terça-feira, 21 de maio de 2013

Sobre a Baia


 

Havia lido algo a respeito de uma tragédia ocorrida ainda na década de sessenta no Rio de Janeiro e o fato lhe marcara fundo, parecia que o som do desastre ressoava em sua cabeça. Saiu andando meio que a ermo, o pensamento lhe era vago, na verdade não fixava uma idéia, tudo eram apenas fragmentos, frases soltas, tudo desconexo, mas nada disso a ela preocupava. Estava apenas entregue à sensação que a leitura produziu em suas entranhas.

 

Sem saber era observada, sua figura esvoaçante em alguns causava arrepios como se estivessem vendo um fantasma, outros a olhavam com profunda admiração, impossível seria nada sentir ao passar daquela menina com seus cabelos negros esvoaçantes que espalhavam no ar um aroma de vento do deserto. A cidade parava para observar, talvez pela primeira vez, o passar de uma Tuareg.

 

Por onde passava os sentidos se desviavam, as retas se curvavam, o tempo parava ou até mesmo se revertia, à sua esquerda corria o ar a menos de zero grau, enquanto à sua direita a quentura se fazia como jamais se fizera. Subiu a pequena, porém íngreme, Colina onde se encontra edificada a igreja de Santo Antônio da Barra, sentou-se no degrau da mesma e fitou à sua esquerda o azul sobre a Ladeira da Barra e esta como limite entre a Península e o mar, seus olhos brilharam, não é todo dia que uma menina do deserto se defronta com o mar.

 

Aos poucos alguns seres foram chegando, nada diziam, sentavam-se ao lado da menina e permaneciam, alguns translúcidos deixavam aparente a circulação de líquidos fluorescentes que lhe percorriam e dava-lhes forma, alguns alados, outros desfocados, inanimados, em comum apenas o silêncio, todos chegavam calados. Ao passante, absorto observador, apenas uma impressão: algo iria acontecer.

 

Eram dezenas de seres os mais díspares possíveis sobre a Colina de Santo Antônio, para muitos, com os olhares mais amedrontados e banhados por certezas dogmáticas, ali estava o perigo: encontravam-se ali os “abandonados por Deus”, os que vagavam sem peso.

 

De um momento para o outro o vento parou de correr, o tempo esqueceu-se de passar, o sino da igreja tocou mais forte do que de costume e, como o diapasão do maestro, deu início ao som. Comunicavam-se por músicas, sons que se entrecruzavam em modos atemporais, por vezes tons que se harmonizavam, por vezes se chocavam, afastavam-se, debatiam-se como forças densas, gladiadores em meio a um Coliseu de arquibancadas de ar. O som vazava para a cidade, a cidade se entregava ao som.

 

O Mar da Baia até então calmo, tornou-se fúria pura, aquela Colina ao centro da Ladeira da Barra, tornou-se um campo de força, era energia pura. A chuva despencou torrencial de um céu límpido, azul.

 

A menina Tuareg, agora com seus negros cabelos protegidos por uma espécie de turbante cor de terra, levantou-se lentamente e saiu andando com seu olhar de diamante. Na escadaria de Santo Antônio da Barra ficou apenas Paulinho da Viola tocando seu violão:

 

“Ergo em silêncio, como um pirata perdido,
Minha negra bandeira e me sento.
Mexo e remexo e me perco e adormeço,
Nas ruínas da cidade submersa”*

E da varanda da casa de Maria, debruçada sobre a Baia de Todos os Santos, observamos tudo em profundo silêncio, e assim permanecemos.

 

*Cidade Submersa – Paulinho da Viola