- Difícil! Muito difícil e, tenho quase
certeza, serei mal interpretado por este distinto público que enche este
auditório, porém não posso me esquivar da verdade, fui aqui convidado para falar
com franqueza: o trabalho vem me destruindo a forma humana!
O clamor foi geral, bocas se abriram, olhos
se entreolharam, testas franziram, o som das palavras lançadas nocauteou os
tímpanos, após segundos de estupefação, cerca de um milhar de olhos miraram
aquela figura esguia, branca como cera, de longo nariz educo e olhos cor de
malária.
- Espero que os senhores e senhoras tenham
paciência, tentarei explicar.
No inconsciente coletivo daquele auditório, o
descrédito era total, como explicar o inexplicável? Era muita ousadia! Ou seria
uma gigantesca irresponsabilidade?
- Vejam vocês, acordo de segunda a sábado às
cinco e meia da manhã e tenho exatamente quarenta minutos para está fechando a
porta da rua à minhas costas. Tensão automotiva, trânsito lento, seres
irritados por todos os lados, pavimentação derretida das vias nos obrigando a
viver um verdadeiro rali urbano, motos enfurecidas na busca de comprovar que
dois corpos podem sim, ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, transeuntes sem
calçada para andar vagam pelo meio das ruas e avenidas e tudo isso para quê?
Seria, por acaso, para salvar a mulher amada?
Na pausa dada não havia espaço para resposta,
era uma indagação metafórica. A resposta estava bem à frente de todos, porém
aqueles olhares cada vez mais incrédulos apenas multiplicavam as interrogações
que reverberavam nas paredes da sala com a mesma intensidade da explosão sonora
existente pela rotação do planeta em seu sistema solar.
- Não amigos (continuou), infelizmente todo
este desespero não terminará em um beijo gelado na Sorveteria da Ribeira, muito
menos em um olhar apaixonado após a leitura de um soneto no estande da Mídia
Louca, muito menos em um mergulho quase medicinal nas mornas águas do Porto da
Barra, vigilantemente acompanhadas pelas lentes velozes do menino Ricardo Fernandes.
Nada disso, todo o desvario levará apenas e somente a sua energia a algo imprescindível,
fundamental. Para quem?
Pelo “andar da carruagem” a coisa ia longe (pensei
sentado em uma das últimas fileiras com o meu amigo Barba), comentei ao
pé-de-ouvido:
- Está parecendo a música do índio do Gil!
O Barba não agüentou, desabou uma sonora
gargalhada e baixinho cantarolou:
“Estava certo
De que tudo o que eu dizia
Representava a verdade
Pra todo mundo que ouvia
Foi quando um velho
Levantou-se da cadeira
E saiu assoviando
Uma triste melodia (...)”.*
Foi o suficiente para todos virarem
abruptamente e nos fuzilarem com seus olhares de inquiridora rubéola. O
elegante palestrante levantou os olhos, sorriu, respirou fundo e continuou:
- Mas, pergunto a todos vocês: o que há de tão
fundamental assim para te tirar de casa ao amanhecer e só lhe permitir o tornar
quando a noite já navega? deixar sobre a mesa da sala, do sofá, da estante do
banheiro, espalhados no corredor grandes amigos aflitos pela sua ausência? O
que dizer aos vinis de Hermeto Pascoal, Pepeu e a Geração do Som, Bob Dylan?
Isso para não dizer a vergonha ao negar um passeio por Paris do século XIX em
companhia de Umberto Eco, deixar o Mino Carta sozinho tomando um café em sua
cozinha te aguardando para ir à Mooca? Meu Deus, que vergonha! Rilk, Leminski, Baudelaire,
Mallarmé, Rimbaud, Cruz e Sousa, dos Anjos todos aqui embaixo na padaria
esperando. Vocês que estão aqui participando deste congresso sobre A Saúde Pelo
Trabalho, não fazem idéia do que encontrei “punhado”, como diria Adoniran, na
porta do meu apartamento...
- “(...) é um cachorro louco/ que deve ser
morto/ a pau e pedra/ a fogo e a pique/ senão é bem capaz/ o filhodaputa/ de
fazer chover/ em nosso piquenique”**.
Gritou a todo pulmão meu amigo Barba.
- Tinha de ser você! (disse o nosso
palestrante olhando-nos no fim do auditório com seus olhos mais etéreos do que
nunca). Nem adianta esperar, o tempo...
Levantamos cabisbaixo e saímos eu e o Barba:
“assoviando
Uma triste melodia
Que parecia
Um prelúdio bachiano
Um frevo pernambucano
Um choro do Pixinguinha (...)”*.
Roger Ribeiro
16 de agosto 2012
*Um Sonho – Gilberto Gil
** Paulo Leminski – por ele mesmo.