segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Você tem uma banda de rock?


 

O Boeing passou e desalinhou-lhe o penteado, isso realmente a tirou do sério, afinal isso é um absurdo, abuso total, em que mundo estamos? Despentear uma Dama?! Isso é demais. Olhou para cima, visualizou bem aquele imenso avião sobre a sua cabeça e desancou um gesto obsceno, daqueles que uma verdadeira cortesã jamais faria, mas fez e, digo aqui muito intimamente, fez muito mais, praguejou de tal maneira que aquela gigantesca aeronave foi transformando-se, reduzindo-se, a cada sílaba tornava-se diminuta, diminuta até que ao final, não passava de um aeromodelo na mão de uma criança. Gargalhou.


O andar era firme, usava uma sapatilha chinesa vermelha com minúsculas flores amarelas de miolo verde água bordadas que saltavam da sapatilha e lhe tatuavam a perna, ramificavam torneando a perna alva que lhe servia de amparo e iam brotando de maneira compulsiva como que a dizer-se feliz por estar em local tão fértil. E assim era. Não precisava ser grande observador para perceber que aquelas alvas pernas não tinham fim. A Terra era pequena para aqueles passos.


Estava um pouco atrasada, sabia disso, mas tranqüilizava-se admitindo para se mesma que nada começa no horário marcado por estas bandas, e, além disso, uma jovem menina nunca pode chegar antes da expectativa de sua chegada. Sendo assim, os primeiros acordes soam para que percebas o aroma de flor que vem do mar filtrado por seu vestido, seu cabelo e suas florzinhas amarelas de miolo verde água bordado em sua pele e tatuado em sua sapatilha chinesa vermelha que lhe da uma leveza confundindo-a com os balões de gás coloridos que aquele senhor de longos bigodes verdes está mercando.
 

Parou ao longo do meio fio e aguardou a cavalaria passar para poder transpassar do universo das brisas marinhas para o centro nervoso da vila: fumaça, ambiente de penumbra, garrafas, copos que se espatifam nas pedras do chão, bocas que se abrem e fecham sem cessar, bocas que se abocanham e tecem poemas, poemas que são catapultados pela força dos corpos em atrito e chegam ao tablado sendo captados pelos captadores dos instrumentos elétricos, retornando em solos, riffs e melodias.


Enquanto batia a ponta da sapatilha vermelha impacientemente no chão, observou a passagem da cavalaria cansada, os navios a vapor com suas imensas pás laterais em busca da cidadela de Cachoeira, as velas brancas dos saveiros da Rampa do Mercado, e, por fim, o medo dos que se apegam à realidade como uma religião, como uma verdade. Enfim atravessou a linha do tempo e chegou aonde à expectativa de sua chegada já lhe aguardava.


Sentou-se ao lado do tempo passado e, sem precisar falar, apenas com os olhos desculpou-se pelo tempo futuro roubado.


O som estrondou no local, o espaço ficou totalmente tomado de música: ritmos sobre ritmos, harmonias, melodias, solos, vozes, risos, som, som como a grande explosão originária do universo, o som do parto, um pacto hermético entre a vida e a vinda.


Olhou para aqueles quatro cavalheiros munidos de suas guitarras, baixo, bateria, aparelhos, microfones, fios, caixas, ou seja, um universo de elementos que faz som e lembrou vagamente de uma letra de uma canção inédita que sabe que existe, pois enumera ações que se impõem quando se faz mais que necessária a vida, ela vai tocar no rádio. (cantarolou mentalmente a canção Rebento de Gil, mas na versão de Elis).
 

Estava entre amigos, as pequeninas flores amarelas se enramavam por todos, as garrafas gigantes não permitiam a desertificação, a mesa abaixo da placa que indicava preço e hora para se jogar bilhar permanecia frenética com as bolas coloridas que corriam para todos os lados fugindo da possibilidade de serem devoradas pelo universo paralelo dos portais abertos.
 

Neste momento, no meio daquele solo, entre o tempo e o contratempo a sapatilha vermelha de minúsculas flores amarelas de miolo verde água subiu na bota preta de cadarço, apoiou a fina mão de dedos longos no ombro a sua frente e o convidou para dançar. As velas dos castiçais se ascenderam, o quarteto de Paulinho continuou a tocar o rock, as bolas do bilhar ficaram incontroláveis, o mundo ficou de ponta-cabeça, o bumbo bateu as doze horas e do nada, apenas havia encostada à bota preta uma linda sapatinha chinesa, bordada de minúsculas flores amarelas de núcleo verde água.


(Onde será que anda meu amigo Barba?)

Roger Ribeiro


18 de novembro de 2013

 

 

 

 

 

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Quantos ventos tens no bolso?



 


O elevador estava cheio, um corpo colado no outro, uma expiração sendo inspirada por outro pulmão. Desce; para; entra mais gente, tecidos; cabelos; couros dos sapatos, cobrindo peles, pelos, dores e odores humanos. Uma multidão em uma caixa fechada descendo, andar por andar, de uma grande caixa abarrotada de gente por todas as portas e janelas.


- Licença...

- Meu andar, por favor.

- aí!

- Opa! Desculpe-me foi sem querer.

- Sim... Não agora não dá pra falar, estou no elevador, ãh... olha não ta dando pra escutar nada, depois te ligo.


Ah! Enfim térreo, pés no chão novamente. Mas, são muitos pés, o chão treme, muita gente, cada uma com seu peso para carregar passo à passo, são dois pés para cada indivíduo, todos saindo ao mesmo tempo da inércia na caixa do elevador para o desequilíbrio do passo após passo, todos estão com pressa, ou parecem estar, creio que na verdade o que todos desejam avidamente é sair daquele emaranhado de corpos, todos querem ar entre os seus corpos e os outros corpos da multidão.


Mas a expectativa trai, por vezes, o sentido. Após o vão do saguão, pós-elevador, chega-se à porta que abre a perspectiva da libertação! Do outro lado é estar à rua; um vão sem teto, sem a compressão entre os espaços esmagados pelos corpos.


- Sim, agora sim, te escuto perfeitamente... Não preste atenção... e´ que...

- Minha filha, pare com isso... Sim vamos chegar, mas...

- Ave Maria... não agüentava mais...

- Sim minha querida, é para hoje sim...

- Bom dia seu Carlos, olha vai chegar minha...

 
Pés pisando forte no tabuado, som, som sobre som, as paredes reverberando, ecos por todos os lados, tudo multiplicando a multidão... Preciso sair daqui rápido, meu coração está acelerado, preciso alcançar a rua. Ah! Enfim, o vento no meu rosto, espaço, não tanto quanto gostaria, mas para quem há poucos minutos se encontrava em uma prensa humana, aquilo era tudo que se podia querer.


Ônibus. O dia parece interminável, são centenas de pessoas passando para todos os lados, bocas que abrem e fecham sem cessar, após o advento do celular, reduziu-se a sensação do quantitativo de aluados, poucos agora falam sozinhos, a maioria fala ao celular, ou será que fingem falar? Será que existe alguém do lado de lá? Mas, o fato é que na atualidade todos falam o tempo todo e, parece-me, pelo menos, que o universo não está tendo capacidade de absorver tanto som.


O ônibus vai parando de tantos em tantos metros e muito mais gente vai entrando, diria que para cada cinco pessoas que entra no coletivo desce apenas um. Existe um desequilíbrio, estamos ficando cada vez mais uma massa de células grudadas tendo apenas os olhos libertos pela transparência das janelas abertas e o espanto das pessoas nas calçadas ao nos ver passar, é uma multidão se locomovendo, em linha horizontal, levando um carregamento humano, e neste carregamento estou eu.

 
- Licença...

- Olha o caramelo...

- o Senhor é o caminho... já fui drogado...

- Poderia estar roubando, matando, mas estou...

- Espera aí motorista... Ôôôh, cobrador e meu troco?

- Um passo à frente aí...  o coletivo está vazio!


Vazio?! Será que estou sonhando? Existe uma multidão aqui dentro, todos falando, respirando, pensando... Este coletivo deve está pesando infinitamente mais do que apenas o peso da matéria. Há o peso da intenção. Preciso atravessar esta multidão e descer, o meu ponto é o próximo, será que irei conseguir? Se conseguisse parar de pensar creio que ficaria muito mais fácil conseguir ultrapassar esta barreira... Vamos lá, sem desespero, primeiro puxar a cordinha, fazer saber que preciso descer... Já carrego tantas partículas de tantas pessoas que já não sou mais eu. Será?


Ponto, rua, praça, mercadores, transeuntes, músicas, expirações, inspirações, pensamentos, o vento nos corpos, na estátua, o tempo nos milhares de relógios com seus sons característicos, o virar dos olhos daquela menina, a bengala no solo, a tosse do senhor da bengala, a criança que tenta explicar o inexplicável para que não quer ouvir, os sonhos de cada um, os automóveis derretendo os sonhos de Ícaro... Enfim enxergo você ao lado de sua bicicleta, sentada na mureta da praia do Farol da Barra, absorta, quase uma serpentina humana ao vento, olhando o mar.


Existe uma multidão entre mim e você ao vento. Vendo você assim, permitindo o vento carregar as suas partículas, vejo que não percebes a multidão. De longe tento te mandar um sinal, um aviso:


“Meu coração tem catedrais imensas,

(...) Como os velhos Templários medievais

Entrei um dia nessas catedrais

(...) E erguendo os gládios e brandindo as hastas,

No desespero dos iconoclastas

Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!*


Mas é impossível: existe uma multidão em mim, milhares dentro da minha existência, um quebra-cabeça de milhões de sons, cheiros, sensações, braçadas no ar.
 

Roger Ribeiro

17 de setembro de 2013


* Vandalismo (edição livre) – Augusto dos Anjos

 

 

 

  

 

 

 

 

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Eternidade

 
 
Mas se apesar de banal
Chorar for inevitável
Sinta o gosto do sal do sal do sal*

 

Pensei em te escrever uma carta, mas fui informado que todos os correios próximos foram fechados. Achei essa notícia um tanto quanto absurda, porém frente aos absurdos que transformam o hoje em um mundo de surdos, tudo entra no bocapio da feira moderna, ou como diriam os concretos na “geléia geral”. Sem correios, eu heim...!


Bem, ficar lamentando não nos leva a nada. Isso em mente é partir para atuar, preciso te falar e por isso resolvi recorrer aos meios que disponho. Em primeiro lugar preciso condensar a informação de maneira a que fique concisa e não gere margens de interpretações ambíguas. Depois preciso pensar na hipótese da mensagem cair em mãos erradas, isso seria realmente uma tragédia, não consigo nem mesmo dimensionar os desdobramentos que um fato como este poderia gerar! Preciso recorrer a um código secreto. Criar uma língua, símbolos que só possam ser decifrados pela receptora certa, mas como você irá decifrar um código que não conheces?


Efetivamente a coisa está ficando complicada demais dentro deste sonho, acho melhor acordar, creio que acordado a solução se apresentará de maneira mais consistente. Então vamos, levantar, lavar-se, escovar, abrir bem os olhos, brilhar, banho bem frio, realizar uma pequena, porém, densa leitura para despertar a mente, realizar uma oração sem religião, sem retenções, acordar os músculos, o esqueleto, acordar a idéia de você, tirá-la do universo da idealização e lembrar sua materialidade, sua quase materialidade tão humana quanto qualquer ser humano, com apenas uma diferença: não preciso falar com qualquer humano, preciso falar com você.


Lembro que ainda no sonho, quando nos encontramos pela última vez, marcamos um encontro lá no Farol de Itapuã, recordo-me perfeitamente disso, até revejo a cena: você estava meio de perfil com sua transparência expondo as gaivotas mergulhando no mar verde da antiga enseada da Mariquita, que foi engolida e aterrada, estavas com um finíssimo lenço sobre a cabeça evitando que o salitre enferruje os teus cabelos, a imagem se fechava nos teus lábios vermelhos como amoras de Minas que suavemente demarcava o próximo encontro.

Será que poderei ir?


- Se não fores não poderás me ensinar o novo código, a nova língua e desta forma não conseguiremos mais comunicarmo-nos. Será uma perda que, talvez, não tenhas condição de arcar e suportar as conseqüências.


- Sempre assim, você, ou melhor, a sua voz chega, diz. Por vezes dita, mas onde está você? Não precisa usar este truque de passos sendo marcados na areia fina, conheço perfeitamente a leveza do seu andar, a longitude das suas pernas alvas, que por muito pouco risca a terra.


- Ah! Já vi que hoje não estás para brincar. Não tem problema. Sobre sua preocupação: as tuas palavras? Sabes como fazer chegar a mim, não existe possibilidade de não te escutar. Sei o que queres dizer e sabes muito bem a resposta. Não se exija demais, já sabemos muito bem disso! São muitos os tempos, vazios os templos, ardentes os ventos entre os dentes.


- Seu sorriso continua se insinuando por entre as brechas dos seus cabelos. Sei exatamente o que este brilho nos teus olhos indica, também sinto o mesmo. Criarei um novo código que possa atravessar as linhas do tempo. Tens que ir? Até quando? Espera, deixa só eu ver você mais uma vez...


- Até! Estou desde já aguardando sua mensagem. Estamos no último instante, a última curva do teu ser irá mergulhar no horizonte, seja rápido, deixe a mensagem antes que te apagues, tens que mergulhar.
 

Ao amanhecer havia uma garrafa de cristal prata sobre o mar, dentro um código esculpido pela ponta de um diamante em uma tábua de esmeralda.


Roger Ribeiro

12 de agosto de 2013
 

*Milágrimas - Alice Ruiz

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 22 de julho de 2013

O Topo do Mundo


 


O teto do mundo era muito alto. Soprava um vento frio e seco que rachava os seus lábios como se fossem um bombom de chocolate, ao mesmo tempo o sol lhe avermelhava a pele com uma fúria que poderia facilmente torná-lo brasa. Sim, não era nada fácil chegar ao teto do mundo, mas estavas no topo e como uma Amazona ou uma Walquíria com seus elmos e lanças, uma visão quase invisível, o que mais poderia ser tão elegante?

Sentou-se a uma pedra e absorta no tempo e praticamente solta no espaço, admirava as enormes montanhas que se iniciavam verde, enegreciam para por fim tornarem-se alvas como as areias finas da Lagoa do Abaeté.

O que faria aquele espectro de luz naquele topo? O que buscava?

Até aquele momento, nunca havia pensado no topo de mundo, mas, ali, naquele momento percebi que por toda a vida a visão do topo não poderia ser outra: uma silhueta sustentando um véu de cabelos e tecidos que buscavam abraçar toda a Terra. Dos seus pés rolavam pedras que a princípio pareciam pequenos seixos, porém, ao se aproximarem, dava-nos a dimensão real de sua magnitude, deitavam sobre a terra formando imensas cadeias de montanhas que forjavam vales infinitos, por onde voavam imensos Condores.

O som que se ouvia era sempre de longe, nunca havia som perto, era sempre o som gelado do vento vindo das geleiras que se esgueirava pelos costados das rochas fazendo-as, vez por outra, estrondar em fissuras; o frio rachava a pedra. Plantas só rasteiras, havia pouca terra, muita rocha que formavam trilhas serpenteadas de dutos por onde as águas fluíam até despencar de uma altura tal que esfumaçavam e jamais atingiam o solo.

Por isso os povos do lugar possuíam um brilho úmido nos cabelos negros, como a selva longínqua que podia ser avistada do topo do mundo. Um povo ao redor dos seus teares, seus pigmentos extraídos de pedras, sementes, folhas, terras, sua forma milenar de fiar, os desenhos sempre representando o equilíbrio das forças que emanavam do topo do mundo. Uma terra que das entranhas das suas montanhas forjava salinas a três mil metros do mar. Um ar rarefeito que jamais cansava de lembrar-me que a pressa será a minha impossibilidade de alcançar.

Por isso fiquei sentado a  três mil metros de altura, entre o Vale com seu rio a correr por entre as bases das montanhas que lhe fazia parecer, de onde estava, uma serpente sem fim, serpente que em algum momento levará o som frio das Cordilheiras ao mar, acima de mim o topo do mundo (os gigantes adormecidos), impávido com seu véu branco que ao sol, turvava a vista, aguando os olhos, demarcando assim o desejo indisfarçável de chorar. Deixar uma lágrima de retribuição ao topo do mundo.

Horas se passaram. Minha boca também rachou e o vento explodia com fúria sobre o meu corpo obrigando-me a curvar, olhei ao meu redor e as pessoas que também admiravam a Amazona no topo do mundo, também estavam curvadas, passou pela minha mente a idéia de que aquele vento furioso que esbarrava em nossos corpos não estava soprando ali por acaso, sua função era exatamente essa: curvarmo-nos. Fazer o ser mais pretensioso da Terra, entender, rever e reverenciar.

O sol girou o seu ciclo, passou por seus inúmeros portais, e a noite queimada pelo vento frio e o sol forte, descia avermelhada e lentamente, logo os gigantes do topo do mundo estarão envoltos por uma densa neblina. Os povos do lugar se apressam com seus passos miúdos e rápidos, pelas ruas as cores vibrantes dos seus trajes, as mulheres quase sempre velhas, de baixa estatura e forma cilíndrica, tranças amarradas nas pontas, davam a impressão de festa, uma imensa vontade de estar entre estes povos, aprender o quão é importante um pequeno sorriso. Só há fartura de vida.

A noite, já de retorno à vila, sentado esperando a refeição do dia, em roda de amigos que não conseguiam descrever o indescritível, ouvido a música do povo do lugar, tive a sensação, quando você passou conduzindo o vento frio, que já havia visto estes cabelos trançados aos tecidos coloridos esvoaçando conduzido pelo perfil do seu corpo. Virei rápido na direção que o vácuo apontava, não havia ninguém. Sorri, sentei-me novamente e perguntei a Mark, Yara, Cássia e João: Qual a mais bela: a Lhama, a Alpaca, o Guanaco ou a Vicunha?    

 
Roger Ribeiro

22 de julho 2013
 

 

 

terça-feira, 21 de maio de 2013

Sobre a Baia


 

Havia lido algo a respeito de uma tragédia ocorrida ainda na década de sessenta no Rio de Janeiro e o fato lhe marcara fundo, parecia que o som do desastre ressoava em sua cabeça. Saiu andando meio que a ermo, o pensamento lhe era vago, na verdade não fixava uma idéia, tudo eram apenas fragmentos, frases soltas, tudo desconexo, mas nada disso a ela preocupava. Estava apenas entregue à sensação que a leitura produziu em suas entranhas.

 

Sem saber era observada, sua figura esvoaçante em alguns causava arrepios como se estivessem vendo um fantasma, outros a olhavam com profunda admiração, impossível seria nada sentir ao passar daquela menina com seus cabelos negros esvoaçantes que espalhavam no ar um aroma de vento do deserto. A cidade parava para observar, talvez pela primeira vez, o passar de uma Tuareg.

 

Por onde passava os sentidos se desviavam, as retas se curvavam, o tempo parava ou até mesmo se revertia, à sua esquerda corria o ar a menos de zero grau, enquanto à sua direita a quentura se fazia como jamais se fizera. Subiu a pequena, porém íngreme, Colina onde se encontra edificada a igreja de Santo Antônio da Barra, sentou-se no degrau da mesma e fitou à sua esquerda o azul sobre a Ladeira da Barra e esta como limite entre a Península e o mar, seus olhos brilharam, não é todo dia que uma menina do deserto se defronta com o mar.

 

Aos poucos alguns seres foram chegando, nada diziam, sentavam-se ao lado da menina e permaneciam, alguns translúcidos deixavam aparente a circulação de líquidos fluorescentes que lhe percorriam e dava-lhes forma, alguns alados, outros desfocados, inanimados, em comum apenas o silêncio, todos chegavam calados. Ao passante, absorto observador, apenas uma impressão: algo iria acontecer.

 

Eram dezenas de seres os mais díspares possíveis sobre a Colina de Santo Antônio, para muitos, com os olhares mais amedrontados e banhados por certezas dogmáticas, ali estava o perigo: encontravam-se ali os “abandonados por Deus”, os que vagavam sem peso.

 

De um momento para o outro o vento parou de correr, o tempo esqueceu-se de passar, o sino da igreja tocou mais forte do que de costume e, como o diapasão do maestro, deu início ao som. Comunicavam-se por músicas, sons que se entrecruzavam em modos atemporais, por vezes tons que se harmonizavam, por vezes se chocavam, afastavam-se, debatiam-se como forças densas, gladiadores em meio a um Coliseu de arquibancadas de ar. O som vazava para a cidade, a cidade se entregava ao som.

 

O Mar da Baia até então calmo, tornou-se fúria pura, aquela Colina ao centro da Ladeira da Barra, tornou-se um campo de força, era energia pura. A chuva despencou torrencial de um céu límpido, azul.

 

A menina Tuareg, agora com seus negros cabelos protegidos por uma espécie de turbante cor de terra, levantou-se lentamente e saiu andando com seu olhar de diamante. Na escadaria de Santo Antônio da Barra ficou apenas Paulinho da Viola tocando seu violão:

 

“Ergo em silêncio, como um pirata perdido,
Minha negra bandeira e me sento.
Mexo e remexo e me perco e adormeço,
Nas ruínas da cidade submersa”*

E da varanda da casa de Maria, debruçada sobre a Baia de Todos os Santos, observamos tudo em profundo silêncio, e assim permanecemos.

 

*Cidade Submersa – Paulinho da Viola

 

 

 

 

 

terça-feira, 16 de abril de 2013

Tudo parece


 

 
 
Tudo indica que estes dois já estavam entrelaçados desde que o tempo começou a correr às veias. Estava no trançado do olhar, na cumplicidade de um meio sorriso amedrontado. Os sinais sendo desnudados a cada vez que aqueles olhares se encantavam de forma despretensiosa. Algo oculto estava aceso, mas ninguém via, nem mesmo os dois que o correr das águas pelos eixos ofuscava diamantes pedidos, temiam. A felicidade por vezes pode parecer assustadora.

 

Porém o destino não desatava o nó, algo continuava a turvar em algum momento, em algum lugar. Era como se de alguma forma existisse uma curva nos caminhos daquele rio. Havia algo, não que fosse um roteiro de Kubrick, não! Apenas havia algo em um daqueles olhos que indicava ser necessário atentar ao poeta: o tempo não para, e por isso se faz necessário que se esgarce o tecido, se rasgue o vestido, que se abram os poros para que a brisa transpasse. Limpe a íris; a alma.

 

O que há naqueles olhos de mulher que não conste em trovas cantadas? Em histórias já narradas? O que faz achar ser o temor daquele olhar diferente do olhar de Miguel de Cervantes levando o seu Quixote à sombra da morte? Ou como se enxergou a bela Margarida entes de ser encontrada sob a ponte? Seria possível que ali ninguém visse o olhar de Fausto sobre o cristal de corpo inerte?

 

As vozes que, de tempo em tempo, soavam de ambos pela sala fechada não condizia com a realidade. Tudo se transformava em frações de segundo, os imóveis humanos mudavam, transformavam-se! Nada era estável, nada condizia com os embates agudos que aquelas vozes produziam na memória, na ressonância. Era um punhal de prata atravessando, sem produzir um fio de sangue sequer, o peito enfeitiçado do dono do olhar que a fazia existir com seu perfil elegantemente longilíneo, fugidio como uma música que se escuta, mas que não se sente o sabor, não se pode tocar!

 

(...)A voz de alguém nessa imensidão

A voz de alguém que canta

A voz de um certo alguém

Que canta como que pra ninguém (...)*.

 

A música apenas reverbera e explode nos ouvidos, mas não de todos, apenas os dois ouvem, sentem, mas quando os finos dedos nus tentam se entrelaçar e se reinventar, o som se expande em ondas como as produzidas no espelho d’água dos seus medos em choque com a palavra que teima não ser dita.

 

Tudo parece está pronto, a respiração parece suspensa, existe a certeza de se estar em um eterno mergulhar, os pés abandonaram a pedra, mas os cabelos negros lançados à frente do corpo alvo não tocaram o mar. Neste hiato é impossível se respirar, o ar é mínimo no corpo à espera que o peso produza o corte perfeito nas águas, o abraçar da solidez dela à espera dos braços, do sorriso largo, dos tons que não se fazem quando nada mais se é do que uma nota da música cantada que se espalha como alfazema ofertada a Yemanjá.

 

O vento soprou com tamanha força que conduziu o sol para o horizonte, nada mais restou senão pousar o feixe de visão entre o Farol da Barra e o farol de Mar Grande, eis o duelo entre o peso do existir: o olhar, a luz.

 

Pausou o tempo, dobrou o papel escrito, envelopou e no espaço do endereçado, escreveu:

 

Ao tempo.

 

Sorriu e enviou.

 

Roger Ribeiro

16 de abril de 2013

 

*Alguém Cantando – C. Veloso

 

  

 

 

quarta-feira, 27 de março de 2013

Sem-te


I've got a feeling, a feeling deep inside

I've got a feeling, a feeling I can't hide*


 

- Este é o meu juízo final.

 

Disse firme. Sua voz saiu com a precisão da lâmina de um samurai ao desferir o golpe letal, com toda a admiração e respeito, sobre o oponente. Falou e imediatamente fechou seus olhos de longos cílios, aliás, não fechou apenas os olhos; fechou-se toda! Todos os poros, todas as ligações nervosas, todos os sentidos, fechou-se enquanto humana transformando-se em mineral, uma rocha, sólida e inabalável. Morria de medo do peso, da gravidade e, principalmente, da finitude – algo que nunca havia sentido – de sua decisão, do seu juízo final.

 

Não, não havia chegado àquele ponto por mero impulso, por raiva, desespero, por algum sentido fugaz, não! Era a dolorosa e quase sobre-humana tarefa do desfazer a corrente fluida, continua e circular; era um juízo final, uma ação em frase lapidada.

 

Por dias, descalça, andou pala areia morna e colorida da beira mar, por noites e noites, sem dormir, regou, letra por letra, palavra por palavra, vírgula a vírgula com suas lágrimas brilhantes e cristalinas seu veredicto. Sua decisão não era uma mera decisão, uma simples constatação, era sim, o ponto, mas não qualquer ponto, mas o ponto final.

 

Juízo. Tenha juízo!

 

Frase que parece que nasceu escutando, agora lhe rondava a cabeça como um tufão, era como se estivesse em meio à grande tempestade que sempre esperou e nunca veio. Eram como as músicas que sempre soube que existiam, mas nunca ouviu, o espelho que não lhe refletia, mas que a tragava, sugava-lhe pouco a pouco, levou-lhe as pequenas flores vermelhas bordadas do seu vestido laranja, levou-lhe a tinta lilás expondo, o por tanto tempo escondido, azul-marinho original dos seus cabelos, levou-lhe o tempo, os músculos... Mas não o juízo.

 

Contudo e apesar de toda a aparente lucidez, não conseguia abrir os olhos. Falou e após falar cerrou os lábios. Lábios que aos poucos perdeu a umidade, o brilho, desbotou, perdeu o tempo do beijo, o cheiro do gosto que só pelos lábios se sente, mas nada disso lhe assustava, temer... Somente o de ter de abrir os olhos e ser invadida pelas lágrimas de tons rosa-verdejantes que minavam dos seus olhos, afinal, apesar da aparente firmeza daquela “comissão julgadora” formada pelos infinitos Eus contidos nela, apesar de todo o filtro racional, de sua história construída, morria de medo de estar apenas e somente errada.

 

Temia estar sendo covarde frente ao desafio titânico que lhe era apresentado, proposto. Poderia apenas estar recusando um convite para um novo bailar!

 

Mas esta hipótese poria por terra todas aquelas semanas de reflexões, de decisões. Como encararia daquele momento em diante os seus pés que, de tanto tocar as partículas coloridas da areia da beira mar, foi absorvendo cores? Como manteria a sua relação com o vale existente entre os seios que se aprofundavam, assoreavam-se pelo veio d’água contínuo e cristalino minados dos óios dos seus olhos descendo Serra abaixo por entre os seios incandescente?

 

Do seio esquerdo, o pulsar frenético do coração, aterrorizado que estava pela proximidade da decisão a ser tomada, o fazia expandir-se ao seu máximo, de tão expandido a pele se afinou a ponto de, por cima do vestido desflorado e alaranjado, tornava-se perceptível seus órgãos; órgãos alimentados pelo fole do pulmão que tocavam uma sonata de Bach na Catedral demolida da Sé.

 

De medos viveu semanas, por dias foi permitindo esvair os seus azuis, por horas, minutos segundos deixou-se germinar de gigantescas árvores que se expandiam esverdeando de um verde chumbo, entrecortada de cipós de veias que tentavam a todo custo conter a corrente furiosa de um sangue envenenado pelo medo; o juízo foi feito, a palavra dita, ficou o final e, após o final... Apenas o medo do erro. A floresta intransponível.

 

Temia o ter de admitir que não conseguisse. Temia ouvir a música que tanto lhe dizia, sabia que soava, sentia os seus graves lhe irrompendo pelas costas transformando suas costelas em cordas de uma harpa afinada, translúcida arpejada por dedos finos de unhas compridas que se integravam e vibravam de forma a não mais se perceber o que eram os dedos, o que eram as cordas. Um único elemento perdendo pouco a pouco suas partículas sólidas, nada mais havia para os seus olhos cerrados do que sons: música.

 

Abriu lentamente os olhos, o suficiente para fitar à sua frente o espelho que lhe sugava, levantou-se, beijou o que ainda restava de matéria à sua frente. Reafirmou:

 

- Sim, está decidido, sem direito à revisão, este é o juízo final.

 

Atravessou a sala, ainda descalça, aguardou o elevador, entrou apertou o último botão, aquele que a levaria ao térreo, a porta fechou-se à sua frente, voltou a fechar os olhos e desceu.

 

Alguns segundos passaram-se e o elevador chegou ao seu destino, fechado estava, fechado ficou.

 

Um bando de crianças, gritando e correndo, escancarou a porta do mesmo elevador, entraram apertaram todos os andares e passaram a brincar de voar do térreo ao décimo andar, eram, por alguns segundos super heróis. Para assim ser fecharam os olhos, cerraram os punhos e sorrindo gritavam sem o menor juízo:

 

- Estamos voando! 

 

Roger Ribeiro

27 de março de 2013   

 

* I've Got a Feeling - Beatles

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Hummm, moqueca é?!


 

- Tô dizendo, era deste tamanho oi! (e mostrava algo abstrato entre as mãos)

- É o quê rapaz!?... Deixa de conversa, vai fechando estes braços aí!

- Mas, e aí... Como era o bicho?

- Prata! De um prata escuro, fundo... Veja, acredite, na medida que ia secando o bicho ia ficando cor de rocha! É... pedra mesmo!

- Hum... Só se for pedra de dar em doido!

- Olha, era grande. Deu trabalho pra tirar da água.

- O quê? Quantos quilos?

- Não pesei, mas menos de seis quilos não tinha!

- O quê?! Seis quilos?

- Isso sem contar a cabeça e o rabo (brincou Espirro, que a tudo observava e ria). Mas me diga: e que bicho era?

- Cavala!

- que Cavala nada... Eu vi a foto, o “bichin” era grande mesmo, mas era Xareu.

- Que Xareu o quê!? (ofendeu-se o nobre colega pescador), nada contra o Xareu, mas num era não. Ele era esticado, o Xareu é “toletado” (referência a algo curto e grosso)

- Pode então ser um Bonito! (arriscou o palpite o Tinha)

- Então era um bonitão! (brincou Orelha).

- Meu parente. (disparou Espirro para gargalhada geral).

 
E nisso se instaurou uma discussão generalizada em plena areia do Porto da Barra, uma roda de uns doze homens, em uma frenética discussão entre ter: seis quilos, cinco, oito! Ser Xareu, Bonito, Cavala, ou qualquer outro aparentado do Atum... O certo é que naquele sábado às oito e trinta da manhã formou-se uma polêmica que ia atraindo cada vez mais gente, até formar um “manguedaporra”!

 

Não tente ler ao pé da letra: “manguedaporra” é um substantivo próprio de gênero híbrido, singular de alcance plural, demonstrativo de tudo que pode caber dentro de um “diâmetrodaporra”! Faz parte do Panteão dos substantivos explicativos/demonstrativos/quantitativos, do conjunto que pode se iniciar com “páporra” (quantitativo e/ou espacial), “dáporra” (valor), “comáporra” (estado) e “sejaláqueporrafor”, entre outros derivativos da nação lingüística autóctones das praias Soteropolitanas.

 
Pois, foi neste calor discursivo que o Espirro pediu a palavra e mudou totalmente o rumo da prosa:

 
- Olha lá, meu povo! - e olhando fixamente para a região abaixo da linha onde são proibidos os golpes do boxe - disparou: Ali sim é que se faz uma moqueca dos deuses!

- Com dendê pilado, leite de coco coado no pano e feita no agdá! (complementou Cabelo).


E lá vinha ela andando areia à dentro com o tênis branco e rosa pendurado nos dedinhos da mão esquerda, o shortinho amarelo ornando com a blusinha de algodão branquinha, toda suada marcando a cintura de uma mulher, uma verdadeira representante do gênero feminino daquelas que já sabem que “atrás do porto existe uma cidade”! (frase muito usada pelos freqüentadores da dita praia em questão, tudo bem... Prá você não ter de voltar lá em cima do texto, eu te lembro: Porto da Barra).


- Olha a corzinha dela!

- verdade Secão, deve ser paulista!

- Pode ser também Mineira... (palpitou Roger’n’Roll)

- Não, mineira não é. As mineiras andam olhando pro vão. (lá estava o entendido Zito).

 
O shortinho deu com a areia em um compassado rebolado, enquanto os bracinhos para cima deslizavam o branco algodão por cima das “montanhas lisas do monte do peito”, como diz o menino marido da Flora. O caminho até a água foi o esplendor do dia! Ninguém mais se lembrava de Xareus, Bonitos, Atuns, ou seja lá o que for... No momento todos estavam em estado catatônico admirando aquela obra que parecia ter saído dos traços de Caribé!

 
- Boto uma porção de Agulhinha Branca frita por Dona Marta que é paulista. (desafiou Secão, piscando o olho para a dita baiana)

- Mineira. E dobro a porção (ficou valente o Pingunino)

- Nada, é gaúcha. Boto a agulhinha e mais a “tubaína” gelada (garganteou Pedro Santana).

- Olha, conheci uma criatura da Chapada dos Guimarães que tinha este mesmo jeitinho de segurar o tênis!

- Podes crer Frank, a Marcinha né?

- E finalmente, quem vai saber de onde ela é?

- Eu vou. (resolveu o sempre disposto Espirro).

 
Aproximou-se da água e, sem disfarçar, esperou que a sereia se refrescasse. Quando saia da água foi interpelada por ele:

 
- Minha fulô oceânica, estávamos ali discutido o rumo do universo, quando a sua presença se impôs e, entre palpites de se viestes para redimir ou enlouquecer a humanidade, instaurou-se uma “polêmicadaporra”... (faz parte daquele conjunto, lembra?).

- E eu posso ajudar? (falou com um sorriso de derrubar as Muralhas de Jericó).

- Claro! Veja bem: entre um Meteoro, um Cometa ou até mesmo a influência das naves intergalácticas, com suas Anas Universais, você apareceu com estes pezinhos lindos!... Acariciando as areias da nossa bela praia...

- Menos né?

- É verdade! Eu juro. Mas ta faltando, “pradarum sambadáporra” (variação do mesmo tema), saber de onde vem tão luminosa presença: De São Paulo? Minas? Mato Grosso? Rio Grande?

- ôxi menino, tá louco? Eu sou é de Jequié!


- Jequié?! Aí galera deu pedra na cabeça...

 
O tempo fechou, invernou, o “cacau caiu brabo” (chuva das grossas), a maré virou, deu calhau no Porto, o vento sul chegou varrendo até o pensamento...


Dona Marta fechou o tabuleiro, olhou o horizonte por detrais de Espirro que vagava só à beira-mar, se benzeu, balbuciou palavras incompreensíveis e se saiu “viradanaporra”.
 

Só deu praia novamente treze dias depois!
 

Roger Ribeiro

26 de fevereiro de 2013.

 

 

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Enfim, humano!


 

Havia passado mais um carnaval. Passava completamente ao largo de todas as discussões a respeito das transformações ou não da festança momesca. Pouco lhe interessava as celebridades dos trios elétricos, dos camarotes, quem era a rainha da música carnavalesca? Quem era o rei? Quais atores, atrizes, modelos, quem veio de fora ou deixou de vir?

Possuía o dom de se tornar transparente, invisível e isso dizia aos quatro cantos do mundo que, por sinal é redondo, ou quase.


Mas como diz um dos bons poetas do Recôncavo baiano: “você está / você é / você faz / você tem...”*. De tal maneira por saber ser, ou por se iludir nada temia, ninguém o via, ninguém com ele mexia, nada nem ninguém lhe tocava a carne sem que assim permitisse. Por isso saia de peito aberto. Quando o encontravam, antes ou depois da grande festa, e lhe perguntavam se não temia a nova realidade que se estabelecia, não apenas no dito carnaval, mas em toda a cidade da Bahia, pois por ser contemporâneo de Glauber Rocha, e o ler na época vorazmente em suas observações, adotara a geopolítica do cineasta sobre o entorno da Baía de Todos os Santos – A Cidade da Bahia!


Respondia aos seus interlocutores com muita calma:


- Jamais abrirei mão do meu prazer de dançar no meio da rua! Imagine, a cidade para! Os famigerados automóveis com seus olhos incandescentes, brancos por falta de sangue nas veias, param, desocupam os espaços, o furioso passar das pessoas atrasadas “sabe-se-lá-Deus” pra quê e pra onde, cessam, tudo para, até o sol se pudesse parava de rodar e puxava a lua pra dançar! E tudo isso para eu poder rebolar, pular, dançar no meio de uma rua! Local que no resto do ano só é meu por míseros segundos de sinal verde!? E querem que eu não vá? Vocês são loucos!


Todo este brandir, que presenciei por várias vezes, calava os seus interlocutores e, por vezes, acabava por explodir em aplausos, gritos e assovios de apoio vindo de todas as partes. Desta feita, inclusive, ocasionou um olhar de repreensão do responsável pelo mau-humor característico de um antigo e famoso restaurante no Largo do Mocambinho.


Neste ano não foi diferente, já na quinta-feira, dia da entrega da chave ao Rei Momo, deu vazão a sua fantasia e lá saiu para o que dizia ser o último resquício das felizes liberdades plantadas em Woodstock e que, só encontrou solo fértil nos seis dias de festa pelas ruas da Cidade da Bahia. Saía só, louco e transparente: “rebolando na Avenida / prá desgraça e glória / desta vida”**.


Daí até a não menos famosa “Quarta de Cinza”, viu, ouviu e dançou de tudo, encontrou um mar de gente, alimentou a alma de cores inimagináveis, mas ninguém o viu, ouviu ou se quer soube de sua passagem, mas lá estava! Como sei? Não sei, apenas escutei, ouvi falar.
 

Chegou até a mim à notícia de que enfim foi visto. Andava, ou melhor sambava pela Rua Chile, quando foi abraçado pela cintura e levado rodopiando como um pião até a Praça Castro Alves onde, inclusive, esconderam o Poeta Maior. Estancou no meio da rua, milimetricamente entre o Cine Glauber Rocha e a escondida, porém onipresente, estátua do poeta. Era um ser todo prateado de onde se via rios de cor escarlate circulando freneticamente como um solo de Armandinho!


Abriu-se uma enorme clareira na multidão todos os olhos concentraram-se naquela visão prata-escarlate, o som tornou-se pausa e da pausa passou-se a ouvir um levíssimo caminhar descalço, uma silhueta descendo tão levemente que flutuava, vinha da Ladeira de São Bento em direção ao clarão aberto no largo da Praça. O cheiro que desceu como orvalho era de almíscar selvagem, à medida que o vulto avançava todos abriam passagem e, como se estivessem hipnotizados, seguiam-na com os olhares mareados de felicidade.


Parou ao centro, em frente ao homem prata-escarlate e brilhou! Seu traje fino como um papel de arroz esvoaçava acariciando o rosto de todos que olhavam. De silhueta tornou-se matéria real, não mais era uma sombra flutuando, mas sim uma mulher de músculos finos e longos, também com seus rios escarlates fervendo por entre sua dourada pele. Estendeu-lhe os finos e longos braços e o prateado e dourado se entrelaçaram.

Em fração de segundos choveu púrpura na Avenida.


Quando os sentidos se realinharam, o espaço estava sendo aberto novamente, o “Tapete Branco” chegara à Praça, desciam a Rua Chile Os Filhos de Gandhi: a alfazema, o tapete branco aliado ao caxixis, atabaques e agogôs, escondeu o voar prata e dourado... Como antes fora feito pela chuva em Woodstock!
 

Roger Ribeiro

19 de fevereiro de 2013

*Dom de Iludir – Caetano Veloso


** Deixa Sangrar – C. Veloso

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

O risco


Do nada, absolutamente... Apenas havia acordado. Isto posto, fez tudo o que um homem de meia idade faz, seguiu a risca o despertar: pólen, laranja, mel e café. O céu? Bem... nada de estranho, azul com aquele azul que só mesmo a Baia de Todos os Santos sabe doar no verão, não que ache este azul o mais azul dos azuis, não, ainda prefiro o azul do outono! Mas nada mudará o presente por esta opção.

Até então tudo parecia estar seguindo a sua perfeita ordem nada havia de diferente, nem mais nem menos, tudo continuava como Arquimedes planejara, ou pelo menos até apurar mais os sentidos. Talvez um despertar um pouco mais despertado quando os sensos começam a fazer a varredura de reconhecimento: cheiro, temperatura, som, brisa, sombras, enfim tudo que nos traz um bem estar de acolhimento. Passou por todas as etapas e ao final chegou a uma conclusão um tanto quanto desconcertante: tudo lhe era muito natural, porém não reconhecia ser exatamente aquele local como o seu, apesar da extrema familiaridade.

Passou a vista, agora com mais cuidado, mais detalhadamente, reconheceu cada milímetro daquelas pilastras arranhadas, o cheiro da cebola no refogar do restaurante ao lado, as cestas com legumes, frutas, hortaliças, as moças apressadas falando alto perguntavam pelo charque, queijo, abobrinha, sabão, etc, etc. Creio que falam alto, pois assim tudo se resolve mais rápido - nunca entendi o que volume tem a ver com o tempo necessário para as coisas?

Bom, mas assim era. Começou a desconfiar que aquela manhã apresentava-se frenética demais para quem pudesse estar despertando vagarosamente em um quarto. Só não entendia porque conseguia por segundos antever os fatos, por ínfimos segundos sabia que aquele ladrilho à esquerda estava riscado com o batom do seu sorriso, isto antes dos olhos verem a tatuagem do ladrilho.

Tudo estava lá, e esta sensação era milenar: o restaurante, o mercadinho e entre estes, esgueirando-se como uma sombra o local onde, sabia nunca estivera, mas vivenciou, ou melhor, criou tanto e tantas histórias se desdobraram... Não podia ser! Afinal quando começou este filme?

- Bom dia a todos!

Entrou no ambiente, suado e segurando a cabeça debaixo do braço.

- Bom dia! (respondeu. Esfregou os olhos, se perguntou: respondi a quem? Por quê?).

Pessoas chegavam e interagiam com normalidade enquanto de forma lenta e harmônica iam derretendo e deixando seus rastros coloridos pelo chão. Para estas pessoas, esteve sempre ali, afinal dirigiam-lhe o olhar, perguntavam-lhe coisas, respondiam, diziam terem pesquisado após os últimos encontros. Meteu a mão no estomago e o desvirou, pediu pela primeira vez a um ser, supostamente superior, que zelasse por sua sanidade, queria também poder desmanchar seu ser com naturalidade.

O barulho da rua era baixo, porém intenso, pássaros que passavam em rasantes berrando coisas incompreensíveis, homens fortes carregando engradados, homens fracos carregando engradados, homens inchados pelos muitos engradados, homens engarrafados, lentos, suados, de olhar eternizado em nada, evaporado. As mesmas mulheres que derretiam enquanto seus cabelos cresciam, passavam de um lado para o outro carregando suas especiarias, os alimentos, os ingredientes que ocupariam seu dia. Transitavam quase que automaticamente, se falavam prosaicamente, nada havia para emoção, mesmo que mínima. Eram apenas braços, pernas, cebolas, alhos, barrigas, vestidos caseiros velhos. Parecia que a vida estava resolvida, estavam sempre sobre a ponte.

Do seu estado de incredulidade do estar, permitiu-se pensar que aquelas senhoras, cheias de responsabilidades para alimentar, não olhavam que as águas continuavam a passar perenemente por baixo dos seus pés. Não se permitiam refrescar seus finos, quase cristalinos pés, nas águas que correm com a calma de quem viverá todos os estados físicos possíveis. Balançou a cabeça se recriminando, quem achava que era para poder julgar?

Era um quebra-cabeça, que se montava todo dia, por vezes uma peça se perdia, mas não era de preocupar, logo aquele espaço irregular seria preenchido e tudo continuaria a transitar entre os braços que carregavam os engradados de sonhos e as mãos firmes que levavam em suas sacolas a fome do mundo.

Pediu algo, encheu o copo e bebeu o líquido com ternura, era ainda o meio da manhã, mas o calor já era intenso, o líquido gelado dava uma sensação agradável, tirava-lhe do universo mental e o remetia à oralidade. Falava e agitava-se se achando plenamente acolhido. Ali, naquele momento, nada de mal o atingia era como se estivesse, enfim, “vestido com as roupas e as armas de Jorge”.

- Tô te falando? Sim, pode pesquisar... aposto o que você quiser...!

Esta era uma fala clássica, pelo menos de meia em meia hora ela se impunha... A única coisa estranha mesmo era aquela impressão, ou melhor, aquela certeza de que não podia estar ali.

Levantou-se lentamente, retirou algo de dentro da pele, avistou cuidadosamente ao entorno, olhou com ternura o pão fresco no balaio sorriu e sumiu.

Nunca mais soube exatamente o que era: Criador ou criatura? Por vezes era os dedos que digitavam as palavras, por vezes era as palavras que inventavam os dedos de um ser que, aos poucos, ia deixando os rastros do seu derretimento nos papeis.

Ou seria o papel o responsável por forjar aquela existência?

Na maioria das vezes as perguntas não procuram respostas, afinal o menor caminho não é uma linha reta.

Roger Ribeiro
 
15 de janeiro 2013.