segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

O trilho


 

 

 

“Eu vi um menino correndo
eu vi o tempo brincando ao redor
do caminho daquele menino”*

 

 

Sim o sol pesava-lhe sobre os ombros, olhava felinamente em busca de um refúgio, nada. Ergueu o braço em busca do tempo, o pulso não lhe deu a hora, no lugar dos ponteiros, da circunferência e da pulseira, havia um vão, sua mão esquerda pairava no ar, por entre o antebraço e a mão corria livremente o ar quente do verão, mas a mão continuava a obedecer-lhe com perfeição e isso lhe ficou bem claro no momento em que se percebeu um náufrago salvo pelo vento que não move moinho que, como a lâmina fria, chegava-lhe aos lábios como o cálido sussurro da madrugada.


Alguns em movimento se aproximavam:

 
- Desculpe-me, mas poderia me informar as horas?

- Claro! São doze horas de intensa claridade e ar quente, para em seguida vir doze horas de escuridão e ar tênue.

- Mas, em que momento deste tempo estamos?

- Estamos dentro do tempo presente, mas se apresse, pois logo podes ser aprisionado pelo bloco de tempo passado.
 

Partiram todos. Olhando ao redor a única coisa que avistou foi o Forte do Farol da Barra e este continuava imponente apesar da força para manter-se impávido, visto que o ar quente que soprava ao seu encontro deixava-lhe um tanto quanto maleável, por isso necessitava agarrar-se ao solo de maneira firme. Segurava-se na força de séculos que se escondiam por debaixo de suas rochosas paredes.
 

Percebeu que ao Farol também faltava um dos anéis de sua torre de luz, ali também havia um vão onde o vento quente passava silvando em direção as pedras do Porto da Barra. Aquele vão roubava-lhe a idéia de solidez, seria possível o girar as luzes de indicação sem parte de sua formação? Ficaria então as embarcações a deriva?
 

Uma embarcação a deriva é uma nave sem tempo. Ela pode pertencer a qualquer tempo, posto que não se dirige a local algum. Pode ter saído de Palos no século XV, mas quando chegou à futura América? Aliás, como pode ter chegado à América se esta não existia enquanto América? E o que existia? Em que hiato de tempo vivia? Teriam pulsos?
 

Olhou novamente os não pulsos apenas na esperança de constatar que perdera o tempo, aliás, perdera de tal forma que o vão aberto antes do tempo da mão permanecia intacto em meio à intensa temperatura que a esta altura beirava a algum grau que no momento não lhe vinha à mente, perdera o termômetro, a bússola, o mapa, a régua, perdera em algum lugar próximo ao vento, creio que ficou na caixa que esquecera ao sair, mas quando mesmo saíra? Será que saíra mesmo ou o externo é lhe foi ao encontro?
 

- Perdido meu jovem?
 

Olhou assustado e sentiu aquela não mão que lhe pousava sobre o ombro, onde antes lhe pesava a temperatura, e um rosto desconhecido que queria uma informação que não sabia dizer.


- Perdido, eu! Não. Só se perde quem vai a algum local. Não é o meu caso, aliás faço parte de um cenário onde um local me queria, sendo assim, não posso perder-me. E a senhora, sabes para onde se dirige?
 

- Sempre pra frente meu filho, sempre para frente, mesmo que saibas que darás a volta na circunferência. Mas o importante é a meta que se impões no espaço existente entre as duas paralelas da visão, vês?


- Não, há muito misturei o senso de visão, perdi as paralelas, desde então tudo se tornou um tanto quanto nebuloso, meio nublado, chuvoso, turvado como quando tentamos sentir o sorriso que não chega dos seus para os meus lábios, quando só reflito a sobra do trem que sempre parte dos meus pés ao infinito.
 

Levantou por mais uma vez o não pulso, e mais uma vez constatou que as horas o havia abandonado, já não há tempo.


Despediu-se de sua mais nova amiga entrou no trem, a mesma locomotiva que sempre estava partido, olhou a torre da estação e lá não havia o ponteiro, não havia o tempo. Tudo o mais ficou no exato momento em que os pingos se lançaram da nuvem e a eternidade até que molhem a terra.


Roger Ribeiro

24 de fevereiro de 2014


* Força estranha – C. Veloso