terça-feira, 6 de novembro de 2012

TRIC !

 

- Todo amor que você diz ter... leve para o inferno junto com tua alma sebosa, isso se o diabo te aceitar, o que eu duvido muito.
 

Os gritos desesperados eram ouvidos de longe, e o som vinha de uma das saletas onde se velam os mortos. Ao lado do caixão, segurando em sua alça e com os músculos todos erriçados aquele corpo esquálido, mas muito firme, olhava para o vazio absoluto e narrava os seus impropérios ao habitante daquela caixa de madeira. Nem mesmo o crucifixo acima do ser frio a intimidava. Aliás... creio que nem mesmo o percebia.

Eu, aqui debaixo da Amendoeira, protegia-me do sol de secar café e esfumaçar poeira e observava-a, a princípio com a curiosidade acusatória dos olhos que miram os que se expõem, depois com um sentimento tão forte, tão límpido que não mais me contive, entrei na saleta onde apenas estava o caixão com seu habitante e a esquálida silhueta de uma descabelada cabeleira cor de lilás, que combinava perfeitamente com o cinza opaco dos seus olhos. Toquei-lhe no ombro e com cuidado falei:
 

- A senhora não quer ir até ali tomar uma água?
 

O susto e o súbito pulo para trás dado por aquele graveto humano, me levou a uma sensação de pavor: será que eu havia piorado toda a situação? Ficamos por eternos segundos nos mirando, o cinza opaco dos olhos dela começaram a se esvair e no lugar daquela aquarela sertaneja, surgiu um azul água muito semelhante ao amanhecer na Barra de Caixa- Pregos na Ilha de Itaparica. Recuperei o fôlego e estendi-lhe a mão posto que neste momento encontrava-se ao chão, olhando-me incrédula, sem entender o que estava ocorrendo. Alguns segundos a mais e aceitou a alavanca do meu braço para erguer-se novamente.
 

- Obrigada.
 

- Não por isso. Desculpe, mas volto a insistir, vamos até a lanchonete tomar uma água.
 

Nada disse apenas virou-se para o caminho da lanchonete e começou um lento e delicado caminhar, ofereci-lhe o braço para apoio já que havia notado que estava descalça e, certamente, a brita fina colocada ao redor das salas de velar para drenar a quase eterna chuva que tornou-se perene em nossa pequena Vila, apesar de fazer sempre um sol, como se diz por aqui, de pedra virar vapor. Era lei: da Praça da Matriz para um lado, o fogaréu solar, do outro a força das águas só vistas, até então, na saga de Odisseu na busca de retornar aos braços de sua Penélope, no turno seguinte este fenômeno se invertia.
 

- O que a senhora acha de um suco de maracujá? É calmante...
 

- Muito obrigada, mas o que não necessito é de calma.
 

- Mas a senhora está trêmula, ofegante, isso pode não lhe fazer bem. A senhora não deseja ir até a enfermaria? Talvez lá eles sugiram um tranqüilizante leve...
 

- Já entendi tudo, foi aquele miserável que contratou você para vir aqui me tirar de perto para que não ouvisse a verdade... Mas não vai adiantar, o que ele fez não se faz e terá de pagar por isso, suas cinzas serão jogadas no mar e afundarão como rocha, devido ao peso do seu ato. O senhor já deve ter sido pago antecipadamente, já tentou fazer o que deveria, portanto pode ir embora. Creio que deves ter mais o que fazer.
 

- Minha senhora, eu não fui contratado por ninguém, aliás, nem sei quem está ali naquela saleta, apenas me preocupei com o estado em que a senhora se encontra e procurei dar um pouco de conforto! Tentei ajudar.
 

- Conforto? E quem precisa de conforto aqui? É melhor o senhor ir embora, ainda tenho muito a dizer àquele miserável, ingrato, preciso contar a ele como sua alma irá vagar, os locais escusos e sombrios que irá habitar, preciso gritar-lhe no ouvido de morto, que o que fez não se faz, preciso agachar ao lado dele e bem junto ao seu ouvido dizer:
 

Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude“ *

 
- Ele me jurou. Sim! O senhor não sabe, mas quando nos conhecemos ele nem barba tinha, eu? Uma menina daquelas que andam de rabo-de-cavalo vinte e quatro horas por dia, e ele me disse que jamais me deixaria só. Mentiu, traiu, ele se foi. Veja! Olhe lá ele indo no esquife, você vê alguém acompanhando? Não, não há ninguém. O senhor deve ta pensando que era uma pessoa ruim que não possuía nenhum amigo, mas o senhor está totalmente enganado, se não há ninguém é porque vivemos a mais linda história de amor! A nossa vida por mais de meio século foi ele e eu. E ele se foi.

Calei-me e fui apenas acompanhando o solitário cortejo segurando-lhe o braço. Para as despedidas finais afastei-me e procurei não olhar, era o momento final daquela história. Eles mereciam está como optaram a vida inteira.

Ao ouvir a moça da empresa encerrar a cerimônia, me virei para oferecer-lhe apoio e até para levá-la ao local para onde iria. Olhei, olhei ao redor, olhei tudo e a única coisa que existia eram duas rosas de um vermelho mais vermelho que jamais havia visto, estavam entrelaçadas, abraçadas uma a outra e o vento assim as carregou.

Não sei por que, mas sorri. Coloquei um pé na frete do outro e fui cuidar da vida.
Roger Ribeiro
06 de novembro 2012
* Soneto Do Amor Total – Vinícius de Moraes