terça-feira, 25 de março de 2014

O Portal Verde


 

Treinava para atingir a velocidade do som, já havia conseguido equiparar-se às ondas produzidas por João Bosco e estava a um passo de alcançar o Jorge Bem, mas seu alvo era o Ramones, precisava chegar à velocidade destes magrelos novayorquinos, enquanto isso não ocorresse iria suar a camisa e ralar a chinela pra cima e pra baixo.

Da última vez que o encontrei lá no Restaurante Caxixi, no Largo do Dois de Julho, entre uma geladinha e um tira-gosto, iam chegando amigos e a conversa ia ganhando fôlego, dizia, sem bravata, mas com a certeza dos repentistas de feira popular, que após a barreira do som, chegaria à da luz... Eis o seu sonho desde menino, correr pela orla de Salvador na velocidade das estrelas!

 
- Conheço desde menino, sempre pertenceu ao grupo dos aluados, em determinado período por muito pouco não se transferiu para o dos desatinados, mas aí sabe lá como achou em alguma viela dessas um tino perdido...

- Ôh... Kleber, não fala assim, além disso, a Majuí nem está aqui pra se defender... Ficar agora conhecida como o tino perdido? Ela não merece isso.
 

Nossa! Essa conversa vai longe, aliás, isso é todo sábado fim da manhã, é melhor mudar o rumo da prosa, apesar de que, tenho de ser justo: o Kleber tem certa razão.

Domingo cinco e quinze da manhã, o dia amanhece vagarosamente azul, ainda se avista as criaturas da noite dobrando apressadamente o horizonte, do outro lado um vento leve e muito fresco sopra como se tivesse viajado meio globo para trazer partículas da aurora boreal para esta cidade, afinal tudo e todos, forçados ou por apetite de dragões, nos mais variados tempos, por estas areias aportaram. Continuam aportando.

Desta maneira avistei-o de longe, se preparava para o treino, vestia cada peça da roupa sobre o corpo que não existia com um ritual quase messiânico. Majuí ao seu lado abria com o olhar verde escuro uma rota entrecortando o ar, o tempo, o calor, toda e qualquer partícula de energia, emoção, intenção ou ansiedade. Nada poderia pairar na raia a ser percorrida, qualquer choque com qualquer partícula poderia provocar uma explosão sem precedente. O caminho era reto, o verde olhar já o traçara, mas o retorno era o que mais havia de incerto.

Agachou, colocou a palma da mão esquerda no cimento da calcada, esticou a perna direita, olhou com extrema ternura a sua menina, deixou seu enorme cabelo translúcido cair-lhe pelos ombros e esperou o sinal. Majuí deu-lhe:

A paz
Invadiu o meu coração
De repente, me encheu de paz
Como se o vento de um tufão
Arrancasse meus pés do chão
Onde eu já não me enterro mais

Partiu em disparada... Abria-se um vácuo e uma total ausência de sentidos se fazia. Ultrapassou todos os limites, passou pelos Ramones, pelo Steve Vai, Jimmy Page e até mesmo pela Baby Consuelo cantando chorinho. Uma explosão... A barreira da luz foi ultrapassada. Neste momento o universo tornou-se lento, tudo estava como em câmera lenta!

Majuí, com seu sorriso prata, flutuava encantada por entre os portais desta cidadela para onde tudo converge, de frente para o mar percebeu-se entre dois morros verdes que avançavam como brigues para o horizonte, sobre o primeiro a luz da racionalidade humana, ali repousava o incansável Farol guiando a nau da civilização, no outro pairava um dos signos do intocável, do imponderável, a força que tudo é, mas que não se explica, guiando a nau da civilidade. Entre estes Majuí etérea, continuava abrindo os caminhos para seu aluado lumiar seu sonho de menino.      


A paz
Fez o mar da revolução
Invadir meu destino; a paz
Como aquela grande explosão
Uma bomba sobre o Japão
Fez nascer o Japão da paz
Eu pensei em mim
Eu pensei em ti
Eu chorei por nós
Que contradição
Só a guerra faz
Nosso amor em paz
Eu vim (...)*
 

Roger Ribeiro

25 de Março de 2014

* A Paz - Gilberto Gil & João Donato