Era um ser todo prateado de onde se via rios de cor escarlate circulando freneticamente como um solo de Armandinho!


Abriu-se uma enorme clareira na multidão todos os olhos concentraram-se naquela visão prata-escarlate, o som tornou-se pausa e da pausa passou-se a ouvir um levíssimo caminhar descalço, uma silhueta descendo tão levemente que flutuava, vinha da Ladeira de São Bento em direção ao clarão aberto no largo da Praça. O cheiro que desceu como orvalho era de almíscar selvagem, à medida que o vulto avançava todos abriam passagem e, como se estivessem hipnotizados, seguiam-na com os olhares mareados de felicidade.


Parou ao centro, em frente ao homem prata-escarlate e brilhou! Seu traje fino como um papel de arroz esvoaçava acariciando o rosto de todos que olhavam. De silhueta tornou-se matéria real, não mais era uma sombra flutuando, mas sim uma mulher de músculos finos e longos, também com seus rios escarlates fervendo por entre sua dourada pele. Estendeu-lhe os finos e longos braços e o prateado e dourado se entrelaçaram.

Em fração de segundos choveu púrpura na Avenida.


Quando os sentidos se realinharam, o espaço estava sendo aberto novamente, o “Tapete Branco” chegara à Praça, desciam a Rua Chile Os Filhos de Gandhi: a alfazema, o tapete branco aliado ao caxixis, atabaques e agogôs, escondeu o voar prata e dourado... Como antes fora feito pela chuva em Woodstock!
 

Roger Ribeiro

19 de fevereiro de 2013

*Dom de Iludir – Caetano Veloso


** Deixa Sangrar – C. Veloso