quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Amanhã



Não soube o que aconteceu. Avistei pela última vez entrando no coletivo que se dirigia ao centro da cidade, daí em diante, aonde desceu? Para onde se dirigiu? O que
fez da própria vida...? Não sei dizer, o fato é que sumiu, desapareceu de vez, virou fumaça.

Enquanto todas estas dúvidas pairavam em minha cabeça, continuava, sentado na biblioteca com aquele livro do “Nuvem Cigana” em minha frente, porém não conseguia absorver nada, lia as letras e estas não formavam palavras, as palavras não formavam frases, as frases não formavam períodos, enfim o abstrato não se materializava em nada e isso me deixava efetivamente desnorteado, desde pequeno desenvolvi uma verdadeira aversão ao nada. Afinal nada é muito pouco.

Mas, foi assim mesmo, do nada ela entrou na sala de leitura, aliás, antes dela efetivamente entrar o que entrou foi o seu cheiro... Um cheiro forte de mata ao amanhecer. Imediatamente ergui os olhos, não foi nenhum sacrifício, afinal do “Nuvem Cigana”, nada absorvia mesmo - que me perdoem os velhos vanguardistas cariocas - mas a nuvem não chovia no meu cérebro.

Em pé à porta estava ela, percorri a sua geografia e fui me divertindo ao vê-la. Seu cabelo estilo “joãozinho”, que junto a um óculos daqueles de armação grossa e grande que normalmente as mulheres só aceitam sobre o nariz quando escuros na arreia da praia, mas os dela não, eram branquinhos, translúcidos e seu aro inferior praticamente moldava um leve sorriso de quem ainda observa se estava no local certo, na hora certa e, isto bem mais subjetivo, fazendo a coisa certa.

O ponteiro de segundos mal se moveu, porém as horas voavam, será que todos viam o que eu via? Bem, uma coisa é certa ela não via nada, pois seu olhar por de trás das grandes lentes brancas não fitavam nada... Olhava absorta para a parede de livros sem procurar efetivamente nada. Seus passos relapsos dirigiram-se ao recepcionista da sala e com a voz empostada e em tom alto perguntou:

- Ele já chegou?

- Desculpe senhora (falou o recepcionista), de quem a senhora está falando?

- Por favor, não se faça de desentendido. O senhor escutou muito bem...

- Sim, não estou negando, realmente escutei, porém não sei há quem a senhora se refere.

- Ele...Ela...

- A senhora por acaso já observou nas outras salas se ele, ela, não é assim? Por lá não está?

- Creio que o senhor está querendo esconder algo de mim. Marquei aqui, veja o relógio! Marcam exatamente 9:35 desta quita feira, 25 de agosto de 2011. Não existe equívoco algum tudo foi milimetricamente acertado.

- Minha senhora! Aqui se escondem nestas páginas destas centenas de livros, muitas histórias, muitos encontros e desencontros, porém como a senhora pode perceber, só a senhora sabe com quem marcou, sendo assim como eu posso saber se já chegou ou não? É homem ou mulher?

- Não importa o que espero não tem sexo. Vou caminhar pela sala, talvez não tenha observado o suficiente.

Andou pela sala tentando disfarçar, olhava atentamente a todos, e quando a pessoa se sentia observada, desviava o olhar, fingia ajeitar o cabelo, tossia, ou seja, disfarçava, aliás... muito mal.

Retirou um tipo de echarpe muito fino de motivo indiano da bolsa e cobriu os cabelos curtos e arredondados, olhou-me atentamente, levantei a vista e, pela primeira vez não tentou disfarçar, permaneceu esquadrinhando cada centímetro de meu rosto, minha expressão. Aproximou-se e respirou fundo, queria inalar o meu aroma. Na mesma comprida mesa em que eu estava havia uma jovem estudante atribulada com suas pesquisas escolares.

Ela sentou-se ao lado da minha vizinha estudante, olhou-a fixamente, puxou-lhe o livro que lia e quando esta levantou a vista para saber do que se tratava...

- Você está aqui há muito tempo? (disparou ela à jovem).

- Desde as 8:00, quando abriu, porque? (respondeu-lhe de forma ríspida característico dos jovens estudantes)

- Você então deve ter testemunhado a chegada?!

- Que é isso minha senhora? É algum tipo de brincadeira?

- Não brinco com coisas sérias. Foi visto entrando em um coletivo em direção ao centro da cidade, portanto, claro que já deve está aqui.

- A senhora é louca?

A jovem levantou assustada dirigiu-se ao recepcionista e falou algo inaudível para nós. Antes, ao ouvi-la falar de alguém que havia se transportado em direção ao Centro e não havia vestígio, levantei a vista e fitei-a. Ela olhou-me novamente e disparou:

- Você também aguarda, não é mesmo? Eu sei que sim, seu cheiro é de quem aguarda.

- Não sei se falamos da mesma coisa, mas faz tempo que soube que transitou em direção ao Centro, mas aqui não chegou.

Ela sorriu de forma leve e serena, ergueu-se, caminhou lentamente, como se flutuasse, até a mim, fitou-me mais uma vez atentamente, pegou em minha testa pressionando-a para trás, passou o dedo entre meu nariz e meu lábio superior, balançou negativamente a cabeça, virou-se e saiu lenta e levemente andando e dizendo-me:

- Se Amanhã chegar, por favor, diga-lhe que Hoje esteve aqui.

Dirigiu-se à estante e, se não fiquei louco, achei que havia entrado em um determinado livro. Balancei a cabeça, apertei os olhos para certificar-me de estar acordado e são. Para que ninguém notasse e pensasse tratar-se de um louco, deixei o tempo passar... Levantei-me e discretamente dirigir-me até a estante. Puxei o volume que, para mim, ela havia entrado, sorri ao ler: CRONICA DE UNA MUERTE ANUNCIADA - GARCIA MARQUEZ, GABRIEL. Estava tudo explicando.

Roger Ribeiro.
25 de agosto de 2011.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Arquitetura do Ser

Para uma jovem avó, que me ensinou que o verdadeiro arquiteto é o poeta - a verdade.




"Responder a perguntas não respondo.
Perguntas impossíveis não pergunto.
Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.

Toda a minha experiência, o meu estudo,
sou eu mesma que, em solidão paciente,
recolho do que em mim observo e escuto
muda lição, que ninguém mais entende.

O que sou vale mais do que o meu canto.
Apenas em linguagem vou dizendo
caminhos invisíveis por onde ando.

Tudo é secreto e de remoto exemplo.
Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
E todos somos pura flor de vento".*




Andava distraído, não havia um destino exato, era um caminhar misto de desocupação, contemplação e exercício. O dia era chuvoso, uma chuva fina, aquilo que os paulistanos chamam de garoa, umedecia a cidade e, naquela praça gramada e repleta de árvores, uma das poucas remanescentes da cidade, esta friagem era ainda mais sentida.

No ouvido o fiel fone ligado ao rádio, que de tanto ser o companheiro do solitário caminhador já havia sido batizado, ironicamente, de Orlando Silva – “O Cantor das Multidões”. Pois, foi exatamente dos poderosos pulmões, ou melhor, dos poderosos transistores de “Orlando” que lhe veio à surpresa. Havia, ele não sabia quem, transformado uma lenta e sensibilíssima canção de amor em uma levada funk pop, sem o menor sentido.

O nosso caminhador tomou tal susto que chegou a parar, ele não acreditava naquilo, como podia alguém transformar uma canção como “A Linha e o Linho” naquilo, não era possível, é algo impensável, para você ter uma idéia seria como retirar “Moon Over Bourbon Street” da obra “Bring On The Nigth” - o álbum duplo pós Police - e colocá-la em um arranjo típico do “Chiclete com Banana” (a banda baiana). Nossa! Como seria possível tamanha falta de sensibilidade?

Ele balançava a cabeça em negativa, estava realmente incrédulo com o que lhe invadia os ouvidos. Pensava: será que eles não percebem que esta poesia possui música própria?

Não agüentou, retirou os fones de “Orlando” do ouvido e passou a olhar aquela paisagem fria e úmida, algo quase londrino em plena Salvador. Pessoas passavam por ele com vestimentas de “malhação” sempre muito coloridas e ar de ausência, afinal quem pode estar em atividade física em plena quinta-feira às 9:00 horas desta manhã chuvosa de alguma forma se sente ausente, para o bem ou para a dor, do mundo robótico dos “normais”.

Continuou sua caminhada e agora mais do que nunca estava alheio a tudo que lhe cercava. Apenas a imensa interrogação lhe ocupava a mente: como podem ter feito aquilo?

Caminhando mais que distraído acabou por esbarrar em uma árvore; bateu caiu... Quando recobrou o mínimo de consciência estava deitado em um chão molhado, rodeado de olhares que lhe interrogavam de cima para baixo:

- Você, você, cê, c... Está, está, tá, t... bem, bem, bem be...b...?

Eram muitas vozes que lhe arrebatavam o espaço que até então era exclusivo de “Orlando”, balbuciou meio que embriagadamente:

- T... tudo bem... mas, algum de vocês pode me dizer como pode ser?

- Moço,olha o seu rádio...Caiu mas já testei, pra sua sorte ele tá funcionando.

- “Orlando”! Nossa não sei como te agradecer...

Olhou aquela mão fina e morena jambo, como as melodias de Jards Macalé, que lhe estendia o seu grande e único companheiro e foi lentamente reparando aquela menina encoberta por um vestido vermelho que lhe realçava a pele morena e o sorriso que lhe reduzia os pequenos olhos, que, menores ainda ficavam por detrás daquele óculos de lentes grossas.

- Ôcê poderia ter se machucado...

- Pior, muito pior, menina cor de jambo, eu poderia ter decretado a morte de “Orlando”, Deus do céu!

- Quem?!!

- “Orlando”, que você salvou para mim!

- Ah! Seu rádio chama-se “Orlando”?

- Sim, “O Cantor das Multidões”! E você, mineirinha né? Tem nome?

- Não sou mineira, morei muito tempo lá, mas sou daqui, de qualquer forma você pode me chamar de mineira, fica-me bem... e eu mato um pouco a saudade.

Passaram a andar juntos, ela, como boa mineirinha, matutando disparou:

- Mas o quê houve com você?

Ele olhou-a com uma ternura de séculos sorriu e disse:

- Os tolos pensam que podem ludibriar os poetas!

Roger Ribeiro
04 de agosto de 2011

*SONETO ANTIGO – Cecília Meireles