segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Porque arrancaram dali?



Era apenas início da noite, mas ela estava pronta. Vestia um vestido longo vermelho combinando com o batom e o leve avermelhado dos olhos de quem passou o dia a chorar.

Aos muito alvos pés, uma sandália cinza escura de fino e altíssimo salto, seu passo era de uma elegância impar, caminhava como se o tempo jamais fosse chegar ao seu derradeiro minuto. Tudo a sua volta assumia um ritmo especial, algo entre John Coltrane e Hermeto Pascoal, nada ia além do alcance entre a sua longa perna direita à frente e sua alva perna esquerda atrás, o mundo inteiro cabia no vão desse passo.

Foi assim que saiu naquela noite, parecia ser uma noite como outra qualquer, mas havia um detalhe diferente, algo que nunca ousara e seria ali, naquela noite de lua minguante, bem rente à água da Baia de Todos os Santos, quando esta, a lasquinha de lua, já quase tocava a ponta do templo de Mar Grande, que se daria o novo.

Para tanto, cobriu-se de detalhes nunca usados; nos longos cabelos postou uma flor lilás natural, ao redor do pescoço descansava um colar de pedras verdes que produziam um efeito de vida junto ao vermelho esvoaçante do vestido, no rosto nenhuma pintura a não ser o inseparável batom vermelho. Na cintura um pano de renda branco transpassado de finos fios prateados que refletiam a fraca luz do luar.

Não pegou o carro, que ficou estacionado na calçada em frente a sua casa, saiu andando, nenhum transporte ela quis, era noite de passos largos, passos que há muito já deveriam ter sido dados.

Passou por um grupo de rapazes jovens que a olharam, tiveram vontade de lhe cortejar, porém sua presença era tão intensa, tão enormemente presente, que nada conseguiram dizer, calaram-se e apenas acompanharam aqueles longos passos portadores de universos.

Parou no bar de uma esquina escura onde um grupo de milenares e diários freqüentadores comiam queijo velho, ou lingüiça banhada na gordura e tomando suas bebidas, discutiam futebol.

Ali comprou um cigarro a retalho; pediu fogo, não fumava há anos, mas não havia perdido o charme de segurar o cigarro quase na ponta dos dedos e tragá-lo deixando passeando a centímetros do seu rosto a fumaça, que caprichosamente navegava demarcando-lhe a silhueta e azulando sua negra cabeleira.

Pediu também um copo de conhaque. Ao erguê-lo expandiu o vermelho paixão de suas unhas compridas e bem torneadas, tomou de uma só vez, pagou e retirou-se, deixando naquele bar, sujo e fedido, uma ar nobre. Todos ali se entreolharam, o tempo havia parado, tudo se passara entre o inspirar e o expirar, não mais que isso.

Os carros passavam zunindo, paravam, retornavam, buzinavam, mas, na hora em que os seus ocupantes fixavam o olhar nela, nada conseguiam dizer, nem ao menos uma carona conseguiam oferecer-lhe. Algo os impedia, havia um campo magnético, um campo de força que impedia todas as emoções e vibrações dela aproximar-se. Estava efetivamente em outra sintonia, em outra dimensão.

Andava impassível, carregava na mão uma pequena bolsa de cetim azul que apesar de forte presença, só fui notar quando se deparou com um grupo meninos e meninas de rua e abrindo a pequena azul bolsa distribuiu as cédulas que ali portava. Não sorria, aliás, em todo este trajeto não a vi sorrir em momento algum, porém, não possuía um semblante carrancudo, enfezado, longe disso, muito pelo contrário, possuía uma fisionomia de paz, de tranqüilidade. Só não sorria, não arreganhava os dentes, nada ali era fácil, muito menos um sorriso.

Parou abaixo de uma frondosa árvore. Impassível olhava para o infinito, não demonstrava ansiedade, aflição, pressa... Nada a atingia, era como se estivesse em uma dimensão paralela, era, ao olhar dos que trafegavam, uma imensa flor vermelha moldurada pelo verde escuro da árvore a enfeitar o universo.

Do nada ele veio, seu passo era seguro, daqueles que parece estremecer o chão. Sua tez amêndoa, um perfeito caboclo baiano, de cabelos brancos que lhe conferia a inconfundível aparência de Dorival Caymmi, o “Buda Nagô”, como muito apropriadamente observou o poeta Gilberto Gil, também não sorria. Sua elegância se impunha; todo de linho branco com cinto e sapato negros de lustro forte, ponta de lenço ressaltado no bolso esquerdo do blazer e anéis que lhe brilhavam em todos os dedos.

Chegou sem pedir licença, recebeu um leve sorriso, o primeiro, daqueles olhos avermelhados, trançaram-se os braços e saíram a andar como rei e rainha por sobre a cidade.

Dirigiram-se ao bairro da Ondina onde em uma área circular começaram a bailar. Não se deram conta de que estavam em uma ruína circular, um escombro do que um dia deveria ser uma praça, uma área de lazer, mas que repleta de lixo, de um mau cheiro entranhado de anos de descaso, não passava de um depositário do escárnio da sociedade soteropolitana.

Nada os atingia, rodopiavam, reinavam leves, flutuando, revivendo aos meus olhos quando há tempos neste mesmo local brilhavam, girando, girando ao centro do picadeiro do Circo Troca de Segredos, ao som da Grande Orquestra do Maestro Vivaldo Conceição.

Roger Ribeiro
26 de agosto de 2010