segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Esse cheiro de dendê no ar...



- Tá olhando o quê?

Bradou ela para que todos ouvissem. E todos ouviram. Eram 17 horas e quarenta minutos de uma terça-feira típica de novembro, ou seja, após um dia de sol intenso, o final de tarde trazia o alento da brisa fresca que vem do mar, além, claro, do forte cheiro de dendê quente que toma conta de todos os cantos desta cidade a partir das 17 horas.

Não houve quem não direcionasse o olhar para a fonte da voz. Ela era uma morena grande, daquelas que se vê com certa freqüência aqui na cidade do Salvador. Não era muito alta, possuía uma estatura mediana, normal para as moças soteropolitanas, assim no “olhometro”... Um metro e sessenta, não mais que isso, porém as partes do seu corpo possuíam lateralidades e volumes que lhe conferiam uma presença muito mais impositiva.

Estava em pé, de frente para o lado do mar. O coletivo estava cheio, é o horário de saída de trabalhadores e estudantes. A cada ponto mais gente se espremia para entrar no ônibus, e o trânsito interno no veículo já se tornava bastante difícil. Como se não bastasse, uma baiana colocou seus “apetrechos” (tabuleiro, mocó, cestos e afins) muito próximos da saída do transporte, afunilando, e muito, a passagem. Ninguém reclamou. Quem é maluco de reclamar com a baiana?! Ainda mais que ontem, 25 de novembro, foi o dia delas!

Aqui por essas bandas é assim, o transporte coletivo, se você estiver de bom humor, é sempre uma atração à parte no seu dia. Todos falam ao mesmo tempo e alto, o baleiro entra pedindo atenção de todos para suas promoções de balas e chocolates, alguém briga porque o trocador não tem troco para dar, todos comentam que é sempre assim, que o trocador está de má vontade, que o motorista está correndo demais, ou que está lento demais, o celular de alguém toca um pagode aos berros, crianças choram, idosos entram aos montes e ocupam metade das cadeiras, ninguém diz nada mas todos praguejam baixinho, pois estão cansados, trabalharam o dia inteiro. E pra completar, sempre tem um gaiato fazendo galhofa de tudo e de todos.

- Tá olhando o quê?

Repetiu, mais incisivamente a morena. Percebi que ela falava com um rapaz franzino que estava sentado no banco, dois passos atrás dela.

- Pensei que fadas só andassem em pontas de estrelas! É a primeira vez que vejo uma andando de ônibus. (respondeu o rapaz)

Ela disfarçou, mas não aguentou e largou um sorriso, porém antes que tivesse tempo de dizer algo alguém, uma voz perdida naquele coletivo lotado, completou:

- Também nunca se viu uma fadinha com um “pandeiro” deste tamanho, haja estrela!!
- É porque sua mãe só concorreu para o título de bruxa!!

Bradou a morena com sua possante voz. Todos caíram na gargalhada, assovios, berros, instigações, ouvia-se de tudo.
De repente a voz oculta mostrou-se e novamente manifestou-se:

- Não bote minha mãe no meio disso sua “broaca”!

Só ouvi o zunido do vento e depois o Splashh! Só que não era o beijo roubado no cinema e sim uma “bifa” (tapa, sopapo, ou como queira chamar), daqueles que pegam em cheio na bochecha e saem ardendo da nuca até o Tendão de Aquiles.

- Broaca é a ...
- É o quê? Cê só fala isso por que é mulher...
- venha cá que te dou outro sopapo... E blábláblá...

Nossa! A gritaria no ônibus era tão intensa que não se conseguia distinguir mais nada, era um empurra-empurra sem fim, todos provocavam a todos, na verdade cada um buscava colocar um gravetinho para ver a fogueira pegar fogo.

Quando a situação já estava insuportável de tantos gritos, palavrões, risadas, assovios, provocações e os “cambaus”. Veio a “gota d’água”: o cesto do baleiro voou! Foi amendoim, jujuba, balas, chocolates, doces em geral prá todo lado!

- “Peraí motô”!

O grito foi forte, o motorista olhou o campo de guerra pelo espelho, deu sinal e parou o veículo com aquele freio mais contundente que costumamos nomear de freio de arrumação.

- Tá pensando que tá carregando boi?

E voou um saco de amendoim na cabeça do motorista.
Por sorte, ou não, logo atrás do ônibus vinha uma viatura da polícia, que imediatamente parou e dela desceram três soldados da polícia militar já de arma em punho. Acho que desconfiavam ser um assalto.
Entram no ônibus e ordenam:

- As mulheres ficam os homens descem com seus pertences.
- Mas que é isso! Eu tô atrasado, esse povo maluco!
- Olha doutor, eu só quero saber quem vai pagar meu prejuízo? (Falou o baleiro com voz de choro).
- Esse vagabundo me chamou de “broaca”!
- Essa “broaca” ofendeu minha mãe.
- Aquele magricela disse que eu tinha que andar na ponta sabe lá do quê, pois ele nem tem caixa prá encarar o filé aqui!
- Eu só tava dizendo um gracejo!
- Alto lá! (berrou o Capitão, como ficou conhecido), vamos parar com essa gritaria. Já falei os homens descem com seus pertences e as mulheres ficam.

Todos resmungando, aceitaram a ordem, não havia jeito.
Revista de cá, revista de lá, a coisa começou a demorar, então alguém falou ao motorista:

- “Ô motô”, vou ali comprar uma água, não saia sem mim, heim!
Apontou para uma birosca que estava a uns 5 metros de onde o ônibus parou. E cada um que terminava a revista se dirigia à birosca. De água, alguém pediu uma cerveja, copos, as pessoas iam chegando, o baleiro tentava negociar seu prejuízo entre um copo e outro da cerveja. O motorista fingiu que ia no banheiro para tomar um copinho, pois como estava trabalhando e dirigindo não podia beber.

Chegou também a morena, a baiana, o gaiato, um dos policiais... De repente alguém sacou do pandeiro, o dono da birosca botou uma carne no carvão...
A morena achou o magricela e disparou com um copo na mão:

- E aí neném vai encarar?
O magricela pigarreou, olhou para a morena de cima a baixo, chegou para junto do pandeiro e disparou;

- “Lá vem a baiana
De saia rodada, sandália bordada
Vem me convidar para dançar
Mas eu não vou
Lá vem a baiana
Coberta de contas, pisando nas pontas
Achando que eu sou o seu iôiô
Mas eu não vou
Lá vem a baiana
Mostrando os encantos, falando dos santos
Dizendo que é filha do Senhor do Bonfim
Mas, pra cima de mim?!
Pode jogar seu quebranto que eu não vou
Pode invocar o seu santo que eu não vou
Pode esperar sentada, baiana, que eu não vou
Não vou porque não posso resistir à tentação
Se ela sambar
Eu vou sofrer
Esse diabo sambando é mais mulher
E se eu deixar ela faz o que bem quer
Não vou, não vou, não vou
Nem amarrado porque eu sei
Hum hum hum hum hum hum...”*

O ônibus foi embora, vazio!

Roger Ribeiro.
26 de Novembro de 2009.

* “Lá Vem a Baiana” – Dorival Caymmi

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Inteiro ou fração?




- Você destroca para mim?
Parei olhei a mão estendida a segurar uma nota de cinquenta reais e pensei: sim, eu entendo o que ela quer, ela quer saber se eu troco aquela nota por frações que a somatória dê aquele total. Mas porque ela coloca o “des” na frente do trocar?
- Moço! Você destroca ou não?
Continuei absorto pensando na semântica da coisa: eu só poderia destrocar se já tivesse antes realizado o ato da troca. Enfim falei:
- Você quer que troque?
- Sim “fiu”, você desgarra pra mim?
- Desgarrar?
- Sim! Preciso pagar umas compras na quitanda e lá ele não destroca.
Peguei a carteira pra ver se possuía a quantia.
- Cinco de dez...
- É já ajuda, obrigada.
- De nada, boa sorte!

Segui o meu caminho ainda pensando no assunto e concluindo que existe uma linguagem cotidiana que está longe, muito longe dos bancos escolares, das conjugações verbais, das sintaxes e morfologias. Existe uma linguagem que não está aprisionada em papeis, ela é viva, dinâmica. Anda pelas ruas e vai ganhando forma as mais diversas. Apega-se muito ao timbre, sem saber o que é timbre, mas na maior parte das vezes a entonação da palavra dita, diz mais do que a própria palavra.

Afinal, não é por preguiça, afinal dizer trocar é muito mais fácil do que dizer destrocar. É uma questão de comunicação, conheço pessoas que ao invés de ter dificuldade, tem dificulidade, e como a dificulidade é séria não há nem espaço para uma sonora risada já que a sonoridade da nova palavra tem um acento cômico quando chega aos ouvidos. Mas cada um sabe o grau das suas dificuldades, ou dificulidades, não é mesmo?

De tão intrigado nos meus pensamentos acabei por passar do local para onde estava me dirigindo, parei, percebi o erro gerado pela minha distração e dei meia volta para chegar ao local exato. Percebi que do outro lado da rua havia um quiosque oferecendo água de coco. Atravessei a pista cheguei ao balcão do quiosque e pedi:

- Por favor, me veja um gelado! (o calor era intenso).
Sem uma palavra o rapaz com muita destreza retalhou o coco, colocou um canudo rosa e me entregou a fonte do meu desejo imediato.
Tomei todo o conteúdo enquanto observava ao redor o colorido das pessoas que passavam naquela manhã ensolarada de um céu azul intenso que realçava as cores das roupas das pessoas. Fiquei uns dez minutos tomando a água de coco e saboreando a idéia de como a cidade era colorida. Pessoas negras vestidas de branco, pessoas brancas vestidas de preto, pessoas nem brancas nem negras vestidas de verde, vermelho, roxo, azul, amarelo, laranja, passou uma menina com um vestido de arco-íris... Embriaguei-me de tantas cores!

Perguntei o preço, só para confirmar, pois havia uma tabuleta bem clara que dizia: “coco natural ou gelado 1,00”.

- Um real!

Meti a mão nos bolso, nada! No outro e no outro... Percorri todos os bolsos e, nada! Peguei a carteira e lá estava arrumada em “berço esplêndido” a nota de cinqüenta reais “destrocada”. Meio sem graça, mas fingindo naturalidade peguei-a e estendi-a ao rapaz.
Ele me olhou e percebi no olhar que não estava acreditando muito no que via. Coçou a cabeça com o cabo do facão e disse:

- rapaz, tem trocado não?

Ainda sem graça, pois sabia que consuetudinariamente, eu estava errado, apesar de legalmente estar certo, afinal era dinheiro, eu não estava me recusando a pagar, portanto a obrigação de ter troco era dele. Porém, na lei do dia-dia não é assim.
O olhar dele para mim era de incredulidade, ou seja, ele não tinha troco, não tinha como sair dali, pois não havia ninguém para ficar no seu lugar e, pior, se eu não pagasse quem pagaria seria ele, afinal ele não era o proprietário do quiosque e sim apenas o funcionário e, certamente, o dono não iria nem querer saber, os cocos estavam contados e se não batesse quantitativo com receita quem pagaria seria ele.

- Rapaz, respondi, tenho não. Mas espera um pouco que vou tentar trocar.

Sai perguntando, fui a uma banca de jornais próxima e perguntei:
- Por favor, você troca pra mim?
A resposta foi um aceno de cabeça negativo. Saí perguntando a todas as coloridas pessoas que passavam. Nada. Voltei ao quiosque e perguntei:

- Rapaz ninguém troca, como a gente faz?
Ele me olhou, levantou o ombro e nada disse.
- Até que horas você fica aqui?
- Seis (que na verdade eram 18 horas).
- Olha, vou fazer o seguinte, estou atrasado para um compromisso, mas volto mais tarde e pago o coco. Não tem jeito, você vai ter de confiar em mim.
- Fazer o quê né bacana! Cê vem tomar um coco com uma nota de cinqüenta?
- Não se preocupe eu volto.
- Tá (um tá visivelmente contrariado)

Saí sem graça, me sentindo errado e com aquele olhar em cima de mim como quem diz: “vai voltar nada”. Mas para mim era questão de honra, precisava reparar o meu erro, não podia deixar a corda partir no lado mais fraco.

Cheguei ao meu compromisso, era uma palestra a respeito de conflitos sócio-políticos na África subsaariana na atualidade e de como se matava aleatoriamente em nome de diamantes, petróleo, ouro, drogas, enfim, como se matava por tudo, o palestrante passou trecho de filmes como “O Senhor das Armas”, “Diamantes de Sangue”, “Hotel Ruanda” e outros mais.

Saí impressionado com os exércitos infantis, meninos e meninas com armas, por vezes maior do que eles próprios. O palestrante era um sobrevivente de uma noite de massacre daquelas. Os horrores narrados eram de um realismo cortante. Lembrei das cores que avistara ao tomar o coco no Largo Dois de Julho, senti uma profunda repugnância pelo ser humano. Como podia um ser tão dotado de especialidades quase divinas praticar tantos horrores, em nome de metais, pedras, ou sei lá o quê!?

Saí do prédio do Centro de Estudos Afro Orientais da Universidade Federal da Bahia, meio atônito, fui ao florista, comprei umas flores vivas, muito coloridas, tão coloridas quanto o povo da minha cidade. Entreguei a nota de cinqüenta e já olhando para o quiosque de coco, pensei: e ele, com o facão na mão, em momento algum ameaçou me acertar, e olha que era por uma água de coco, algo infinitamente mais importante do que ouro, diamante, petróleo ou coisa que os valha. Instintivamente perguntei ao florista:

- Você destroca para mim?

Roger Ribeiro.
16 de novembro de 2009.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O dia em que o Lá menor se apaixonou



Todos os dias, pouco importava se era início, meio ou fim de semana, podia também ser feriado pátrio ou religioso, era inabalável: entre quatro e meia e cinco horas, junto aos primeiros raios do sol, os meus sentidos despertavam ao som daquela melodia saída do piano de alguma daquelas dezenas de janelas. De onde será que vinha? Que mãos será que passeava tão delicadamente por aquelas teclas brancas e pretas?

Por várias vezes levantei e fui até a janela tentar decifrar esses enigmas. Procurava por luz acesa em alguma das janelas, mas nada! Ou não havia nenhuma ou algumas. Tentei apurar a audição a ponto de definir o nascedouro geográfico da melodia, nada! O som se propagava livremente naquelas quase sempre manhãs frescas de brisas leves. Às vezes imaginava um roteiro para cinema, essa era a única forma que encontrava para responder a todas aquelas perguntas.

Bolei de tudo, senhoras viúvas nuas desvairadas, enlouquecidas, jovens românticas sofrendo por perdas amorosas, meninas feias de áureas grandiosas, Jovens senhoras que tocavam para o corpo embalsamado do marido ou do filho no centro da sala... Em um ano criei mais argumentos e roteiros fílmicos do que toda a produção das companhias Atlântida e Vera Cruz somadas.

Porém, essa necessidade de definição só durou um ano, primeiro porque encontrei outro dilema para me preocupar, qual seja: numa dessas belas manhãs enquanto ouvia uma melodia triste, bem triste de Franz Liszt (sim passei a estudar música para reconhecer o que vinha do piano) e bolava mais um argumento, percebi que todas as histórias que criava sempre a protagonista era do gênero feminino, seja nova, madura ou velha, mas sempre era mulher e o piano sempre negro e opaco.

Fiquei efetivamente preocupado com isso, seria um sintoma de paranóia? Uma fixação materna, uma carência afetiva, uma patologia emocional, uma fixação na fase infantil? Eram perguntas e mais perguntas sem respostas, busquei ajuda, alistei-me no rol de pacientes de um psicólogo, fiquei um mês, percebi neste tempo que a psicologia é uma ciência lenta e cara, nestes trinta dias e quatro encontros o meu querido “médico de maluco”, não me disse nada e eu acumulei um novo problema: dívidas.

Larguei as consultas e resolvi que se havia vivido até aquele momento bem com minha fixação pelo sexo oposto, então continuaria assim, voltaria a ser um feliz sociopata romântico e não endividado. Foi difícil chegar a esse ponto, mas cheguei e percebi que tudo isso havia me desviado do melhor, ou seja, a ação de apenas me permitir embalar pela melodia matinal produzida pela busca incessante da carícia dos dedos nas teclas do piano e virse-versa. Mãos finas e femininas e piano negro opaco, claro.

Notei que ninguém nunca reclamou, apesar do horário, nunca ninguém gritou da janela: “para com essa zonada aí!”. Na verdade, creio que todos como eu, achavam-se privilegiados, afinal, em uma cidade como esta, com todas as cruezas das cidades grandes, com todo o corre-corre, o barulho, a sujeira, o mau-humor, os atrasos, trânsitos, incompreensões, enfim, com tudo o que compõe a vida urbana contemporânea, quantas pessoas têm o luxo de serem acordadas por uma suave e linda melodia?

Sim, era uma benção, por isso após passar pela paranóia de ter de explicar tudo, quando eu evoluí para minha condição de imagem e semelhança do bem e me deixei embriagar pela música, então meus dias passaram a ter sempre a perspectiva de serem maravilhosos.

Uma hora, sempre por uma hora, alguém, aquela mulher, presenteava a cidade com sua sonoridade. Passei a buscar variações, levantava e sentava no chão da cozinha, vestia uma bermuda e ia para a varanda, descia do prédio e ficava no meio da rua, subia ao último andar e, após longa negociação consegui fazer uma cópia da chave que me dava acesso ao teto onde fica o tanque d’água do prédio. Em cada lugar o som chegava diferente, mais grave, mais agudo, ecoando, reverberando, equilibrado...

Um dia fiquei parado no meio daquela imensa avenida ouvindo-a tocar e imaginei aquele som seguindo avenida afora, sem nada para detê-lo, desviar o seu caminho. Invadiu-me uma sensação de infinitude e liberdade, que jamais havia sentido.

Em uma manhã especial, quando o céu foi ficando todo rosa e uma bruma de água pousava lentamente sobre a cidade, ela tocou Ave Maria de Schubert. Estava na janela esperando o início do concerto e fiquei paralisado. Costumava ouvir essa composição, pois tinha o hábito de correr ao final de tarde e a rádio que escutava enquanto me exercitava, às 18 horas tocava-a com os mais variados interpretes, porém, com aquele sentimento, com aquela sensibilidade, eu nunca havia escutado.

Era quase que a idealização do que seria o paraíso! Aquela bruma de água, o roseado celeste, o cheiro da terra úmida e aquelas notas sonoras suspensas no ar. Cheguei a parar de respirar para não interferir. Cheguei à conclusão de que deveria ser o dia do aniversário dela, anotei no calendário da cozinha, só podia ser isso.

Nesse dia, nada conseguiu me aborrecer, no trabalho todos brincavam de que eu estava com cara de apaixonado, com ar de quem viu o passarinho verde, ofereceram-me a trilogia de Polyana, me aconselharam sobre os perigos da paixão, etc, etc.

Fui ao banheiro do escritório e percebi que realmente havia algo estranho na minha fisionomia.

Pois amanhã faz exatamente um ano daquela manhã, faz também um ano que entrei para o conservatório de música da Universidade Federal e estudei compulsivamente. Agora estou aqui, no ônibus indo à Praça da Sé, marquei com meu amigo-irmão Pedro Santana, na loja de instrumentos musicais, pois ele irá me ajudar a escolher um violino.

Amanhã ela terá uma grande surpresa! No dia do seu aniversário, de uma janela que ela não saberá qual, o som do meu violino irá dançar junto à melodia que, por tanto tempo solitário, aqueles delicados dedinhos produziam nas teclas do piano negro opaco. Será um amanhecer para a eternidade.

Roger Ribeiro
30 de outubro de 2009.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Ela me falou algo sobre roupa




- Troquei o meu cobertor por uma capa para minha guitarra.
- Mas como assim? Você ficou louco?
- Não apenas não sinto frio, e minha guitarra necessitava de uma roupa digna!
- Não sei não, acho que você não fez uma boa ação.
- Olha bem minha querida, boas ações são coisas para Lobinhos, Escoteiros e Bandeirantes.
- Você me lembrou bem! Sabe, nunca mais vi uma alcatéia de lobinhos nem tampouco pessoas vestidas com aquelas fardas de escoteiros e bandeirantes. O que será que aconteceu? Será que ainda existem? Ou será que se extinguiram?
Lembro bem que quando eu era menina, sempre aos domingos pela manhã os via em fila, cantando. O primeiro sempre carregando a flâmula que identificava o grupo. Isso era a cara do domingo. Nunca mais os vi.
- Creio que foram superados pelas ONGs.
- Será?
- Olha o que tem de ONG que cuida de pato, cachorro abandonado, gato manco, tartaruga em desova, periquitos de asa cortada. Tem ONG pra tudo baby, só não vê quem não quer.
- Pena, gostava daqueles grupos, “sempre alerta!”.
- Eu heim!? Você está parecendo disco do Roberto Carlos, sempre parece que já ouviu aquilo no disco anterior.
- Não seja insensível. Aliás, o que esperar de alguém que troca o próprio cobertor por uma “roupa nova” para a guitarra? Só pode ser um desumano mesmo.
- Por quê? Você acha que a “Brigitte Bardot” não merece um traje de gala? Sei não... Acho que você está é com inveja.
- Eu não, nem ligo. Só fico pensando quando formos acampar novamente, como será sem o Bob.
- Viu! É sempre assim, você só pensa em você. Se eu tivesse trocado o “Bob Dylan” por aquele vestido curtinho, ou aquele colar de contas coloridas, ou ainda aquela bota prá você, certamente você não diria nada, mas como foi uma roupinha nova prá “Brigitte”... Aí você faz esse drama todo.
- Você quer me comparar a essa guitarra de décima mão? Toda estropiada, empenada e desafinada? Eu bem que vinha desconfiando de sua sanidade mental, mas agora você passou de todos os limites. E te digo mais, esse universo é pequeno demais para mim e “Brigitte”, portanto escolha já: ou eu, euzinha ou ela. E ponto final.
- Se fosse você eu não faria isso!
- O quê? Pois está decidido. Nunca mais me procure. Adeus fique com essa guitarra velha... E tem mais, eu nunca te disse, mas agora vou dizer.
- Lá vem... Se nunca disse foi por covardia, nunca te censurei de dizer nada.
- Pois saiba que você é o pior guitarrista que já ouvi tocar.
- Pô! Agora você pegou pesado, O PIOR?

Dei as costas e fui embora, eu e “Brigitte”. Parei algumas quadras adiante, olhei para ela em sua roupinha nova e com os “olhos rasos d’água, o coração cheio de mágoas” perguntei: “Brigitte”, você que já passou por tantas mãos, eu fui o pior? Ela não respondeu.

Sentei no banco da Praça do Relógio de São Pedro e apoiei o queixo no braço daquela única criatura no mundo que me entendia. Ela foi cruel demais, não havia necessidade, ela podia ter me dito apenas adeus e ido embora, não precisava magoar o meu coração desse jeito. Será que eu toco pior do que aquele oxigenados do “Pagodão de Dona Maria”? Não! Não é possível, aí já é demais. Ele não sabe nem afinar as cordas! Da última vez, antes da “Caveira com Osteoporose” entrar em cena, eles iriam fazer a abertura (sim, acredite, é um desses eventos que acontecem nessa cidade que tem como mote a diversidade, sabe como é?) pois, era a nossa estréia e botaram pra abrir a noite uma banda de pagode.

Como uma banda de Rock pode entrar pra tocar depois do “Pagodão”? Bem, mas isso não vem ao caso, o certo é que quem afinou a guitarra do oxigenado fui eu! Então não é possível que eu seja pior que ele!

- Oi, você sabe tocar aquela do Paulo Diniz? Ô moço, tá morto? Tá me ouvindo falar com você não? Ô, fiu! Num tá escutando não?

Senti uma mão no meu ombro me chacoalhando, retornei à realidade assustado. Havia um homem, com um paletó preto todo roto, uma gravata azul com uma clave de sol amarela bordada, imunda, uma barba de pelo menos uns três anos e uma bota preta que começava a dar sinais de exaustão.

- Ôxi menino, tô te perguntando se sabe aquela do Paulo Diniz?
- Desculpe, não ouvi que estavas falando comigo.
- Perdoado, mas agora já sabe e, sendo assim, dá prá me responder?
- Já sei você quer aquela de “voltar prá Bahia” né?
- Que! Você está louco. Se fosse essa eu mesmo tocava e cantava, olha (tirou algo do bolso do velho paletó), veja tenho essa harmônica desde os doze anos de idade foi meu pai que me deu. (solou um trecho da melodia). Mas não estou aqui para tocar pra você...
- Sim e qual é a música que você quer?
- “Viola no Paletó”.
- Como? Viola aonde?
- E... Já vi tudo, você está guardando a guitarra de alguém não é mesmo? Afinal não existe guitarrista no mundo que não conheça “Viola no Paletó”. Te digo mais, sabe quem tocou ela? Hendrix meu filho! Ele mesmo, no festival de Monterrey em 1968. Você nem tinha nascido, tá achando pouco? Pois o Clapton...
- Quem?
- Clapton, Eric Clapton, mas que diacho de guitarrista é você? Vai dizer que nunca ouviu falar nele?
- Claro que ouvi.
- Pois ele mesmo, eu estava lá, foi no Festival da Penha, ali na Ilha, em 1976, ele sozinho na guitarra tocando o quê? Adivinhe...
- Sei lá! Nunca soube que Clapton tocou aqui.
- Santa ignorância, essa juventude... Pois ele tocou e solou longamente o clássico “Viola no Paletó”.
- hum...
- Já vi tudo, você não sabe não é mesmo? É assim, ouve só: lá, lalá riii lááá! Sacou?
- Não.
- Da cá essa guitarra e aprenda.
- Mas é preciso um amplificador e uma caixa prá guitarra soar.
- Você não sabe de nada, escuta:

Minha gente eu vim de longe
Estou aqui cansado e só
Tenho muito pra contar
Do que vi, por onde andei
Das estradas dos caminhos
Dos lugares que passei
Tô chegando e trouxe pouco
Porque muito eu não ganhei
Trouxe forças pra lutar
Por um bem que já se fez
Trouxe uma vontade imensa
De ficar de uma vez
Trouxe um canto e um desencanto
E um sorriso que consola
Muito amor dentro do peito
Pouca coisa na sacola
Trouxe o cansaço da vinda
De quem anda a pé e só
E uma viola sofrida
Pendurada no paletó.*

Aprendeu?
- Olha... (pensei melhor, o cara é louco, melhor não contrariar) Claro, é fácil.
- Ótimo, então vamos.
- Como assim? Vamos aonde?
- Na casa dela, claro.
- Dela quem?
- Primeiro vamos passar na casa de uma moça linda, advogada sabe? Ela processou e condenou meu coração, a malvada, perversa! É pra ela que vou cantar essa canção. Depois, bem... Depois você vai tocar para a moça que está lá na Praça Castro Alves triste que nem Lua Minguante, com os olhos refletindo você, assim como os seus estão refletindo ela.
Vamos! Não há tempo a perder, precisamos fazer tudo isso antes que a Terra dê mais uma volta sobre si.

Roger Ribeiro
22 de outubro de 2009

* Viola no Paletó - Paulo Diniz

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Sim, eu ouvi




Foi assim mesmo como estou te falando. Ela vinha firme e se espatifava na pedra. Voava uma espuma branca muito alto, mas muito alto mesmo! Era de uma beleza que não conseguiria nunca, por mais que tentasse fazer você ver.

Eu estava bem acima, na mureta de proteção, na minha frente um mato fechado, de um verde profundo que, pelo ângulo do meu olhar, se estendia até o azul claro do mar. Tudo parecia muito calmo, era um dia aberto de sol forte e ventos fracos, tudo indicava que, enfim, a harmonia reinava.

Engano. Do nada, ela vinha como uma montanha e sem medir as conseqüências se espatifava na rocha marinha. Era fúria pura. Só podia ser um sinal, não era possível que aquilo fosse à toa, não era acidental, era uma após a outra.

Por que você me olha desta forma? O que estou te dizendo é a pura verdade, fiquei paralisado frente aquela força, aquela coragem de se lançar daquela maneira e se espatifar em milhares de pedaços. Ali não era água e pedra, mas sim energia, o universo se repensando.

E você fica aí olhando para mim como se estivesse vendo um louco! Não quer compreender. Às vezes é necessário ter a coragem de se lançar de frente, de peito aberto se espatifar para, quem sabe, se reagrupar e renascer novamente. Não suporto mais seu sorriso débil, seu pequeno mundinho de escritório, sempre as mesmas futricas, as mesmas pessoas agindo sempre da mesma forma e você se julgando superior a tudo e a todos. Fulaninha disse isso, fulaninho não fez aquilo... E você? O que fez? O que faz?

Nada? Ta, já sei, no sábado você vai ao salão, depois vai visitar seus pais e almoçaremos nos dizendo que as contas estão cada dia mais altas, que já não sabemos mais o que fazer, que merecemos um aumento de salário, que o computador de sua sala é velho, lento, que, pelo menos, poderiam te dar uma máquina nova para trabalhar! Por fim, de barriga cheia, muito mais de ar de tanto reclamar do que de comida. Iremos dormir à tarde até a hora de tomarmos banho e irmos ao shopping comprar um presentinho para não sei quenzinho, filha de fulaninha que vai nascer, ou nasceu, ou já existe há tempos. Sei lá!

Só sei que à noite você vai querer assistir aquele filmezinho já deitada na cama, sem perfume, sem aquele vestidinho colorido de alcinha, sem batom, com o cabelo preso para não embaraçar, creme na perna, no braço, no rosto e, certamente dará o golpe final:
- Amanhã, o marido de Carlinha vai fazer um churrasco e nos convidou.

Eu já esperava algo assim, claro! Tem um ano que tento parar de comer carne e todo domingo tem um churrasco que o marido, o filho, o amante, o pai, ou seja lá quem, vai fazer e nós somos convidados. Pararei a leitura e farei a já esperada pergunta:

- Quem é Carlinha?
- Pô, você heim!? Carlinha lá do escritório, aquela que sempre vai com o mesmo vestido.
- Não sei quem é.
- Sabe sim, semana retrasada demos carona para ela. É aquela que mora perto do Farol de Itapoã.

Minha nossa! Pensarei sem verbalizar: moramos no Campo Grande, amanhã é domingo, pelo visto fará sol e teremos de atravessar a cidade naquele trânsito infernal, suando feito beduíno para encontrar o escritório dela, de bermuda e sandália. A mesma coisa, as mesmas pessoas que ela vê de segunda a sexta, apenas piorado, pois estarão acompanhados dos mesmos maridos ou esposas, namorados ou namoradas, inclusive eu, contando as mesmas histórias como no dia em que ficaram presos, pois o contínuo perdeu a chave e a porta fica trancada por causa de assaltos. Vai ser emocionante.

E você continua olhando-me com esse sorrisinho no rosto como quem pergunta se está tudo bem comigo. Sim, é claro que está tudo legal comigo. Apenas estou tentando lhe dizer que por trás daquela calmaria que se fazia hoje, havia algo em fúria. Ninguém nunca imaginaria o que se passava, era algo que vinha inexplicavelmente, mas vinha. E quanto mais ela se lançava contra a rocha, mais o verde das largas folhas se agitavam e se tornavam mais verdes, sempre mais verdes e mais vibrantes!

Era como se elas também estivessem encantadas com a beleza daquela força. Eu sentia que algo me atravessava o peito, sentia na boca o sal daquela espuma branca no ar, sentia que aquelas largas folhas verdes se enraizavam nas minhas pernas. Estava paralisado, por mais que quisesse, não conseguia me movimentar. Algo se apossou de mim e eu nada podia frente a isso.

Se você um dia viver o que vivi, vai entender. Mas, para isso, você vai ter que permitir que o verde do mato se enlace nos seus finos e brancos pés, que o sal das águas do mar resseque seus lábios vermelhos sem batom, que a leve brisa tome a forma de uma lança e atravesse seu peito nú. Que uma força em fúria domine sua mente e dirija o seu olhar para algo que você nunca viu, nunca pensou poder existir. Você perderá completamente o domínio sobre você e, quando menos perceber, estará nos braços do universo dançando uma música que ninguém nunca tocou, cantou, criou.

Apenas você sentirá que seu sangue vazou dos seus poros, suas células se desconectaram uma das outras, você se desmaterializou por completo, lançou-se com toda a fúria ao encontro de algo muito maior. Você se espatifou em milhões de pequenas partículas fluorescente.

Sim, é por isso que estou aqui impassível, tranqüilo e terno, a um segundo apenas de me virar de costas e sair sem te dizer absolutamente nada, após você, temerosa, com olhar aflito, me dizer que não me quer mais.

Roger Ribeiro.
16 de outubro de 2009

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Tio



Saco! Você precisava me enviar essa mensagem às seis e meia da manhã? Eu tenho certeza de que você fez de propósito, claro! Sua idéia era acabar com o meu dia, minha semana. Talvez a sua maldade seja tamanha que seu intuito seja acabar com meu mês, meu ano. Ora! Por que você não diz logo que seu maior desejo é acabar com a minha existência, riscar, apagar de uma vez por todas meus passos pelo planeta, desvirar minha ampulheta, apagar dos anais do universo, meu ser, nem que seja necessária borracha bicolor para lápis e caneta!

Saí de casa assim, digamos, meio nervoso, os dentes travados. A impressão que tinha era de que babava feito cachorro louco. Bati a porta com a chave dentro, claro! Tinha de ser assim, o dia estava azul que nem vestido de noiva apaixonada e meu ser, meu eu, meu íntimo intransferível, amarelo, pior, amarelinho como gemada para tuberculoso, psicótico crônico, ou quem sabe algo aterrador como sorriso de comentarista esportivo da Rede Globo. Vixi... Eu heim! Xô!

Entrei no automóvel e antes de dar a partida fui escolher um cd para aliviar o dia. Algo calmo para quebrar a fervura ou algo pesado para deslocar o foco da questão? Fui passando um por um no porta cd: Gil, Marina, Ronei Jorge, Led Zeppelim III, Cascadura, Dead Kennedys, Sex Pistols. Mas ainda não era o que precisava ouvir naquela manhãzinha, insuportavelmente azulzinha como tudo que termina em inho/inha – amorzinho, benzinho, xodozinha, chatinha, inssuportavelzinha, fominha, soninho... Arc, gruff! Chega.
Achei, finalmente achei, era o último cd da pilha. “Úteros em Fúria”! Sim, meu querido amigo Maurão iria me resgatar naquela manhã.

Som “no talo”, automóvel ligado, freio-de-mão arriado, consegui enfim soltar o primeiro sorriso do dia ao pensar: ainda bem que aqui não tem Rua Augusta! Agora é cuidado, atenção, não deixe seus nervos desalinhados perturbar a concentração. São muitos carros circulando e ninguém tem nada a ver com a mensagem, impertinente, que recebestes. Claro! Falei bem alto para me convencer.

Um quarteirão, sim, acredite, não é paranóia! Um quarteirão e o pneu estava no chão, o metal da roda no asfalto fazia aquele som inigualável como quem diz: vais ter de sujar a mão.

Encostei, abri o porta-malas, peguei: triângulo, “macaco”, chave-de-roda, encontrei enfim aquela parafina perdida, toda derretida no carpete da mala, uma cena linda! Como se não bastasse descobri também que aquele iogurte que pensei haver pago e deixado no caixa do supermercado, também ele residia, junto à parafina, na mala do “Demolidor”, meu possante automóvel.

Ao virar-me de volta para a rua, lá estava ele, claro, nesta hora eles sempre aparecem, surgem do nada, acho que brotam do asfalto ou da calçada, parece que sempre estiveram ali, mas você só os vê neste momento, olhou para mim e disparou:

- Furou o pneu tio?
- (Ai, dói nos ouvidos, tudo menos tio!) Nããããão, de jeito nenhum, o problema são os outros três que estão cheios de ar.
- Olha tio, né por nada não, mas esse outro aqui também tá bem ruinzinho, viu?
- (Ui, agora doeu demais, tio somado a inho, eu mereço) Não sou seu tio.
- Certo tio.
- NÃO SOU SEU TIO!
- Fica nervoso não tio, acontece são muitos buracos na rua, não tem pneu que agüente. Olha se o senhor quiser, eu troco. Depois o senhor dá um trocadinho...

Não costumo explorar o trabalho infantil, nem dar trocado para crianças para não incentivar a “indústria” da exploração de infantil, mas naquela, até então, tenebrosa manhã, tinha uma reunião importante por isso estava vestido que nem diretor de arte de agência de publicidade. Manja? Pois é.

- Tudo bem, você sabe trocar pneu?
- Claro, troco uns dez por dia aqui mesmo.

(será que ele põe pregos na rua? Afastei o pensamento, era sórdido demais).

- só tem uma coisa...
- sim, o que é?
- normalmente não tenho força para folgar os parafusos da roda.
- tudo bem, deixa que folgo. Enquanto isso, traga o “socorro” aqui para perto.
- (Lá fui eu folgar os parafusos) Pega também o “macaco” que deixei lá junto ao triângulo, e depois encaixa o “macaco” no lugar certo.
- Tio! Seu carro é complicado, não encontrei o encaixe para o “macaco” não.
- Tudo bem, me deixa ver isso aqui. Agora para de me chamar de tio, pelo amor de Deus.
- Tudo bem tio.

(Ai!) Ergui o carro, tirei a roda, encaixei o “socorro”, coloquei os parafusos, desci o “macaco”, apertei o parafuso, ficou uma beleza. Conferi o outro pneu, realmente estava meio baixo, mas dava pra chegar ao posto para calibrar. Meti a mão, imunda, no bolso, tirei a carteira e... A menor nota que tinha era de dez reais.

- Aí “meu sobrinho” (tentei recuperar o humor), vai ao bar ali e compra uma água sem gás pra mim.

Rapidamente ele foi e retornou com a garrafinha de água e o troco. Peguei um real e dei-lhe.

- Pô tio, abre a mão! Eu tô com fome, desde ontem não como nada e ainda tenho que levar uma comida pra casa, pois minha mãe tá doente e tenho mais três irmãos menores que estão há dois dias sem comer e bláblábláblá....
- tá, tá, tá chega. Pelo amor de Deus! Toma! (puxei a nota de cinco reais e dei-lhe.)

Entrei no carro, dei a partida e ainda tive tempo de ouvir.

- Valeu aí, Tio!

Mudei o disco, talvez algo mais calmo fosse melhor. Coloquei a Fernanda Takai tirando onda de Nara Leão. Respirei aliviado. Pensei: coitado do menino... Espera aí, quem tirou o “macaco”, o “socorro”, o triângulo de sinalização e a chave de roda da mala-do-carro fui eu, quem folgou os parafusos fui eu, quem tirou o pneu furado e colocou na “mala” também fui eu, quem botou o pneu socorro no lugar, colocou os parafusos apertou, subiu e desceu o “macaco’ também fui eu! Dei um real para ele, depois dei mais cinco, ou seja, aquele “pestinha” ganhou seis reais meus só para atravessar a rua e comprar uma água! Eu mereço.

Olhei para mim, conferi... Eu estava imundo, um lixo ambulante, minha roupa de publicitário havia virado de borracheiro. Eu cheirava mal, suava as bicas, era verdadeiramente um flagelo humano... E agora? O que fazer? No meio dessa agonia, o celular tocou. Deus! Deve ser do trabalho, estou atrasado e essa história de pneu furado é antiga... Encostei o carro para atender a chamada.

- Alô.
Do outro lado, uma voz toda meiga falou.
- Alô, benzinho... Olha, tô ligando pra pedir perdão por hoje cedo. Eu não queria dizer aquilo, você não é nada daquilo, você é um amor de pessoa, eu te amo muito... Perdoa-me, é que acordei na TPM, sabe como é, né?

- Tudo bem, beeenhêê! À noite a gente se fala.
- Bom dia pra você, até a noite!

Grrrrrrrrrrrrrrrrr! O que eu fiz de errado nesta vida meu Deus!
No som Fernanda Takai dá o golpe final:

“Ah, insensatez que você fez / coração mais sem cuidado / fez chorar de dor / o seu amor / um amor tão delicado...” *

Roger Ribeiro
02 de outubro 2009-10-08

* “Insensatez”- Tom Jobim / Vinícius de Morais

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Quem quer saber o quê?



- Então está combinado. Encontraremo-nos na Praça Tereza Batista, no momento em que Jards Macalé cantar a segunda música do show, você, de camisa branca, se posicionará bem em frente à mesa de som. Não tente adivinhar quem sou. Eu me aproximarei de você.

- Você estará com o doc...

- Claro. Não se preocupe levarei todos os documentos que comprovam a verdade.

- Está bem, estarei lá sem falta.

- Não se esqueça de ir de camisa branca para que eu possa saber quem é você.

Clic. O telefone foi desligado, era uma ligação de aparelho público para que o número não fosse identificado. Tudo se passava com absoluto sigilo. A situação era grave, exigia cuidado.

A negociação não envolvia dinheiro, não era uma chantagem, nem próximo a isso, aliás, muito pelo contrário. O que iria se presenciar era na verdade uma ação cidadã da mais alta estirpe. Você então se pergunta para que tanto sigilo? Tantos subterfúgios e cuidados? Ora meu querido, a verdade nem sempre é saudável para todos e por isso pode, muitas vezes, custar bem caro.

Era um belo fim de tarde e uma moça, alta, devia ter por volta de um metro e oitenta, com cabelos muito lisos e negros que lhe caiam até o meio das costas, postava-se debruçada na balaustrada da praia do Porto da Barra a observar aquela “bola de fogo vermelha” que se deitava por detrás da Ilha de Itaparica. Soprava uma brisa fresca e as pessoas passavam aos grupos falando alto e rindo, outras se abraçavam e, aproveitando daquele momento quase místico, faziam juras de amor. Ela estava visivelmente tocada, emocionada com toda aquela áurea de paz e felicidade. Afinal havia perdido a sua paz há algum tempo, isso se percebia pelo opaco dos seus olhos que um dia, certamente, deviam ter brilhado como diamantes.

Permitiu-se ficar, o que era muito raro. Havia tornado-se extremamente exigente consigo mesma, tinha de estar sempre em atividade, não se permitia ao prazer, ao lazer, nada! Se não estivesse trabalhando, estava estudando ou planejando novos trabalhos. Creio que resolveu ocupar-se desta forma para evitar os seus próprios pensamentos, fugia de sua verdade, afinal nem sempre a verdade se faz necessária e saudável.

O tempo passou e ela nem sentiu, também não viu que aquele rapaz que lhe perguntou as horas, na verdade estava, a tempo, procurando uma forma de se aproximar. Também não percebeu que um par de seus brincos havia caído de sua orelha e se alojado caprichosamente no espaço vago entre a pedra portuguesa branca e a preta. Não percebeu, na verdade, nada. Também não queria perceber. Há anos não se permitia vagar, deixar os seus olhos guiar os seus pensamentos, fazia tempo que não namorava a si mesma!

Olhou o relógio e viu que já estava quase atrasada. Virou-se e atravessou a rua em direção ao ponto de ônibus. O brinco de pedra escarlate permaneceu a embelezar a calçada que agora já não mais era preta e branca, mas sim preta, branca e escarlate, isso, óbvio, para bons observadores. Pegou o coletivo Praça da Sé, sentou-se e, novamente deixou-se absorver pela paisagem em movimento.

Ficou na verdade brincado de achar que ela estava parada, o que era verdade, afinal era o ônibus que estava em movimento, mas fez de conta que estava sentada em algo estático e que as coisas é que estavam em movimento - o prédio, a casa, o poste, o outdoor, os seres humanos, a academia, o asfalto - tudo correndo na mesma direção. Ficou tonta, para piorar a situação lembrou-se de Pró Mercedes (na época pró era pró, não havia essa coisa chamar de tia), lá no curso primário explicando o, na época inexplicável, curso da rotação e translação da Terra, lembrou que também lá havia ficado enjoada.

Antes do Elevador Lacerda o ônibus parou e o cobrador anunciou o ponto final, fazia isso, pois esse percurso era muito freqüentado por turistas. Pensou: “porque será que esse ônibus diz que o destino é a Praça da Sé se estou tão longe desta? Na verdade estou no meio da Rua Chile! Passarei pelo Elevador, pela Câmara Legislativa Municipal, pelo Palácio da Aclamação, pela inconveniente arquitetura da Prefeitura, pelo Museu da Misericórdia e aí sim chegarei à dita Praça. Acho que na bandeira do ônibus deveria ter: Rua Chile. Seria mais honesto”.

Parou no carrinho de iguarias, à porta da Câmara Legislativa e comprou um milho e um saco de amendoim, ambos cozidos. Continuou a passos lentos seu caminho rumo ao Pelourinho. Não gostava de ir a tal local. Sempre que ia ao Pelourinho sentia um peso nas costas. Uma vez procurou uma explicação para isso e o máximo de resposta que obteve foi que era porque ela era baiana. Achou essa resposta “jorgeamadiana” em excesso, deixou para lá e buscou evitar ir ao local. Tarefa difícil para quem mora na cidade do Salvador. Vira e mexe algo te leva lá.

Parou na padaria do Terreiro de Jesus e comprou um refresco de maracujá para si e um pão com manteiga na chapa para uma senhora que esmolava na porta do estabelecimento. Ficou um tempo na porta olhando o chafariz que solidamente se impunha no meio do Terreiro. Pensou: “hoje a água sobe impulsionada por uma bomba hidráulica elétrica”, e antes da eletricidade?

Lembrou que tinha de chegar à Praça Tereza Batista e adiantou o passo. Chegou e o evento já havia começado, no cartaz dizia tratar-se de um evento reunindo a vanguarda musical. Olhou bem a programação e notou que as principais atrações ou tinham o cabelo grisalho ou branco mesmo, pensou: “puxa, faz tempo que ninguém ousa.”

Postou-se em um local que dava boa visibilidade à mesa de som e aguardou. Logo terminou o primeiro show e veio o segundo.

- Nossa! Arrigo Barnabé. Há quanto tempo que não o vejo!

Aguçou a audição e ficou feliz ouvindo o criador de “Clara Crocodilo”. Ficou impressionada com o tecladista que lhe fazia dueto, nunca imaginou que pudesse haver outro louco a ponto de tocar daquela maneira. Viu algumas pessoas amigas e tratou de ficar o mais escondida possível. Nesta busca por ocultar-se acabou por presenciar algo inusitado como o encontro dos guitarristas Luciano Souza com Lanny Gordin.
- Isso é que é surrealismo, Salvador Dali perde feio.

Veio enfim o show de Jards Macalé. Na segunda música, olhou para frente da mesa de som e lá estava um jovem de aproximadamente 30 anos de camisa branca e olhar tenso, ansioso. Ela aproximou-se vagarosamente. Postou-se ao seu lado, abriu a bolsa e retirou um envelope pardo.

- Jaime?
- sim.
- Aqui está o documento. Nele você encontrará a resposta que tanto persegue. Porém, antes que você abra e leia te digo de todo o coração; nem sempre as verdades são necessárias.

Ele olhou-a fixamente, pegou o envelope, voltou a olhá-la, naquele momento só havia, ele, ela e o envelope pardo. Por uma estranha razão, talvez por ter se livrado do documento no envelope pardo, os olhos dela voltaram a brilhar. De súbito o universo deles foi invadido pelo som potente dos que vêem à frente:
-“Não choro, Meu segredo é que sou um rapaz esforçado, fico parado, calado, quieto, não corro, não choro não converso...”*

Ele segurou-a pela mão e desceram juntos as escadarias da Praça Tereza Batista.

No outro dia, ao fazer a limpeza da Praça o rapaz observou que jazia, ainda lacrado, na cesta de lixo, um envelope pardo. Apanhou, abriu e leu-o, ficou gelado, pálido, seus olhos tornaram-se opacos... Pensou: “porque fui fazer isso?!”

Nem sempre as verdades são necessárias.

Roger Ribeiro.
1 de outubro 2009.
*Mal Secreto – Jards Macalé.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Feliz? Então registre.



Ainda era razoavelmente cedo, algo entre oito e quinze e oito e meia. O dia da semana também não indicava nenhuma anomalia, não era segunda-feira e nem sexta-feira, o que indica que não há motivo nem para mau-humor nem para ansiedade. Tratava-se de uma terça feira qualquer meados de setembro, próximo à data do caruru de Cosme e Damião.Portanto, nada daquela hiper movimentação de fim de ano e muito longe daquelas chuvas intermitentes que indicam que o verão se foi e que é hora de pensar na vida!

Entrou na sala absorto nos seus pensamentos e dirigiu-se ao local indicado pela placa em forma de seta que anunciava “retire uma senha e aguarde”. Foi o que fez, apertou o botão, esperou a saída do papelzinho branco que indicava o simpático número 62, riu por pensar em algumas coincidências e, enfim, dignou-se a olhar o ambiente.

Estava cheio, havia poucas cadeiras vazias, dirigiu-se rapidamente à de sua escolha (dentro das poucas opções) e sentou-se. Por alguns instantes, faltou-lhe coragem de olhar o vermelho painel aonde as senhas eram exibidas. Pensou: “vamos lá homem, não adianta esta covardia. A realidade é uma só e nada irá mudar isso”. Olhou.

004, sim era isso mesmo, estávamos no atendimento número quatro daquela manhã! Olhou incrédulo para sua senha e confirmou ser sessenta e dois, falou baixinho para si: “meu são Longuinho, faltam 57 para chegar em mim!”. Antes de se abater completamente, lembrou-se de Dona Camila, a simpática senhora que ministrava o curso de crochet no armarinho “Novelo da Vida”.

Porque você olhou com essa cara? Sim, ele havia feito o curso de crochet de Dona Camila sim senhor! Qual o problema? Há uns anos atrás passou por problemas existenciais muito sérios, procurou ajuda na psicologia, porém sua condição econômica não permitiu que continuasse ajudando a sua terapeuta a jantar nos melhores restaurantes da cidade. Ficou por quatro meses, e chegou à conclusão de que se continuasse, ficaria bom da cabeça, mas morreria de inanição, pois não dava para pagar a terapia e fazer mercado. Era uma coisa ou outra.

Munido desse dilema, encontrou uma prima que lhe indicou fazer crochet, a melhor terapia do mundo, segundo ela, pois havia curado-a de uma profunda depressão. Foi, matriculou-se e fez assiduamente o curso. Aprendeu todos os pontos. Que lindeza! Pontos sobrepostos de elos de correntinhas, ponto barra, ponto segredo, ah! Eram tardes maravilhosas. Ficou bom e ainda conheceu a discografia completa de Carlos Gardel. Dona Camila nunca se recuperou da morte do seu grande ídolo, apesar de fazer crochet como ninguém!

Ao lembrar-se de tudo isso, reacendeu em sua mente a frase básica dos seus tempos de armarinho: “procure sempre olhar pelo outro lado, meu filho”, diziam-lhe D. Camila, D. Margarida, D. Claudina, D. Beré, todas enfim e, quase todas, com aquele cabelo azul de quem encontrou a paz. Pensou: “só faltam cinqüenta e sete para chegar a minha vez, quatro já foram!”.

Ao seu lado, sentou um senhor que possuía uma senha em papel amarelo, era um senhor grisalho que logo puxou uma prosa:

- Sabe meu filho a vida pode não começar aos sessenta, mas fica muito mais rápida e barata.

- Como?

- Ô, coitado! Tão novo e surdo.

Soltou uma gargalhada daquelas de quem já perdeu o compromisso com qualquer constrangimento na Terra.

- Não senhor, desculpe, é que eu estava distraído e não ouvi o que o senhor falou.

- Tudo bem, meu filho, eu disse que pode ser que a vida não comece aos sessenta, mas fica muito mais rápida e barata. Veja você, eu acabei de chegar e serei o próximo a ser atendido, todo mundo vai praguejar, mas ninguém vai dizer nada. Direito adquirido, meu rapaz. Quer saber de mais? Sabe quantos ônibus eu tomei para chegar aqui? Dois, isso mesmo dois ônibus, sabe quanto eu gastei? Nada! E ainda por cima sentei na primeira cadeira do lado do mar! Ah! Que beleza está o mar hoje, acho que quando sair daqui irei até o Farol da Barra tomar um sorvete. Pena que já não existe a Kombi da Sorveteria Primavera! Você chegou a conhecer?

- Não senhor, mas sempre que passo por aqui com meus pais, eles me falam desta Kombi. Diz meu pai que conquistou minha mãe ao lhe ofertar, de surpresa, o “Beijo Frio”.

- Sim, O “Beijo Frio”! Se eu fosse prefeito dessa cidade, meu filho, tombaria a Sorveteria Primavera e sua Kombi aberta nas laterais de cor de casquinha de sorvete. Como deixaram ela se acabar? O “Esquimó”! O sorvete de amendoim... Nossa! Só de lembrar minha boca encheu d’água.

O painel o chamou. Despediu-se, lhe desejou sorte e dirigiu-se ao balcão. O nosso querido jovem olhou mais uma vez para ele e pensou: “a vida pode não começar aos sessenta, mas fica mais rápida e mais barata. Meu número é sessenta e dois”. Sorriu, mais uma coincidência naquela manhã. Pediu para o vizinho de cadeira guarda-lhe o lugar por um minuto. Foi até a banca, comprou o jornal e retornou. Sentou e deixou-se absorver pelas notícias.

O tempo passou pelos seus dois lados e ele nem viu, de repente tirou o olho do jornal, fitou o painel e lá estava brilhando o número sessenta e um. Dobrou o jornal, respirou fundo e aguardou. Em dois minutos, o painel mudou e ele levantou feliz e dirigiu-se ao balcão onde se encontrava, do lado de dentro, uma morena de rosto redondo enorme que ficava maior ainda com aquele cabelo negro “armado de laquê” que lhe emoldurava toda a cabeça. Na mesa dela constava: uma caneta, uma revista de ofertas de cosméticos e uma lixa de unha.

Pensou: “por que será que toda funcionária de cartório sempre tem uma lixa de unha sobre a mesa?” Antes que pudesse divagar ouviu:

- Reconhecer ou autenticar?

Ele ainda tirava os documentos da pasta e respondeu:

- Na verdade eu necessito de umas informações...

- Olha meu filho isso aqui não é balcão de informações, portanto decida logo o que quer.

Ficou meio sem jeito, mas havia esperado muito e sabia que responder às grosserias lhe custaria muito caro.

- Olha, tenho que dar entrada nesse pedido e creio que necessito reconhecer a firma, não é mesmo?

Ela olhou, olhou e disparou:

- Você precisa fazer um requerimento.

- Sim? E como seria esse requerimento?

- Ah! Quer dizer que você quer agora que te ensine a fazer um requerimento? Mas é cada uma... Era só o que me faltava! Aonde já se viu? Eu mereço.

E sacou imediatamente a lixa de unhas e começou, com uma destreza ímpar, a manuseá-la. O rapaz foi ficando entre um vermelho brasil e um violeta colérico, respirou fundo e pediu.

- Então, por favor, minha senhora, reconheça a firma deste documento e só.

- Dois reais cada folha.

- Pois não, pode fazer.

- Tem trocado?

- Dou um jeito.

Demorou um tempinho com o documento na mão, levantou o rosto, estendeu o documento e, com um rizinho sádico, falou:

- O sistema caiu.

Ele olhou-a com os olhos injetados as mãos cerradas, a face trêmula e disse-lhe.

- Muito obrigado minha senhora, fique com Jesus, ou melhor, que Deus esteja contigo, no seu coração!

Pegou o documento, deu-lhe as costas e falou para o salão, ainda razoavelmente cheio:

- Aos sessenta, a vida será mais rápida e mais barata!

Roger Ribeiro.

18 de setembro 2009.

* Com a co-autoria, vivenciada, de Rita Brito

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Peixe fora da panela!


Já passava quinze minutos do horário originalmente marcado. Éramos cerca de umas vinte pessoas, não sei ao certo, pois não me dei ao trabalho de contar com exatidão, dei-me por satisfeito em fazer uma estimativa. Na mesma estimativa dei como verídica a impressão de que, majoritariamente, o gênero feminino dominava o ambiente.

Inicialmente ficamos em pé próximos ao bebedouro e, buscávamos aliviar a ansiedade puxando conversas amenas do tipo: você é daqui? Qual o seu nome? Puxa, foi difícil chegar aqui no horário e, olha só! Algumas desconfiadas, afinal eu era o único homem do local, respondiam apressadas, fingiam lembrar de algo que estava na bolsa e saiam apressadas para o lado oposto, as quais depois eu as flagrava olhando de rabo de olho para mim.

Quando bateu mais ou menos uns vinte minutos de atraso, uma delas, não contendo mais o nervosismo próprio da ansiedade, falou em tom incisivo e alto: “isso é um absurdo, aonde já se viu?! Cheguei com quarenta minutos de antecedência para nada! Depois dizem que nós é que somos irresponsáveis”.

Notei que ela tinha um sotaque diferente e fiquei me perguntando quem seria o nós a que ela se referia? Procurei depurar os “erres” e “esses” dela para tentar deduzir de onde seria aquela moça de corpo largo, rosto redondo bem rosado e cabelos pintados de verde? Fiquei absorto e quase não percebi que rapidamente havia a nossa germana indignada atraído para si um punhado significativo de adeptas. Só atentei quando a polifonia de vozes fez com que a menina, diametralmente oposta à líder dos protestos, levantou-se e pediu calma a todos, ou melhor, a todas, já que eu era, e a essa altura já tinha certeza, o único homem. E encontrava-me bastante calmo.

Achei interessante ver aquela menina, moreninha, franzina, de olhos apertadinhos chamando aquelas moças, todas muito maiores do que ela, para o retorno ao equilíbrio emocional. Abri-lhe um sorriso e ela correspondeu. Fiquei meio sem graça, meio sem saber o que dizer, achei que seria primário em excesso perguntar-lhe o nome ou de onde vinha. Recorri então ao meu “anjo salvador”, que não raramente se torna “anjo exterminador”, Itamar Assumpção com suas composições ultra-românticas (na maioria das vezes dá certo, porém às vezes...). Bem, procurei na lista de suas canções uma saída para eu e ela. Disparei:

Você eu tenho que ter, meu bem
Pra poder comer, pra poder comer
Você eu tenho que ter
Pra poder dormir, pra poder dormir
Você eu tenho que ter
Pra poder viver, pra poder viver
Entre a Terra e a lua
Minh’alma tua
Entre a Terra e a lua...
Já sabe o que eu sinto de cor
Ou vou ter que escrever nos muros
Gritar nas ruas
Mandar por num outdoor?
De tanto não poder dizer
Meus olhos deram de falar
Só falta você ouvir *

Aqueles pequenos olhos se arregalaram. Havia uma fisionomia estranha naquele rosto outrora tão candido. Percebi que havia um grito preso na garganta. Comecei a temer pelo pior, isso já havia acontecido algumas vezes, nem sempre as pessoas entendem o que Itamar quer dizer, imagine eu querer dizer pela poesia do ‘negro dito Cascavel’! Talvez seja pedir demais, não é mesmo?

Pelo menos ela não levantou e saiu correndo, porém não conseguiu dizer nada, ficou me olhando com aquela interrogação gigante estampada no meio da testa. Olhou ao redor, talvez a procura de alguém que pudesse protegê-la, deu-me um sorriso nervoso e enviou o olhar dentro da bolsa florida sobre o seu colo. Certamente não procurava nada, apenas um local para pousar seus olhos atônitos longe dos meus.

O sol começou a esquentar e as “meninas” passaram a procurar uma sombra para proteção. Era um dia completamente azul, não havia uma só nuvem no céu, já beirávamos as nove horas e o calor começava realmente a incomodar. Tentei levantar-me para buscar um lugar à sombra, mas minhas pernas não correspondiam. Achei que havia escolhido a canção errada na hora errada. Procurei desviar a atenção, sai do olhar específico e retornei ao olhar geral.

Percebi que todas estavam de branco, apenas eu vestia-me coloridamente. Reparando um pouco mais, percebi que a única pessoa calçada ali era eu. Percebi também que todas, uma a uma, foram prendendo o cabelo e retirando das bolsas e sacolas, cordas coloridas que amarravam na cintura. Olhei ao redor e recobrei a memória de que estava em uma fortificação edificada no final do século dezessete e que serviu, além de fortificação, também de cadeia. Aliás, estávamos em um pátio rodeado de celas gradeadas: o Forte do Santo Antônio Além do Carmo.

Nossa! Santo Antônio? Pensei alto demais! A menina que já estava assustada, olhou-me sem entender nada e eu escondi o resto do meu pensamento. Prisão, Santo Antônio, meu Deus que perigo! Pensei, desta vez sem verbalizar: meu coração pode ficar aqui, aprisionado por séculos sem fim! Olhei a pequena menina morena e antes de me apavorar definitivamente, fui salvo pela entrada de quatro pessoas, também todas de branco e com cordões coloridos na cintura. Traziam atabaques, pandeiros e berimbaus. Anunciou enfaticamente: -“formar um círculo e iniciar o alongamento”.

Olhou para mim com olhar de estranhamento. Também me olhei e percebi que havia algo errado, eu estava de calça azul, camisa, bota e cinto de couro preto... Percebi que estava no local errado. Aproximei-me daquele que dava as ordens ali e perguntei-lhe: é aqui o curso de culinária marinha?

Ele riu e o riso dele me deixou sem riso algum, a situação era por demais incômoda para mim.

Senti uma pequena mão morena pegar em minha mão e com uma voz bem suave me disse: - “venha que eu te levo lá, aqui é a aula de Capoeira de Angola”.

Voltei a sorrir. Agradeci, mais uma vez, a Itamar Assumpção. Pensei: ela ouviu. É, ele tarda, mas não falha!

Roger Ribeiro
11 de setembro de 2009.

*Ouça-me
Itamar Assumpção.


quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Não é assim não, meu rei!




Domingo pela manhã. Não importa se é verão, inverno, primavera ou outono. Também pouco importa se chove ou faz sol. O certo é que a segunda mesa à direita da porta em frente ao balcão está lá com duas cadeiras postas e ninguém se atreve nem se quer a encostar e, se algum desavisado, novo no espaço, se arvora a dela deleitar é imediatamente advertido de que aquela mesa está reservada.

O ambiente é claro e fartamente ventilado. Trata-se de um restaurante famoso na cidade, possui uma cozinha invejável, produz iguarias gastronômicas, muitas delas, difíceis de serem encontradas, apesar de serem tradicionais da cultura local. Porém, a modernidade e sua eterna pressa fizeram-nas sumir dos cardápios, afinal são receitas cheias de segredos, possuem tempo de cozimento e maturação longo... O comerciante não quer ter esse gasto e o cliente, coitado, com seu paladar que não distingue um abará autêntico de um feito de farinha de milho, não quer perder tempo. Perda inestimável!

Ali você encontra todas essas receitas, mas apesar de tudo isso, a grande fama do estabelecimento de ‘pé direito’ dobrado não é bem a inigualável cozinha, mas sim o seu anexo de onde saem os famosos pastéis que deveriam ser servidos nas mesas, porém dificilmente isso ocorre, já que estes são disputados, educadamente claro, aos gritos, pelos habitantes do longo balcão. Vale tudo para não perder aquele lote. São eles que fazem, apesar da fritura, a fama deste Armazém, no bairro da Saúde.

Nove horas e quinze minutos em ponto. Eles chegam e ocupam a reservada mesa mencionada. Rapidamente uma das atendentes pega sob o balcão o tabuleiro e coloca-o à mesa entre os dois. Possuem quinze minutos para dispor sobre este os peões, cavalos, torres, bispos e, claro, suas respectivas casas reais. O embate medieval irá começar.

Nove horas e algo entre quinze e trinta, adentra ao recinto, com sua tradicional camisa social branca por dentro da calça Lee, assessorados de cinto e bota pretas, o Gentil.

Apesar da impecável vestimenta, Gentil possui uma vasta cabeleira encaracolada de cor amarela alaranjada que, pelo jeitão da coisa, brigou com o pente no mínimo há uns dez anos e com a cadeira rotativa e acolchoada do “Regis, o Pente de Ouro” então... Nem dá para precisar.

Seu nome verdadeiro, ninguém faz a menor idéia. Todos o conhecem como Gentil. Uns dizem que é porque toca no violão e canta os sambas do mestre Ederaldo Gentil melhor do que o próprio. Já a outra versão, diz tratar-se de uma homenagem ao sábio andarilho das ruas do Rio de Janeiro, o Gentileza. Qual a versão verdadeira? Como se diz aqui no popular: “quem souber morre!” Pouco importa! As pessoas desta cidadela não se incomodam com isso. Por aqui não se aprecia o certo e indiscutível! Não! Isso não serve para nada. O que aqui é prezado é o gosto pela polêmica. Sendo assim, todo fim de ano tem o “baba” (jogo amador de futebol), entre os adeptos da primeira explicação versos os da segunda. É “baba prá pirão”.

Gentil se posta em pé, frente ao tabuleiro. Está pronto para cantar, como um velho bardo, o embate. De um lado, o professor Cosme, um senhor negro de pele lisa e cabelos brancos como algodão. Do outro o professor Marcone, branquíssimo de pele sulcada e cabelos negros à “Camélia do Brasil”. Conhecem-se há muitas décadas, desde que eram titulares de Matemática e Física no saudoso Ginásio da Bahia. A contenda é séria, dizem que jogam cientificamente, porém regada à famosa “da casa”, servida, com distinção, em cálice de cristal e porções especiais de pastéis miúdos. Direitos adquiridos.

- Bispo na 4 do bispo da dama, cavalo do bispo de rei.

O jogo já está a toda. Professor Cosme sorri, ao que indica, ou pelo menos ao que percebo aqui do balcão, parece que fez um grande lance. Já professor Marcone está apreensivo. É hora de Gentil entrar na contenda:

- Belo cavalo branco,
sobre ele um garbo cavaleiro
arvora-se de nobre protetor,
mas no bolso nem pataca nem tostão,
portanto, nem pinga nem pastel,
afinal, aqui tem fiado não meu senhor!

E assim a manhã dominical vai passando, a missa acaba e as senhoras rezadeiras atravessam a rua para não passar na calçada do estabelecimento. Fingem repúdio e desdém, mas sempre encontram um pretexto para, enamoradas, olharem o que ali se passa. Só enfezam mesmo quando flagram o fingido, adoentado marido, de pinga e pastel na mão.

- Torre do bispo derruba a rainha!

Gaba-se, desta vez Marcone, sem dó nem piedade.

Suspense, aliás, tudo suspenso no recinto. Será verdade? Ninguém respira, o silêncio é total. O clima fica grave a ponto da bandeja de pastéis passar por toda a área do balcão e ninguém perceber. As atendentes pararam de servir, ninguém ousou pedir nada. Por segundos, temeu-se o pior.

- Êpa, êpa! Calma lá. Mas o que é isso? Onde pensa que estamos?! Aonde já se viu tamanho descalabro? Uma torre sobre uma dama? Uma rainha! Impossível!

Sobre a torre, a bela dama, a rainha
aguarda pelo seu salvador.
Do bosque, a espreita, o reluzente cavaleiro
busca forma precisa de livrá-la
de tão cruel penar.
Como pode Senhor, tal dama, tão distinta rainha
de pedras ser prisioneira,
se de tão longe consegue meu coração aprisionar?
Pois saibam, professores Marcone e Cosme,
Escutem com atenção:
no predicado nominal ela é sujeito e eu,
humildemente, predicativo.
Sem ela, não existo,
sem mim não tens sentido.
Sendo assim, não há torre neste mundo
capaz de impedir-me de
libertá-la!

Todos respiraram aliviados! Mais uma vez, Gentil salvou o domingo. Por conta, foi servida uma rodada da primorosa “da casa” e o jogo foi dado por encerrado. Eis o veredicto:

- Finalizado por falta de compostura frente à rainha!

Decretou Gentil.

Roger Ribeiro
28 de agosto 2009.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Por um triz



O ônibus descia “voando” a Avenida Contorno. A vista era linda nesta manhã fresca, o mar abusava de seu azul e, de tão calmo, parecia um imenso território plano. Dava a nítida impressão de se poder andar sobre ele. Inebriado com a vista e o frescor marítimo que entrava pela janela, quase perdeu o ponto. O coletivo já estava saindo quando percebeu. Deu um pulo e gritou: “peraí motô!" Correu e desceu. “Ufa! Foi por um triz...”

Ao voltar para o mundo real, fora do coletivo, notou que havia uma movimentação estranha naquele local aonde descia do transporte de segunda a sábado dirigindo-se para o trabalho. Conhecia cada metro quadrado daquele espaço, cada pedrinha portuguesa, cada buraco, cada vendedor ambulante, tudo enfim estava devidamente esquadrinhado por dez anos de passagens diárias de ida e volta por aquele histórico largo.

Porém, naquela sexta-feira algo diferente estava ocorrendo. Do inconsciente brotou em sua mente a canção “De Frente Pro Crime” do João Bosco e passou a assoviá-la. Começou então a averiguar o que havia de diferente. Notou haver muito mais gente do que o normal.

Percebeu também que as pessoas (ou pelo menos a maioria delas), estavam paradas. O ambiente parecia estático. Mas logo aquele local de movimento constante?! Afinal, além de ser um entroncamento de várias vias de transporte, neste local e adjacências, um forte comércio popular se estabelecera, além, óbvio, do intenso movimento de turistas e “locais” a se dirigirem para o Mercado Modelo ou para o atracadouro de onde saem às lanchas para Mar Grande, Morro de São Paulo e Alhures.

Parou, como de costume, no tabuleiro de dona Zoé, para tomar o seu café da manhã. Solteiro que era, nunca tinha nada para comer em casa. Por isso, há anos fazia a primeira refeição do dia com a Zoé:

- Olá meu filho, pensei que não vinha hoje!

E, imediatamente, passou-lhe o pratinho de isopor com o garfo de metal, já que odiava aqueles garfinhos de plástico que, invariavelmente, quebram um dos dentes alojando-se no início da garganta arranhando-a, deixando a sensação de estar lá, atravessado o dia inteiro. Com ele não, o garfo tinha de ser de metal. Apenas uma vez se perguntou aonde seria que Zoé lavava-o? Chegou à conclusão que era melhor não saber, afinal até o Rei disse que tudo o que gostava era ilegal, imoral ou engordava. Assim sendo, comia com gosto sua carne de sol com aipim cozido passado na manteiga acompanhado por um refresco açucarado de maracujá. Isso há pelo menos nove anos às sete e trinta da manhã.

- Zoé, o que está acontecendo hoje aqui? Tem alguma coisa estranha! Veja, até Seu Carlos que nunca não sai da caixa registradora de sua padaria, está aqui! Tem algo estranho.

- Ora meu “fiu”, viste não? Oxi, tá ficando bobo?

- Hum... o aipim hoje está derretendo na boca! Mas viu o quê? O que há para ser visto?

- Você com essa sua mania de não crer, acaba por nunca olhar para cima. Pois é, lá que está o que queres saber.

- Lá vem você com sua conversa de beata rezadeira. Fica aí falando de céu, mas todo mundo sabe que sua fé está mesmo é nas encruzilhadas. (largou uma farta gargalhada).

- Sabe nada você. Fica aí com a boca e os olhos enfiado nesse prato e nem se apercebe o que está acontecendo ao seu redor.

- Sim e você vai ou não vai desembuchar logo o que está acontecendo?

- Eu não. Se todo mundo está vendo menos você! Olha prá cima, para de comer um minuto, aliás, já te falei várias vezes que se come é com a boca e não com os olhos, e olha prá cima homem.

- Como assim, para cima? (olhou para o céu sobre o Mercado Modelo).

- Não “fiu”, pro outro lado...


Voltou-se e olhou desta vez para cima do Elevador Lacerda. Arregalou os olhos, engasgou com a carne do sol. Pela primeira vez na vida ficou tão atônito que deixou o pratinho cair e derramou o refresco na barra de sua calça.


- Mas o que é isso, Zoé?! Ele quer se matar?


Lá em cima do Elevador Lacerda, via-se um rapaz, era longe demais para se perceber exatamente qual idade poderia ter, estava na ponta da laje. Como havia conseguido chegar ali? Não sei, mas chegou. Cá em baixo, uma multidão perplexa não tirava os olhos dele. Os vendedores ambulantes não mercavam, e até uma senhora que queria comprar uma água teve de puxar o vendedor pela camisa para que este abaixasse a cabeça para saber do que se tratava.


- Está ali desde as seis da manhã, “chegou antes do galo”, eu estava arrumando o tabuleiro quando Carlinhos do charuto me sinalizou. Desde então está lá. Faz tanto tempo que já correu até lista de como acaba.

- Mas que coisa Zoé! As pessoas ainda apostam? Coitado, deve estar desesperado.

Percebeu que as redes de televisão estavam no local, por isso pagou a “semana” para Zoé e dirigiu-se para a lanchonete dos coreanos, pois sabia que lá sempre tinha uma televisão ligada nestes programas de “mundo cão”.

Chegou e já havia uma pequena multidão se acotovelando para ver pela TV o que se passava. Empurrou um aqui, outro ali e conseguiu, enfim, ter a visão da telinha aonde o cinegrafista, muito habilidoso, havia conseguido fechar a cena, não apenas no jovem à beira do Elevador Lacerda, mas, principalmente, no cartaz que abria à altura do peito aonde se lia:

“Bia, neste dia tão importante, eu tinha de dizer que TE AMO”.

Roger Ribeiro.

21 de agosto de 2009.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Hoje tem baile!




A banda estava nos últimos preparativos para entrar em ação.O local abarrotado e a expectativa era enorme, ninguém conhecia a banda. Era praticamente a estréia, logo naquele evento, normalmente cheio, um evento com uma já legião de fãs que aguardavam ansiosamente a próxima edição.

Os instrumentos brilhavam sobre o palco, vez por outra alguém passava e ajeitava alguma coisa: um microfone, a localização ideal para o contra-baixo, a guitarra, o violão. Tudo localizado milimetricamente para ajustar com a iluminação. O palco é pequeno e a banda é numerosa.

Um jovem passou pela porta do camarim e gritou: - “cinco minutos!” Todos se entreolharam. Para quem estava de fora, como eu, o que se percebia é que quase todos queriam sair correndo dali. Não é uma banda de meninos, todos já possuem farta experiência em música, palco e afins. Mas, era praticamente uma estréia e de um trabalho diferente! Não era um show. Num show é diferente, as pessoas ouvem, aplaudem, gostam ou não. É, portanto, um livre arbítrio de ambos os lados, já que a banda toca seu trabalho e o público aprecia. Ali, naquela noite, não.

Era uma baile. A proposta é reviver uma banda de baile com tudo o que se tem de direito: roupas brilhantes para os croners, banda afiada, pouco papo e muita música com um repertório todo pensado. Quase que um filme, afinal como se monta um baile?

Bem, em primeiro lugar monta-se um roteiro: O rapaz passou o dia se exercitando na praia, surfou, jogou frescobol, conversou com a turma até quase o fim de tarde. Depois foi para casa, banhou-se, almoçou e foi dar aquela deitadinha para aguardar o horário de ir para o baile.

Já a menina, deu um mergulho rápido na praia, pois havia se comprometido de ajudar, junto com outras amigas, a mudança de apartamento de uma delas. Não foi um dia fácil, sobe e desce escadas, carrega caixas, descarrega as caixas, arruma, cada uma tem uma opinião diferente de onde por o quê... Coisas naturais quando todos querem o melhor e, por mais trabalho que dê, o prazer de ajudar, de ver o novo, transforma tudo em uma grande farra. Chegou em casa no início da noite, tomou um banho e pediu a mãe que lhe chamasse às 22:00 horas.

Ambos acordaram, ela fez um leve lanche, ele ainda cheio foi direto para o banheiro, tomou outro banho, pôs a roupa de festa e saiu para encontrar a turma e rumar para o baile. Ela, após o lanche trancou-se no banheiro e de lá só saiu uma hora depois. Estava linda, aquele vestido vermelho bordado de pequenas flores coloridas lhe dava uma áurea de princesa. Era assim que se sentia. Colocou um suave perfume e ligou para o disk taxi.

Nunca se viram, moravam em locais diametralmente opostos na cidade, freqüentavam praias diferentes, estudaram em colégios distintos e por ironia do destino, apesar do gosto pela dança, pelos bailes, a falta destes na cidade não permitiu que se conhecessem.

Chegaram em momentos diferentes na casa de espetáculo aonde se realizaria o tão aguardado baile. Ele, despreocupadamente, conversava e brincava com os amigos. Ela, junto com algumas amigas que havia combinado, dava os últimos retoques, umas nas outras, aquelas coisas de menina! O baton, um fio puxado na blusa, mas acima de tudo era o estômago gelado de expectativa para os acordes iniciais! - “Será que alguém vai me tirar para dançar?” Não gostava da idéia de ficar na “rodinha de amigas” e todas serem chamadas para dançar, menos ela. Sempre teve este medo, talvez por causa da sua timidez nunca tratada.

As luzes se apagaram, o naipe de sopro atacou e a banda correspondeu. A música que inicia o baile é fundamental para o bom andamento das coisas, tem de ser um tema de tirar o fôlego, arrastar as pessoas dos cantos para o meio do salão.

A nossa menina ficou sem fôlego, seus olhinhos brilhavam e ela foi bem para o meio do salão e começou a rodopiar, dançar, sorrir sem parar. Era outro universo. Ali era o baile, tudo era mágico! Sentia-se como em um conto de fadas e a cada funk que a banda tocava, mais ela transcendia. Já não era ela, não tinha problemas, não tinha timidez, nunca foi triste, nada! E não adianta querer dizer o contrário, havia muita gente ali, mas a banda tocava somente para ela.

Foram cinqüenta minutos de êxtase e a banda deu a primeira parada. As luzes se acenderam, as pessoas se dirigiram umas para o balcão do bar e outras para o toalete. Era hora de ver quem estava e quem não estava, encontrar pessoas, trocar amigos e assim por diante. Quinze minutos, esse é o tempo, depois tudo se apaga, as luzes entram em frenesi, a banda recomeça e o real some, desaparece entre o assoalho, bem encerado, e o salto alto dela.

Foram quatro temas de ferver o salão, uma loucura! No quinto tema, o trompete irrompeu forte e vigoroso, o tom mudou, a cantora, no seu vestido longo de lantejoula dourado, assumiu o centro do palco e afinadíssima disparou uma linda e triste canção de amor:

“Olhe aqui, preste atenção, esta é a nossa canção. Vou cantá-la seja aonde for...”.*

Ela abaixou a cabeça, olhou para os seus sapatos azuis e antes que pudesse pensar qualquer coisa, sentiu uma mão firme e quente pegá-la pelo antebraço e perguntar: - “você quer dançar comigo?” Ela gelou, sorriu, passou o fino braço por sobre o ombro do seu gentil par e, o que se sabe, ou o que se diz, é que a banda nunca mais parou de tocar para eles. Ele com sua bota preta engraxada e ela com seu salto alto azul, nunca pararam de dançar...

Outro rapaz passou e gritou: - “tá na hora”! As luzes se apagaram, a banda estreou. De cá do meu canto, vi uma linda menina de vestido vermelho bordado de florzinhas coloridas e sapato de salto azul, deixar a garrafa de água mineral no balcão e se dirigir, sorrindo, para o centro do salão.

Roger Ribeiro.
17 de agosto de 2009.

* “Nossa Canção” – Luiz Ayrão

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Neve e Sertão!



Para minha amiga Yêdissima!


Dizia, sim! Dizia e não era só para mim não, dizia para quem quisesse ouvir! Não tinha mais idade para ficar temerosa de nada nem de ninguém. Havia rodado o mundo por três vezes, visto de tudo, acumulado sabedoria o suficiente para saber que não há nada pior do que a dúvida do não feito.

Naquele fim de tarde chovia. Nossa, como chovia! Caia água de todo o céu, não havia nem um pedacinho de onde, lá do alto, não emanasse água.

Calmamente andando, segurando no meu braço, ela falou:

- Ele sabe que a humanidade precisa se lavar.

Achei divertido aquele comentário e permiti-me um breve sorriso sobre o qual rapidamente ela comentou:

- Não tenha medo de sorrir da condição humana, ela é assim mesmo. Cultiva a felicidade, mas não consegue conviver com ela. Apossa-se de tudo e de todos sem saber que a única coisa que realmente possui é a si mesmo e, normalmente é a quem menos cuida, pois está sempre se agarrando ao exterior, às suas posses. Coitados iludidos, não percebem que estas não lhe pertencem.

Comentei que achava que estava muito cética naquele fim diluviano de tarde.

- A chuva é um deus que sempre nos traz melancolia, é o signo do recolhimento. É hora de sentar na poltrona do canto, junto à janela salpicada de água, tomar uma taça de vinho tinto bem encorpado e pensar nas perdas. Nunca conheci ninguém que tramasse uma ação vibrante em um dia de forte chuva, a não ser que já tivesse agendada uma reunião ou uma atividade antes da chuva mostrar-se por inteira.

- Você está com uma conversa típica do Jorge Mautner. Esta coisa de deus da chuva e do vento... Vocês são devotos dos mesmos signos do universo.

- Ora, mais é claro que sim, veja como ele não é um tolo qualquer! Você já viu ou ouviu por aí as pessoas comentando a poesia e a música dele? E seus discursos? Estes então... Pois, é o que te digo: são pessoas especiais. É na chuva meu filho, que você conhece verdadeiramente as pessoas.

Fiquei refletindo um bom tempo sobre essa frase: “é na chuva que se conhece verdadeiramente as pessoas”. Andando vagarosamente de braços dados com aquela senhora octogenária, percebi uma série de interpretações para essa frase. Lembrei também de uma série de pessoas que não escuto as pessoas nos transportes coletivos, nas filas de banco nos corredores das feiras livres comentarem sobre elas.

Em compensação lembrei-me de uma série de pessoas que são comentadas em todos os lugares e, de repente, essas pessoas me pareceram com cara de amendoim cozido, cerveja na praia, pastéis de feira. Dei risada dessa analogia e me senti meio preconceituoso, meio esnobe. Para fugir dessa sensação perguntei a minha velha amiga:

- você nunca se sentiu comum?

- Eu, nunca! Casei quatro vezes todas com homens lindos, cobiçados e ricos. Por isso, tive a oportunidade de viajar o mundo inteiro por três vezes e de todos os anos ir à Rússia(URSS, na época) e a Paris! Ah! Todos falam de Paris, mais são uns bobos, falam porque têm medo de serem julgados como ignorantes. Mas te digo: não há lugar no mundo que se compare a Rússia.
Ali sim, os seres humanos são enigmáticos, ninguém é inocente. Todos são culpados. Lembro que meu segundo marido era um bom homem, diplomata, um intelectual prestigiadíssimo, recebido em todos os palácios e todas as academias, mas não se sentia culpado. Não tinha a necessidade de sair na noite escondendo-se nas sombras, não temia os dedos em riste a lhe apontar. Por isso, por anos, coloquei sonífero em seu chá noturno e quando ele desabava, eu saia a desbravar aquele universo de neve, de olhares fugidios de cumplicidades terríveis. Ah! Vida, vida... Nunca me arrependi de nada, sempre dei o melhor de mim a todos ao meu redor, mas sempre vivi como os vestidos das ciganas, voando ao sabor do vento.

- Mas Paris não é o encanto que todos falam? Há pouco, li que o Chico Buarque quando quer se concentrar em um trabalho vai a Paris.

- Sim, é verdade, mas veja bem; o Chico é lindo, mas sua reflexão artística é floreal demais, até quando busca refletir sobre algo mais denso, não consegue passar do Arpoador. Ele é lindo, possui frescor, diverte, mas está longe, muito longe, da tensão humana que se encontra na Rússia, na Bulgária, na Sérvia, no Sertão brasileiro, nas pequenas vilas andinas. Sim meu jovem amigo, veja, por exemplo, o alemão Nietzsche foi para a Basiléia na Suíça, Freud na Áustria e Luiz Gonzaga no sertão. São exemplos de homens que mergulham na condição humana.

- Nietzsche, Freud e Gonzagão!? Assim já é demais minha querida amiga, é hora de pararmos e tomarmos um café. Já estou ficando louco.

- Então estamos no caminho certo!

- Por favor, dois cafés.

- O meu com conhaque!

Não resisti, olhei-a fixamente e desabamos em uma sonora gargalhada. Ela me deu um beijo estalado na boca e nada mais dissemos naquele chuvoso fim de tarde.

Roger Ribeiro.
31 de julho de 2009.


quinta-feira, 30 de julho de 2009

Você viu, não ?!


De longe já percebi que nada de novo havia. O ambiente continuava o mesmo. A mesma lâmpada horizontal fluorescente continuava, insistentemente, a oscilar apesar dos clamores de nós, assíduos freqüentadores daquele “clube de debates avançados e profundos da condição humana” (como nos referíamos carinhosamente ao nosso boteco de quatro portas em uma das esquinas mais movimentadas da cidade). Um local para bons e poucos.

Como sempre a turma da fumaça se põe nas portas, é uma regra consuetudinária de convivência civilizada. No balcão, um banco giratório de um pé fixo serve apenas para demarcar os círculos humanos e a temáticas que ali se estabelecem. Do lado interno do balcão, o querido Chico. Ele sempre esteve lá, existe uma aposta de quem primeiro esteve naquele recinto, se o velho Chicão ou a garrafa de aguardente Jacaré, que já não se fabrica há décadas e que aquele, talvez único exemplar na face da Terra, de tão idosa possui uma crosta de mais ou menos uns dois centímetros de poeira agregada.

Fui chegando e logo saudado longamente por todos. As piadas são geralmente as mesmas: “veio só hoje?”, “já íamos por falta!”, “vai tomar seu yogurt de ameixa?” E assim vai... Toda semana é a mesma coisa, cada um que chega, as piadas se refazem. Antes de definir em que circuito temático me estabelecerei, vou ao “confessionário”, ou seja, o último banco do balcão, no interior máximo do nosso phanteon, é reservado para a chegada. Explico melhor: o cabra chega, tira o paletó, se for o caso, pede para o Chicão guardar (paletó, pasta, livros, etc), e ali pede o primeiro líquido a ser sorvido.

Esse é o chamado “confessionário”, é o momento de se desligar do universo externo, abandonar os problemas do trabalho. Lá só é permitido problemas de natureza política ou passional, de trabalho jamais!

Sentado no “confessionário”, produz-se a geopolítica de seu estar. Hoje, por exemplo, definir que iria começar pela roda do futebol, afinal ontem teve jogo e as resenhas estão fresquinhas. Depois irei para o setor da política local, debates acalorados sobre a administração municipal e estadual, por fim, encerrarei no círculo da política nacional e internacional. Hoje, excepcionalmente, pularei a área de enfermidades e policial. Meu dia já havia sido complicado o suficiente.

Ainda no “confessionário” algo saiu do estado natural, percebi que alguém se aproximou e, rompendo o isolamento tradicional do local, colocou pesadamente a mão no meu ombro e sem gritar, porém com um tom de voz possante afirmou: -“se ainda não passou, vai passar!”.

Olhei assustado para o interlocutor e exclamei:

- Como?

- Não sou papagaio para ficar repetindo as coisas, sendo assim, preste atenção.

Entre espantado e incrédulo, busquei ao meu redor uma explicação, um olhar de solidariedade, alguma coisa que me dissesse que aquilo era real.

- Mas, meu amigo, o que deveria ou deverá, sabe-se lá, passar?

- Você não percebe? Estou sendo o mais didático possível. Se você prestar atenção irá entender e não necessitará ficar com essa cara de pata chocando o ovo da avestruz.

Nossa!!! Uma pata chocando um ovo de avestruz?! Que cena mais pitoresca. Procurei ver meu rosto no espelho oxidado das prateleiras ao fundo do balcão, queria ver o que significava aquela cara. Ele continuou:

- Venho sempre aqui e vejo você sempre com esse jornal debaixo do braço, esse olhar absorto como se a vida lhe permitisse esse isolamento exotérico. É bom ficar atento, pois pelo que estou percebendo ainda não passou, mas não se iluda, não tardará. Vai passar.

Levantei, me desloquei do confessionário, pois Chicão havia me sinalizado que estava demorando demais no local e novos clientes chegavam e precisavam se desintoxicar do mundo exterior.

Fiquei de pé, entre o círculo dos debates acadêmicos e as resenhas esportivas. Olhei para o homem da voz possante e tentei lembrar se já o tinha visto ali, ou em qualquer outro local. Passei a observá-lo mais atentamente. Ele era muito magro, alto, devia ter quase dois metros, e postava-se curvado para frente naquela postura que, não sei bem porque, sempre atribui aos tuberculosos. Sua face era de um branco cera, os olhos enormes e amarelados, o nariz era a mais perfeita descrição do que chamamos de “nariz de turco”, e das enormes orelhas saiam tufos de pelos pretos e brancos.

Vestia-se muito bem, trajava um terno completo cinza escuro e era um único habitante daquele “clube recreativo e cultural” que não havia deixado o paletó ao encargo do Chicão. Também não folgou a gravata, usava um sapato preto bico fino tão lustrado que dava para utilizar como espelho. Após a minuciosa checagem disparei:

- Amigo! Eu sinto te dizer, porém a metade do seu pensamento ficou só na sua cabeça, você falou parte do que pensou e como conseqüência ficou incompreensível!

Olhou-me com estranheza, segurou no braço do primeiro que passou e perguntou:

- Rapaz, me diga uma coisa, já passou?

- Não, desde que cheguei e isso já tem umas duas horas, ainda não passou.

- É... não estou entendendo esse atraso?

- É verdade, isso nunca ocorreu! Mas uma coisa é certa (esticou o pescoço e olhou para fora como se a constatar alguma coisa), vai passar.

- Sim, disso não tenho a menor dúvida, se não isso tudo já não existiria. Não estaríamos aqui.

Resolvi que era mais do que hora de esclarecer o que se passava. Pedi outro drink ao Chicão, me virei para ficar bem de frente ao meu eloqüente companheiro de bravatas de tavernas e procurei ser o mais claro possível:

- Afinal amigo, que diabos é que vai passar? Ou passou? Ou sei lá? Se não passar, tudo vai se acabar...

- Pelo amor de Deus, não diga isso! Beba rápido! Beba um gole, lave a boca e nunca mais diga isso. Você está ficando louco? Quer por em perigo a todos nós?!

Virei-me para o garoto que ele havia interceptado, mas ele já não estava, se locou no círculo da temática de gênero (pornografia sexual, na verdade). Perguntei à todos e a ninguém ao mesmo tempo, ampliei a voz para que todos me ouvissem, inclusive a área dos fumantes:

- Alguém aí, pode me explicar o que está acontecendo?

- Pssssiu, fale baixo. (Falou-me o enigmático homem de cinza)

Enfim curvei-me aos fatos e bradei ao vento:

- Tudo bem! Vamos sentar e esperar, não deve demorar a passar.

Sussurou-me:

- Disso tenho certeza.

Um vento muito forte passou por toda a extensão do boteco e uma velha negra acompanhada de uma criança entrou pedindo colaboração para a festa de Santa Bárbara.

De uma coisa eu tenho absoluta certeza agora. Que vai passar vai.

Roger Ribeiro.

24 de julho de 2009.