quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Por um instante


 
Sim, passou por aqui. Passou e não faz mais do que 20 minutos. Passou, parou, mirou bem no meio dos meus olhos e disparou! Foi o sorriso mais oceânico que jamais imaginei poder existir.

Os lábios cheios e poderosos como a onda da praia da Torrefação guarda no interior uma muralha de um brilho alvo que ofuscou o real! Virou-se, e com o vestido florido esvoaçando na brisa, partiu. Ficou um aroma de orquídea no ar e os dentes cravados nos meus olhos.

Ela dobrou a esquina do saveiro e sumiu, mas não mais saiu daqui, olhando a areia verde da praia não consigo definir se o seu imaterial ficou ou se o eu partiu com ela. Quem está aprisionado nestas grades dos arcos da Iris? 

Estava a menos um metro das águas e o sal que vinha com o vento se aninhava em minha pele, entranhava entre as células, não conseguia mover-me, o brilho dos teus dentes cravados em meus olhos, penetrava como um extraterrestre ocupa os corpos humanos. Lentamente avançava pela minha nuca, pescoço, ombros, paralisava meus braços que ganhavam movimentos autônomos, erguiam e direcionavam-se em direções opostas como se quisessem se desligar do meu tronco. Era uma sensação de desintegração efetiva, mas nada sentia, apenas ficava cada vez mais leve, cada vez mais fluido, cada vez mais dividido rumo à partícula mais indivisível que possa haver. 

Apenas um sentido ainda me atava ao que dizem ser real, ouvia perfeitamente tudo ao meu redor, mas o mais impressionante é que quanto mais ela se afastava, mais o som do seu vestido florido e seus cabelos lançados ao espaço pela brisa se tornava forte, próximo. O vento passava pelos fios dos seus cabelos como um arco acarinhando as cordas do violino criando uma linda e delicada melodia que, acomodado ao som do ar transpondo o linho do seu vestido e se chocando na solidez do seu corpo, orquestrava o que poderia ser a música do sol deitando-se no mar no instante da Ave Maria.

Por um instante lamentei o seu passar, a sua teimosia em permanecer, não havia te convidado para dançar, nunca havia visto passar, nem sonhava com a possibilidade de existir alguém capaz de fazer o tempo parar, os sentidos estancarem. Porque você sorriu aquele sorriso que nunca existiu? Quem mandou você atravessar a minha existência e dela nada mais deixar do que quarks, bósons e léptons?

- “Estou cansado e você também
Vou sair sem abrir a porta
e não voltar nunca mais
desculpe a paz que lhe roubei
e o futuro esperado que nunca lhe dei
é impossível levar um barco sem temporais
e suportar a vida como um momento além do cais
que passa ao largo do nosso corpo
não quero ficar dando adeus
as coisas passando
eu quero é passar com elas
e não deixar nada mais do que as cinzas de um cigarro
e a marca de um abraço no seu corpo
Não, não sou eu quem vai ficar no porto chorando
lamentando o eterno movimento dos barcos”.*

O som do poema sutilmente cantado era forte o suficiente para sobrepor o estrondo do sol se espatifando no oceano, a estrela cadente rasgando a sólida massa de gazes da atmosfera acendendo uma tocha como se quisesse criar uma estrada entre os mundos: sólido e sutil, mas todos estes sons simplesmente sumiram enquanto a pequenina voz preenchia todos espaços entre a onda dos teus lábios e o brilho dos teus dentes, a torre do castelo onde me aprisionei.

Lenta e temerosamente fechei os meus olhos com seu sorriso dentro, lenta e vagarosamente busquei inverter a situação, de aprisionado a libertador. Não queria seu sorriso preso em mim, nem a minha existência presa às sobreposições atonais dos sons dos seus cabelos cor de cristal. O universo não podia se privar dela, mesmo que o que reste seja apenas o seu espectro, o presente.

Olhei para a voz cantando o movimento dos barcos na calçada, empunhando o seu violão azul, e sorri aliviado, não há muralhas que possam conter o som!


- Ôh, ôh... Pô joga a bola meu irmão, já ta escurecendo... Ta doido?

É verdade, dei um belo chute na bola, levantei um punhado de areia, a correria recomeçou, o movimento era total, a meta: o gol.

E eles suados, correndo como loucos, quase dando a vida pela bola, sem saber que o futuro quase se aprisionou, por pouco, muito pouco tudo terminaria apenas no segundo do presente, mas o importante é que a bola não pode parar...

Gollllllllll.

 

Roger Ribeiro

11 de outubro de 2012

*Movimento Dos Barcos – Jards Macalé