Havia lido algo a respeito de uma tragédia
ocorrida ainda na década de sessenta no Rio de Janeiro e o fato lhe marcara
fundo, parecia que o som do desastre ressoava em sua cabeça. Saiu andando meio
que a ermo, o pensamento lhe era vago, na verdade não fixava uma idéia, tudo
eram apenas fragmentos, frases soltas, tudo desconexo, mas nada disso a ela preocupava.
Estava apenas entregue à sensação que a leitura produziu em suas entranhas.
Sem saber era observada, sua figura
esvoaçante em alguns causava arrepios como se estivessem vendo um fantasma,
outros a olhavam com profunda admiração, impossível seria nada sentir ao passar
daquela menina com seus cabelos negros esvoaçantes que espalhavam no ar um
aroma de vento do deserto. A cidade parava para observar, talvez pela primeira
vez, o passar de uma Tuareg.
Por onde passava os sentidos se desviavam, as
retas se curvavam, o tempo parava ou até mesmo se revertia, à sua esquerda
corria o ar a menos de zero grau, enquanto à sua direita a quentura se fazia
como jamais se fizera. Subiu a pequena, porém íngreme, Colina onde se encontra
edificada a igreja de Santo Antônio da Barra, sentou-se no degrau da mesma e
fitou à sua esquerda o azul sobre a Ladeira da Barra e esta como limite entre a
Península e o mar, seus olhos brilharam, não é todo dia que uma menina do
deserto se defronta com o mar.
Aos poucos alguns seres foram chegando, nada
diziam, sentavam-se ao lado da menina e permaneciam, alguns translúcidos
deixavam aparente a circulação de líquidos fluorescentes que lhe percorriam e dava-lhes
forma, alguns alados, outros desfocados, inanimados, em comum apenas o
silêncio, todos chegavam calados. Ao passante, absorto observador, apenas uma
impressão: algo iria acontecer.
Eram dezenas de seres os mais díspares
possíveis sobre a Colina de Santo Antônio, para muitos, com os olhares mais
amedrontados e banhados por certezas dogmáticas, ali estava o perigo:
encontravam-se ali os “abandonados por Deus”, os que vagavam sem peso.
De um momento para o outro o vento parou de
correr, o tempo esqueceu-se de passar, o sino da igreja tocou mais forte do que
de costume e, como o diapasão do maestro, deu início ao som. Comunicavam-se por
músicas, sons que se entrecruzavam em modos atemporais, por vezes tons que se
harmonizavam, por vezes se chocavam, afastavam-se, debatiam-se como forças densas,
gladiadores em meio a um Coliseu de arquibancadas de ar. O som vazava para a
cidade, a cidade se entregava ao som.
O Mar da Baia até então calmo, tornou-se
fúria pura, aquela Colina ao centro da Ladeira da Barra, tornou-se um campo de
força, era energia pura. A chuva despencou torrencial de um céu límpido, azul.
A menina Tuareg, agora com seus negros
cabelos protegidos por uma espécie de turbante cor de terra, levantou-se lentamente
e saiu andando com seu olhar de diamante. Na escadaria de Santo Antônio da
Barra ficou apenas Paulinho da Viola tocando seu violão:
“Ergo em silêncio,
como um pirata perdido,
Minha negra bandeira e me sento.
Mexo e remexo e me perco e adormeço,
Nas ruínas da cidade submersa”*
Minha negra bandeira e me sento.
Mexo e remexo e me perco e adormeço,
Nas ruínas da cidade submersa”*
E da varanda da casa de Maria, debruçada
sobre a Baia de Todos os Santos, observamos tudo em profundo silêncio, e assim
permanecemos.
*Cidade Submersa – Paulinho da Viola