sexta-feira, 19 de março de 2010

Louco, eu?!


Sempre despreocupado, nada nem ninguém o tirava do eixo, dizia sempre a quem quisesse ouvir que a Terra era um grande jardim que lhe haviam presenteado para que pudesse passear, vagar, admirar!

Também não se importava com esse negócio de saúde, se entregava aos vícios de forma plena e dizia:

- Tudo que está presente é para ser experimentado. Não adianta temer, pois a morte é o destino único e em algum lugar, um ser irá sabatiná-lo sobre o que viu, o que experimentou e o que sentiu em seu estágio terrestre e se você, por seus medos e preconceitos, pouco ou quase nada vivenciou, serás então por toda a eternidade um desperdício divino.

Por isso fumava, mas não pense você que era um fumantezinho daqueles de fim de semana, ou do cigarrinho após o almoço. Não, nada disso, o negócio era profissional. Acendia um cigarro na “guimba” do outro, isso ininterruptamente, do acordar até o ir dormir, quando não acabava dormindo com o dito, ainda aceso na boca, o que lhe rendia uma série de marcas de queimaduras no peito. Eram as medalhas.

Bebia bastante, comungava com o ditado, que dizia ser escocês, de que “a realidade era uma falta profunda de álcool”. Tomava leite com manga, comia jaca mole e saia no sol quente, dizia gracejos para qualquer moça que passasse a menos de um metro dele e não importava se estava acompanhada ou não, se era branca, preta, azul ou rosa, se era magra ou gorda, baixa ou alta, não interessava, queria ser feliz e que as pessoas que por ele passassem se sentissem queridas, belas, amadas. Um dia lhe perguntei em tom de brincadeira se os homens também não eram merecedores de partilhar a felicidade? Ele me olhou de canto de olho e sem rodeios disparou:

- Seres desprezíveis.

Calei-me.

Gostava de andar, andava a cidade inteira, por vezes falava de amigos que construía nas suas andanças. Dos que falava, o que demonstrava mais afinidade e carinho era um tal de um barbudo das botas pretas, sempre se referia a ele com deferência. Pelo que dizia, o julgava um sábio, alguém que por sangrar no coração acabou por desenvolver uma forma peculiar de raciocínio emocional, dizia ser um helênico.

Parei certo dia na esquina do colégio Manoel Devoto para comer o abará de Dona Maria, sem dúvida um dos melhores ofertados na cidade, e para o bem, não era ela uma das “quituteiras de grife”, que abundam o antigo pacato e provinciano bairro do Rio Vermelho.

Enquanto pedia meu abará, invariavelmente só com pimenta, senti uma mão apoiar-se no meu ombro e com uma voz um pouco tensa dizer:

- Você se lembra de Catarina Peixeira? Da Mulher de Roxo? Do Homem da Gruta de São Lázaro?

Apesar do timbre grave da voz, eu imediatamente a reconheci, virei-me e disse:

- Desta estirpe só restou Samuca.
- Como podem desaparecer, e ninguém se quer lembrar deles?
- É verdade... Quer um abará?
- Estou sem recursos.
- Que nada, pegue aí um.

Cada um com seu abará em punho saímos caminhando para o ponto de ônibus. Era fim de tarde e havia uma enorme horda de estudantes vagando pela calçada, esperando o transporte, mas acima de tudo, fazendo barulho. Existem duas coisas no mundo que fazem algazarra ao final do dia: os pássaros e os adolescentes.

Paramos no abrigo do transporte e ele, recuperando seu tom sempre sereno de voz, comentou:

- Este é o horário de maior vida nesta cidade! O barulho, os carros, as meninas que correm e os meninos que correm atrás das meninas, os pássaros que voam a gralhar, os odores de comidas misturados aos de gasolina, óleo diesel, uréia nas esquinas e postes, tudo enfim, tudo isso junto demonstra que aqui há vida.

Fiquei ouvindo, e meu olhar se desviou do foco. O semáforo que fica a três metros de onde estávamos fechou e fiquei observando o reluzir daqueles carros metálicos brilhando à luz do sol que se ia e das luzes do poste que se acendiam, a impressão que tive ao juntar o som com a imagem era de que a cidade ardia em chamas, labaredas passavam zunindo ao abrir o sinal e acalmavam-se quando o vermelho brilhava no asfalto negro.

Quando olhei para o lado novamente, ele já não estava lá! Fiquei confuso, olhei em todo o redor. Aonde teria ido parar? Procurei por fumaça de cigarro, caminhei até a esquina e olhei no bar, nada. Ônibus algum havia passado. Por onde ele se foi, para onde? Por um momento, achei que ele, na verdade, nunca havia estado ali, mas contei o dinheiro do meu bolso e vi que realmente faltava exatamente a quantia de dois abarás. Respirei um pouco aliviado, não estava ficando louco.

Lembrei da sua chegada e das pessoas citadas por ele, todas sem exceção, viviam em planos paralelos ao dito plano real. Por infinitos instantes, temi ter perdido também a noção deste real, não que ele seja grande coisa, mas ficar no intermeso não deve ser também lá muito confortável.

Foi exatamente neste instante, entre o som do real e a fúria da loucura, que lembrei de você. Estavas linda com seu vestido vermelho de laço na cintura, sua pele morena, seu sorriso tímido que apertava os olhinhos escondidos no óculos oval de lentes grossas de miopia, os cabelos longos escuros e um leve sotaque mineiro de ser.

Ali, parado na calçada vivi novamente o momento em que na escada do prédio de meus pais, pedi auxílio à Lô Borges e te perguntei: “você ainda quer morar comigo?”.


O sinal abriu, os carros aceleraram e tudo ganhou uma velocidade nauseante. O mundo redefiniu os caminhos. Muitos treze de março passaram...

Resolvi ir caminhando, não sabia muito bem para onde, mas segui o fluxo do trânsito, passo após passo, ia lembrando de músicas que reavivavam lembranças e também ativavam sonhos que apontavam para o futuro.

Senti novamente uma mão no meu ombro...

- De Catarina Peixeira, a Mulher de Roxo, o Homem da Gruta de São Lázaro, Samuca... O mundo é dos loucos! Quer um cigarrinho?

- CARAMBA! Que susto Malí. Vai matar o diabo!


Roger Ribeiro
18 de março de 2010

segunda-feira, 1 de março de 2010

Quer sambar comigo?




“Pra que mentir
Se tu ainda não tens
Esse dom de saber iludir...”*

Pequenina, com a pele bem moreninha, cabelos brilhantes e os olhos apertadinhos e sempre úmidos. Eu não me incomodava de olhar para ela, passava horas, absorto, vendo-a trabalhando, conversando, por vezes sorrindo, mas o seu natural era sério, concentrado. Consegui, após muito tempo, o mínimo de aproximação, aquela do cumprimento um pouco menos formal, um convite para almoço quando em grupo e... Nada mais.

Passei a olhar as vitrines das lojas e a imaginar como ela ficaria bela com aquele vestido, ou aquela blusa, também, neste momento, me alegrava de ela não está enamorada de mim, pois era época de poucos recursos e seria para mim difícil satisfazer os desejos dos meus olhos de vê-la trajando um daqueles modelos floridos que parece que foram feitos para acariciar aquela pele quase “jorgeamadiana”.

Não pense você que não tentei aprofundar o teor dos nossos encontros, claro que tentei. Lógico que do meu jeito que, segundo uma velha amiga, é respeitoso demais, tem de ser mais agressivo, lascivo, até um pouco desrespeitoso mesmo, algo assim no limiar de ser um verdadeiro cafajeste. Segundo esta minha amiga, as mulheres negam, mas amam os cafajestes. Dancei nesta.

Creio que já vivi o bastante para aprender, acredito que já magoei bastante e também já fui muito magoado. É a vida, não é mesmo? Não nos bastamos e nem nos contentamos, é uma correria sem fim para um lugar no qual nem mesmo sabemos onde é mesmo, mas só descobrimos isso quando chegamos lá, ou próximo de lá e nossa eterna insatisfação já começa a nos apontar para uma nova direção. Como se diz aqui em Salvador, principalmente as pessoas gordas - “aff... dá uma canseira danada”.

Às vezes sinto esta canseira também, por vezes tenho até vontade de me matar, mas não assim para sempre, por uns três ou quatro dias, sabe como é? Acho que deveríamos ter essa opção, viver o tempo todo não é nada fácil. O pior é que além de não termos a opção da morte com início meio e fim programado, ainda existe a certeza, pelo menos assim pessoas sérias me garantiram, de que quem atenta contra a própria vida fica a vagar. Vixi! Aí já é demais, morto-vivo, sem descanso, penando pela eternidade! Já imaginou?

Sendo assim, limpo rapidamente essa idéia da cabeça e tento me conformar. Uso e abuso de senso comum, das frases feitas e repito várias vezes para mim: tudo passa! A vida muda em fração de segundos... você vai ver, quando menos esperar...!

Vou repetindo isso e “tocando o barco”, tem jeito não. Se pelo menos ela resolvesse ocupar o “quarto e sala” do meu coração! As coisas realmente poderiam mudar. Sim, tenho certeza de que mudariam. Mas para melhor ou para pior? Essa é uma dúvida pertinente, como já frisei acima, já vivi o suficiente para conhecer um pouco da alma sádica da raça humana. Não é por maldade e nem pense que estou generalizando não, é algo constitutivo do ser humano, ele possui esta dose na síntese de sua química, normalmente ele chama-a de amor, quando o grau é mais elevado: paixão.

Mas não pense que sou daqueles chatos céticos, niilistas que acham o homem um ser mal, ruim de todo e que praguejo para o universo contra a existência deste ser. Não, não e não, nada disso! Muito pelo contrário! Adoro este ser exatamente por isso. Gosto de ser atormentado de amor e chegar mesmo ao puro delírio vampiresco que se instala nas paixões. Concordo com o Peninha, o compositor, não o amigo do Donald, “saudade (um dos muitos sinônimos de amor), até que é bom, é melhor do que caminhar vazio”. Além disso, temos alguém para falar mal, o que retira os nossos olhos do nosso próprio umbigo.

Não pense que não me divirto. Claro que me divirto e muito observando esses preenchimentos humanos. Fico em estado de graça quando percebo que ela, com seus olhos miúdos e úmidos, finge que não percebe que estou deitando-lhe o olhar do desejo. Ela gosta, claro, quem não gosta de ser desejado? Mas ela diz, com o olhar, que não me vê, atriz das melhores, sorri do meu sorriso de dente travado. O “três quartos com duas suítes, do coração dela, está locado ou vazio, porém fechado, e eu não tenho a cópia da chave! Paciência, “é melhor do que caminhar vazio”.

Tenho um amigo que casou com uma menina muito bonitinha, ali eu aprendi muito de como se chega ao mais alto grau de sadismo entre duas pessoas, eles se massacravam mutuamente até a exaustão. Por vezes temi até um desfecho trágico, a coisa não era fácil, pois era um jogo onde se queria chegar ao limite do limite. Acho que por vezes eles também devem ter pensado naquela morte quimérica de dias marcados, ainda bem que percebiam sempre a impossibilidade dessa benção.

Depois deles e de muitos tropeços pessoais concluí que deveria existir uma escola da vida, sim uma escola onde o serzinho, quando passasse a ter forma individual, se matricularia e começaria a estudar o ser humano, o gênero, a tragédia, a comédia e o grande mediador: o amor. Este que, quase invariavelmente, nos sambas, veja que estou falando de SAMBA, não vá confundir, rima com dor. Se você torceu o nariz, achou que não é bem assim, conte quantos sambas exaltam a vida feliz de um casal? E quantos choram a perda da mulher amada? Se tiver intimidade, vá logo à fonte e pergunte ao Paulinho da Viola!

Pois nesta escola minha velha amiga ensinaria aos jovens, pretendentes a homens, a ser quase um canalha, as meninas aprenderiam a dizer fique com a boca e se vá com os olhos, os sambistas, claro, ensinariam que sem amor e dor não há samba, os homens ensinariam às mulheres que mentem mal e elas retribuiriam mostrando como se faz para ele acreditar que ela acredita. Isso sem falar nos ilustríssimos administradores, que teriam direito a pelo menos quatro semestres para elucidar a relação entre homens, mulheres e capital.

Pensando melhor, acho que uma escola é pouco deveria ter da pré-escola até o pós-doutorado. À frente do prédio um belo jardim e acima da porta de entrada escrito em letras de ferro: “ESCOLA DE SAMBA”.

Ela chegou! Licença, mas agora vou sonhar!

Roger Ribeiro
26 de fevereiro 2010.
*”Pra que mentir?” Noel/ Vadico