quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Vida!


 
Passou a mão pela barba branca e olhou longe, muito longe, com seus olhos sombreados. O mundo estava contido naquela fatia triangular e anuviado do seu campo óptico. Jamais permitiu que alguém se arvorasse a secar sua catarata, sempre dizia que se o universo queria lhe tirar a nitidez era por que ele deveria perder suas certezas. O mundo perdia gradativamente a solidez, o palpável, a realidade se esfumaçava, a bruma se estabelecia. Estava em um novo planeta habitado por seres fluidos, esquivos, disformes.

Passava por cada canto da velha cidade, e com sua longevidade, possuía íntima e particular relação com cada esquina, cada largo, praça, mas suas áreas preferidas eram as rochas à beira-mar.

Vibrava com a força que ali residia, para ele, o eterno duelo do mar explodindo sobre as imponentes e escuras figuras que brotavam da terra e projetavam-se rumo ao infinito, as ondas, eram o seu tênue equilíbrio. Era como se com seus sons graves e reverberantes dissessem: “Não se precipitem ao horizonte, o caminho não são das pedras!”. Um instante de ação e reação; para quem sabe ler – Uma oração.

Normalmente estava rodeado de crianças e cachorros magros, lembrava uma “Canudos”, itinerante formando uma micro comunidade dentro de uma gigantesca cidade que assim como os Caldeus, projetava-se em vão em busca do céu. Dizia aos seus esquálidos seguidores: “quanto mais perto das estrelas, mais se afastam dos seus”.

Não se sabe exatamente o que ocorreu, mas do nada, sumiu. Ninguém o via mais, pelas ruas que andava não mais se fazia presente, sobre as rochas do litoral onde fazia suas orações, não mais havia reza, as brumas sumiram de vez, nem mesmo os magros meninos e cachorros eram avistados. Ninguém mais sabia daquele homem de tez sulcada de jabuticaba, seu corpo esguio e sólido como dos seres do Sertão, seu olhar etéreo e suas palavras ditas em baixa freqüência e de pouca inteligibilidade, evaporaram de um dia para o outro, ou melhor, foi visto com os seus ao cair da tarde nas costas das águas da Ondina, onde fica a Gruta de São Lázaro e ao amanhecer nada mais havia.

Neste dia o duelo entre as negras rochas e as ondas se potencializou, parecia que o mar não queria aceitar o irreversível. Nitidamente percebia-se que a lógica havia se invertido: não eram mais as rochas que queriam atingir o horizonte, mas sim o horizonte, montado nos grandes calhaus, que buscava a terra. O som do choque das águas na sólida barreira era ensurdecedor, e aos transeuntes desta cidadela a certeza era de que a península iria se estreitar. O mar salgou – sufocou - o ar.

As ditas autoridades decretaram feriado. Nas rádios e televisões o pedido era para que todos evitassem sair de suas casas. Nada funcionou: bancos, mercados, lanchonetes, bares, lojas, nada! Era como se enfim o tempo estivesse suspenso no ar, no pentagrama da vida colocou-se “uma pausa de mil compassos”, porém desta feita, não para ver as meninas, como fez Paulinho, mas simplesmente para esperar o dessolidificar do ar, o desgaseificar do mar, e o re-solidificar das rochas. O som permanecia ensurdecedor, em pausa.

Apenas alguns vultos tentavam se locomover em meio a este hiato de sentidos, em vão. Não havia atrito, o movimento era estático. Tudo que até pouco era existente e palpável a partir daquele momento era apenas púrpura de energia em um movimento desconexo em todas as direções.

Vendo minha existência por meio do caleidoscópio de cores que antes era meu corpo físico, identifiquei o que seria o meu coração, ao identificá-lo, senti uma lágrima de energia vermelha púrpura deslizar lentamente no espaço em direção ao solo, ao atingi-lo, uma espada prata se fez cingir no espaço chocando-se na rocha escura do mar. O som e a luz alva atravessaram todas as coisas com imensa intensidade e maternal leveza.

Abri os olhos e você estava linda! Encostada na porta, descalça, sorrindo para meu sorriso.

Roger Ribeiro

20 de setembro de 2012