segunda-feira, 5 de maio de 2014

A luz turva


O meu processo criativo é violento, agressivo, aguerrido. Fragmentos de ações que não me pertencem, sei lá de onde vêem? São geradas em mim, se esbarram nos limites sólidos, em mim, dentro de mim mesmo. O eu e um monte de gentes, atos e ações que possuem urgência em sair, de se fazer existir.


Batem-se nas paredes das minhas idéias, no oco onde repousa pulsante meu cérebro, descem para o peito, braços, pernas, pés e sobem em velocidade hiper máxima espatifando-se ao norte da minha cabeça. Precisam se desvencilhar de mim, forçam, comprimem, é o sobre natural; doi.
 

Afasto-me nesses momentos de todos; é perigoso. Até onde a radiação desta dor atinge o externo? Não sei, só sei ser necessário proteger o ao redor, não posso expor quem nada sabe sobre a natureza da dor, a cor de um parto, que só a natureza em seu estado de urgência exige, conhece, reconhece, compreende e perdoa. Mesmo que, assim como a explosão da ação, a cor da dor se impõe.


Por vezes, a depender da extensão e das cores do pensamento, me permito reajustar meu feixe celular à forma da criação, um re-moldurar uma moldura sem molde, disforme, etérea como uma canção:

“Eu uso óculos escuros

para as minhas lágrimas esconder

quando você vem para o meu lado

as lágrimas começam a correr (...)”*

 
Mas, nem sempre é possível. Por vezes, e muitas vezes, ela vem retilínea, altiva, com seus longos braços e suas enormes mãos e devassa, invade pelos poros, pelos olhos, boca, nariz, orelha, usa os fios dos cabelos como condutores ao núcleo, e de lá extrai, sorrindo, sempre sorrindo, a mais sólida e precisa idéia.

 
De agora em diante, ainda úmida do parto, a narrativa me acompanha, anda ao meu lado, senta na minha mesa, na cadeira à minha frente. Da mesma forma que estou naquele enorme salão iluminado, no térreo de um enorme casarão no Santo Antônio Além do Carmo de onde avisto o forte, onde tantos foram aprisionados, ao meu lado, a mais nova história, idéia gestada, conto sem fada, sólido e liberta de todas as suas amarras, travas, grilhões; se faz fato.

 
- Pelo que pode ser visto, frente às últimas, notícias, uma nova idéia veio ao mundo em parto não anunciado, não acompanhado, dizem – expunha esganiçado o rádio no alto da estante, ao lado da moringa de água-ardente – que quando a assistência chegou já o encontrara sentado ao lado da cabeça genitora ao meio fio, explicava que, apesar daquele crânio o ter gestado, não lhe pertencia.

 
Aliás, a nada sólido podia pertencer a cor da idéia que materializa uma narrativa que se inicia, porém sem corpo, sem longilíneos braços, posto que ainda não possuir meio, sem fim. Apenas início, indício; quem sabe?


Enfim, à porta, bati com delicadeza, você com seu vestido curto e vermelho, com os lindos pés na cerâmica fria, abriu-a para mim. Estendi a flor amarela que tinha em mãos. Você brilhou e sorriu, em segundos, tudo sabias.


Roger Ribeiro

05 de maio de 2014

* Vampiro – Jorge Mautner