quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Nem vou falar de cinema



- Difícil! Muito difícil e, tenho quase certeza, serei mal interpretado por este distinto público que enche este auditório, porém não posso me esquivar da verdade, fui aqui convidado para falar com franqueza: o trabalho vem me destruindo a forma humana!

O clamor foi geral, bocas se abriram, olhos se entreolharam, testas franziram, o som das palavras lançadas nocauteou os tímpanos, após segundos de estupefação, cerca de um milhar de olhos miraram aquela figura esguia, branca como cera, de longo nariz educo e olhos cor de malária.


- Espero que os senhores e senhoras tenham paciência, tentarei explicar.

No inconsciente coletivo daquele auditório, o descrédito era total, como explicar o inexplicável? Era muita ousadia! Ou seria uma gigantesca irresponsabilidade?


- Vejam vocês, acordo de segunda a sábado às cinco e meia da manhã e tenho exatamente quarenta minutos para está fechando a porta da rua à minhas costas. Tensão automotiva, trânsito lento, seres irritados por todos os lados, pavimentação derretida das vias nos obrigando a viver um verdadeiro rali urbano, motos enfurecidas na busca de comprovar que dois corpos podem sim, ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, transeuntes sem calçada para andar vagam pelo meio das ruas e avenidas e tudo isso para quê? Seria, por acaso, para salvar a mulher amada?


Na pausa dada não havia espaço para resposta, era uma indagação metafórica. A resposta estava bem à frente de todos, porém aqueles olhares cada vez mais incrédulos apenas multiplicavam as interrogações que reverberavam nas paredes da sala com a mesma intensidade da explosão sonora existente pela rotação do planeta em seu sistema solar.


- Não amigos (continuou), infelizmente todo este desespero não terminará em um beijo gelado na Sorveteria da Ribeira, muito menos em um olhar apaixonado após a leitura de um soneto no estande da Mídia Louca, muito menos em um mergulho quase medicinal nas mornas águas do Porto da Barra, vigilantemente acompanhadas pelas lentes velozes do menino Ricardo Fernandes. Nada disso, todo o desvario levará apenas e somente a sua energia a algo imprescindível, fundamental. Para quem?


Pelo “andar da carruagem” a coisa ia longe (pensei sentado em uma das últimas fileiras com o meu amigo Barba), comentei ao pé-de-ouvido:


- Está parecendo a música do índio do Gil!


O Barba não agüentou, desabou uma sonora gargalhada e baixinho cantarolou:

“Estava certo

De que tudo o que eu dizia

Representava a verdade

Pra todo mundo que ouvia

Foi quando um velho

Levantou-se da cadeira

E saiu assoviando

Uma triste melodia (...)”.*

Foi o suficiente para todos virarem abruptamente e nos fuzilarem com seus olhares de inquiridora rubéola. O elegante palestrante levantou os olhos, sorriu, respirou fundo e continuou:

- Mas, pergunto a todos vocês: o que há de tão fundamental assim para te tirar de casa ao amanhecer e só lhe permitir o tornar quando a noite já navega? deixar sobre a mesa da sala, do sofá, da estante do banheiro, espalhados no corredor grandes amigos aflitos pela sua ausência? O que dizer aos vinis de Hermeto Pascoal, Pepeu e a Geração do Som, Bob Dylan? Isso para não dizer a vergonha ao negar um passeio por Paris do século XIX em companhia de Umberto Eco, deixar o Mino Carta sozinho tomando um café em sua cozinha te aguardando para ir à Mooca? Meu Deus, que vergonha! Rilk, Leminski, Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Cruz e Sousa, dos Anjos todos aqui embaixo na padaria esperando. Vocês que estão aqui participando deste congresso sobre A Saúde Pelo Trabalho, não fazem idéia do que encontrei “punhado”, como diria Adoniran, na porta do meu apartamento...

- “(...) é um cachorro louco/ que deve ser morto/ a pau e pedra/ a fogo e a pique/ senão é bem capaz/ o filhodaputa/ de fazer chover/ em nosso piquenique”**.

Gritou a todo pulmão meu amigo Barba.

- Tinha de ser você! (disse o nosso palestrante olhando-nos no fim do auditório com seus olhos mais etéreos do que nunca). Nem adianta esperar, o tempo...

Levantamos cabisbaixo e saímos eu e o Barba:

“assoviando

Uma triste melodia

Que parecia

Um prelúdio bachiano

Um frevo pernambucano

Um choro do Pixinguinha (...)”*.


Roger Ribeiro

16 de agosto 2012
 

*Um Sonho – Gilberto Gil

** Paulo Leminski – por ele mesmo.