sexta-feira, 16 de março de 2012

Estrondou o silêncio!



- Estava ali. Sim, estou te falando, estava ali sim, mas você demorou de virar o rosto, voou.
- E prá onde foi?
- Ora tirando avião, helicóptero e estes brinquedinhos humanos, sabe-se lá aonde vão os seres alados? Voou e pronto. Da próxima vez seja mais atenta, mais rápida, afinal a qualquer momento pode-se chegar ao ponto final.

Afastaram-se.

Saiu meio andando meio parada com a cabeça no peito e o coração sobre o pescoço, continuava sem crer, afinal foram tantos os fenômenos naturais, tantas Luas giraram em suas evoluções e involuções, sóis que nasceram à cabeceira de sua cama e se puseram aos pés de suas botas desbotadas. Lembrou-se do que Iara escreveu: “Há três coisas que jamais voltam: a flecha lançada, a palavra dita e a oportunidade perdida” *.

- Sei que não há desculpa, mas naquele exato instante o vento soprava os longos fios de cabelos pela minha face e minha nuca desfigurando-me enquanto matéria humana. O Eu era apenas partículas como as que se despreendem da água que explode na pedra abaixo da cachoeira.

Sentou-se em um banco de praça já quase inexistênte: pés retorcidos de ferro marrom, assento e encosto de ripas torneadas e vazadas caprichosamente pintadas de verde folha. Não havia pressa para nada, o mundo passava ao seu largo não se fazendo presente no âmbito de sua visão, o som continuo da sinaleira ficando verde-amarelo-vermelho-verde- amarelo... não lhe atingia os tímpanos, no olfato um aroma de respiração a inundava. Era ela! E do nada se apercebeu de quantas eram ela e a imensidão dela, nela mesma.

Lentamente foi reagrupando as suas partículas, recolheu as asas, debruçou e apoiou o olhar por sobre o jardim da praça, sentiu-se acalentada. Começou a perceber que o mundo a seu redor andava acelerado, se sentiu um tanto quanto deslocada, pensou no tempo em que observava o “mundo”, o verde, passar pela janela do Interestadual São Geraldo. Eram horas e horas para ver o tempo se materializar em mata, poeira, amanhecer, anoitecer, paradas imundas à beira da estrada aonde na maioria das vezes lá estava ele: de pé, botas de couro cru surradas, calças de tergal azul marinho, camisas de botão poídas, chapeu negro e a viola de aço pendurada no ombro: O cantador que de tanto viver o ir e vir, cantava a sua situação estática:

“Não sei o que faço, a minha vida é uma luta sem fim,
Sinto-me no espaço, o tempo todo a procura de mim,
Há dias na vida, que a gente pensa que não vai conseguir,
Que é bem melhor deixar de tudo e fugir
Que outro mundo tudo vai resolver”.**

- Ei... psiu! Queria ser amarela como aquela ali.

Virou-se para ver quem falava. Olhou, olhou novamente e mais atentamente e não viu ninguém, isto lhe fez franzir o pensamento. Estaria ficando louca?

- Ela se queixou de ser vermelha, não foi? Queria ser amarela! Hum... Todo dia é a mesma coisa, não se cansa, e o pior é que se você for falar com aquela amarelinha ali, que lhe é o seu grande desafeto neste jardim, ela vai dizer que está é vermelha de vergonha, afinal havia lhe tirado o Cravo branco. Jamais a perdoaria!

Virou-se, desta vez com agilidade, retirando rapidamente o cabelo preso aos lábios cor de jambo, arregalou os olhos para aquela voz grossa secular e em um sobressalto questionou:

- O quê? Quem é você? De onde você surgiu?

O dono da voz, um franzino senhor de cabelos brancos e botas pretas, olhou ternamente para aquele olhar aflito e disse:

- Calma menina, sou apenas o jardineiro. Trato de seres como você e elas! (apontou para a queixosa Rosa vermelha e a brava Margarida amarela.
- Desculpe-me senhor, mas hoje sou a flecha que não curva, a palavra que se propaga ao infinito e a oportunidade que não vi.
- Desculpe-me menina, mas não foi o que me disse aquele pássaro ali...
- aonde?

Virou-se apressada, com os cabelos abraçando sua face e sua nuca. O avistou distanciando-se em um voou sereno.

O jardineiro virou-se para a menina novamente, mas junto ao banco havia apenas um par de botas, um pé amarelo, o outro vermelho, deixadas aleatoriamente sobre a grama. O homem franzino de cabelos brancos e botas pretas olhou para o infinito e sorriu ao ouvir a imensidão do som das asas cortando a linha do tempo.

Roger Ribeiro
16 de março de 2012.

* Provérbio Tibetano.
** Não Creio Em Mais Nada - Paulo Sérgio

terça-feira, 6 de março de 2012

Bem que Rita Lee avisou



Tumulto generalizado. Do outro lado da rua as pessoas se espremiam na calçada para acompanhar. Ninguém sabia ao certo o que ocorria, mas os gritos eram altos. Pela vitrine, entre os itens expostos, viam-se cabelos de várias tonalidades rodopiarem como se fosse um show de heavy metal. Era o caos e, assim como no famoso samba de Aldir Blanc, rapidamente chegaram pipoqueiros, mercadores de queijinho coalho, picolé, cerveja, refrigerante e água mineral... Enfim: de um tudo.

No interior do ambiente a situação pegava fogo, para cada uma que saia, toda desgrenhada, entravam pelo menos três, parecia estas coisas combinadas pelas redes sociais da internet. De repente saíram três mocinhas de vestidinho colorido e florido e com sandálias rasteirinhas vermelhas e, isto parece incrível em se tratando do gênero feminino, iguais... Sim! Pode acreditar no que digo, eram idênticas e se vacilar, ainda eram do mesmo número.

As três, de braços dados formando uma corrente, sorriam muito, pareciam que estavam saindo de um grande baile e não daquele furdúncio que simplesmente parou o comércio, fechou lojas, tencionou a situação a ponto de a polícia ser chamada. Logo que as três saíram ouviu-se a sirene da viatura policial chegando a mil e parando na porta daquela que era uma das boutiques mais finas do comércio local. De dentro da tal boutique, ao avistarem a chegada da viatura começaram a sair mocinhas apavoradas, exigiam providências imediatas:

- Vocês precisam fazer algo urgente!
- Umas loucas, nunca fui tão humilhada, detenha-as.
- Elas foram por ali...
- Tomem cuidado são perigosas...

Por fim o responsável pela viatura, usando de sua autoridade, conseguiu falar alguma coisa:

- Pelo amor de Deus, calem a boca! Uma de cada vez, por favor. Quem é a responsável por isso aqui?

De dentro da loja, cambaleando, saiu uma jovem de seus, no máximo trinta anos, toda desgrenhada, vestido todo amarrotado, maquiagem borrada e com apenas um dos pés ainda sustentando uma sandália de salto alto. Chegou e conseguiu balbuciar:

- Sou eu meu senhor, mas estou em estado de choque não tenho como declarar absolutamente nada. Lourdes! Lourdes minha amiga, pelo amor de Deus pega uma água para mim.

A viatura da polícia estava mais cercada de beldades do que a cabine do DJ Roger’n’Roll, era uma verdadeira loucura, elas falavam todas no mesmo momento, perguntavam e respondiam simultaneamente. De uma hora para outra percebi que os olhos dos quatros agentes da lei, estavam atordoados, um se apoiava no outro nitidamente para não ir ao solo. Não sabiam mais o que fazer, foi quando o comandante, tentando manter aquela voz de autoridade, perguntou:

- Sim, mas o que foi furtado? Houve saque? Danos? Ou seja, minhas amigas, o que está acontecendo aqui?

- O senhor não viu?
- Não senhorita, não vi nada.
- Mas elas saíram daqui neste instante!
- Infelizmente creio que chegamos um pouco depois. Mas vocês podem nos definir o que realmente está acontecendo? É necessário pedir reforços? Elas estão armadas?

O silêncio foi geral. De repente todas pararam ao mesmo tempo e se entreolharam, olharam também a multidão ao redor e, foram saindo, saindo... Até que apenas a Lourdes e a responsável que não parava de beber água, estavam junto ao responsável pela lei e pela ordem. Enfim este olhando fixamente para as duas ordenou:

- As senhoritas podem finalmente me explicar o que houve aqui, ou terei de levá-las à DP?

A nossa desgrenhada responsável pela boutique começou enfim a balbuciar:

- sabe o que foi seu guarda...? Estávamos todas na loja felizes quando as três entraram. Neste instante o tempo parou. Queriam sandálias vermelhas e rasteiras. As freguesas da loja olharam para elas, era algo como os Beatles chegando aos Estados Unidos, tudo ali era leve, belo, musical. Seus vestidos eram uma valsa de Strauss, seus cabelos eram o “Satisfaction” dos Stones, seus sorrisos as canções de Marisa Monte, mas até aí tudo estava razoavelmente sobre controle, porém, foi exatamente no momento em trocaram os sapatos que calçavam pelas sandalinhas vermelhas, que ...

- Comandante (interrompeu um dos ocupantes da viatura), encontramos as três. Estão ali naquela Taberna. Escuta só.

E o que se ouvia por toda a rua era como um bloco na rua em pleno carnaval cantando feliz:

“Três meninas do Brasil, três corações democratas
Tem moderna arquitetura ou simpatia mulata
Como um cinco fosse um trio, como um traço um fino fio
No espaço seresteiro da elétrica cultura (...)”*

É simplesmente impossível descrever o efeito alucinógeno daquelas sandálias vermelhas sobre o asfalto negro.

Roger Ribeiro
06 de março de 2012.

*Meninas do Brasil – Moraes Moreira