O rosto
projetado sobre uma parede caiada branca erguida nas rochas sobre o mar. Era
uma parede de pedra e barro erguida no século XVI para ser Forte. E ali, bem na
espessa construção, projetava-se aquele rosto que ganhava dimensões ainda maiores
quando saltava de sua luminosidade para invadir-me pelos olhos.
Uma esfinge
cor de sertão sulcada. Os fundos sulcos rachados e escurecidos pelo tempo
implacável debruçavam-se em um olhar opaco, como se a espera de algo que, no
local onde projetado, era abundante. Abaixo daquela parede, sobre rochas
incessantemente violentadas pelas águas, água que tanto faltava para preencher
aqueles sulcos, umedecer aqueles olhos sem lágrimas para chorar. Era um
contraste tão fundo que permaneceu em um local entre minha pele e minha alma,
me fez desconfortável, mas ao mesmo tempo me prendia ali.
O que dizia
mesmo aquela viola de arame emitindo sons agudos e secos em um diálogo quase
improvável com o som d’água no rochedo, enquanto o rosto sertão fixava-se na
cal? Tudo aquilo me era excessivamente íntimo e familiar, cresci assim, entre
paredes de pedra assentadas, diziam, em barro embebido por óleo de baleias que
me faziam ouvir a noite inteira os gemidos dolorosos dos cetáceos apresados
naquelas paredes onde as águas do mar se atiram contra estas a reclamar o que
lhes pertencia. Era o som do universo. Naqueles tempos o humano era mais
silencioso, suas máquinas de fazer barulho eram ainda raras e precárias frente
à ressonância do universo ao meu redor.
E no
intermezzo entre minha pele e minha alma onde aquele todo se alojou ficava-me a
dúvida entre os tempos, sei, racionalmente, que havia um tempo imerso que
separava aquela construção seiscentista daquele rosto projetado, mas ao mesmo
tempo o caiado branco recém pincelado contrastava com aquela fisionomia que
pouco se distanciava da milenar terra rachada, sulcada, escuramente queimada
pelo sol, pela falta d’água que não preenchia os sulcos, que não verdejavam,
mas que explodiam na força daquele olhar opaco. Por um momento tive vontade de
chorar, porém não era direito meu tal ato.
Ao deixar o
imponente Forte, levei comigo a memória que o tempo insensatamente corrido me
havia roubado. Rememorei o quanto me indagam: o que faço? Em que trabalho? O quanto
me esforço? Seria razoavelmente bem sucedido, para poder ser sucedido no
futuro, quem sabe, por alguém de maior sucesso? Cantarolei uma velha canção do
Belchior acerca de um bom rapaz esforçado caminhando rumo ao reconhecimento do
seu esforço sem perceber a impermanência que lhe espreitava.
Revivi, em
instantes, a praça e seus verdes, a igreja velha, as antigas casas de paredes
úmidas, as pedras pretas que calçavam as ruas onde se jogava bola, onde os
raros automóveis que passavam naquele bairro distante esperavam para passar, o
mundo não tinha tanta urgência, acho até mais, o mundo não tinha tanta
importância, a Terra que até então era vermelho barro e verde, acordara de um
dia para o outro azul, Êta! Esses russos...
O que teria
mudado em todo este tempo que busquei ser competente?
Olhei para
os meus pés, onde passei boa parte da vida, quando não buscava ser competente,
ansioso à espera do evento maior - quando trocaria o Conga branco pelo o
Vulcabrás de couro marrom, e eles estavam rachados, sulcados e enegrecidos.
Hoje
passeando pelo que restou das velhas paredes úmidas do antigo bairro operário
periférico notei que já não dava para escutar os cetáceos gritando, as águas
violentamente chocando-se nas pedras, as aves noturnas com seus agouros. O
mundo tornou-se surdamente barulhento e urgente.
As três
janelas da minha casa foram emparedadas.
Roger
Ribeiro
24 de maio
de 2016