sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Pega! Não, deixa voar.


Em agradecimento a 2010.

Não é nada assim impossível, muito pelo contrário é uma caminhada de, no máximo, um quilômetro bastante agradável, principalmente porque havia se resguardado do sol escaldante e uma brisa muito fresca se fazia presente, arejando-lhe a fronte, tornando tudo ao redor em uma paisagem típica de filme Espanhol (pós surrealistas, claro).

Ao seu lado esquerdo o mar encrespado pelo vento nordeste baixo típico do fim de tarde, deixava-o com uma cor de azul fundo encorpado, era água se arremessando para todos os lados, parecia que o grande vale onde se aloja o mar estava pequenino para sua fúria. Os olhos andarilhos observavam a fúria com complacência, no fundo da retina sabia quantas e quantas vezes já havia passado pela mesma sensação da cavidade do seu peito ser mínima para a fúria de sentidos que afloravam.

Os passos eram lentos, porém firmes, os ouvidos atentos conseguiam, com raros erros, identificar o modelo do automóvel que se movia veloz à sua direita. Divagava nos pensamentos imaginando como seria morar em Nova York. Estaria neste momento perto do ano novo e certamente viveria uma experiência que não conhecia, afinal como seria o dia-dia em uma cidade coberta de neve? Como será acordar, sair, se transportar ao trabalho? Seria tudo normal? Não conseguia sentir a sensação exata do que seria isso.

Sabia apenas de uma coisa; não tinha vontade de passar o fim de ano lá como turista, não tinha o menor gosto nisso, para isso preferia passar o período nas areias do Arpoador na festa de ano-novo mais autêntica e natural que conhecia.

Na verdade pensava era como se vive na maior cidade da civilização Ocidental - ela sob eu sobre a neve? Era este cheiro, este tato, este gosto que queria sorver. Será que eles param em um quiosque e pedem um café bem quente? Será que há quiosques?

Seu cérebro estava de tal forma dominado por estas curiosidades que o caminho tornou-se uma paisagem sem registro, já não percebia o que estava à sua volta, não percebia mais nada! Estava dominado por seus pensamentos, parecia que tudo aquilo se decifraria a alguns metros à frente. Esqueceu que estava de calção de banho, camiseta regata e sandália de dedo, não percebia que se realmente estivesse a metros de seus pensamentos, estaria em sérios apuros com seus dois reais que levava para a água de coco, estaria enrascado, ou melhor, em uma gelada.

- Meu filho!

Era a voz de uma senhora sem dúvida e esta o tirou, vagarosamente, porém sem retorno, de sua quimera cerebral.

- Meu filho! Por favor...

A voz começava a mostrar certa irritação com a distração do alvo.

- Por acaso sabe me informar como chego à Quinta Avenida?
- Hã? Quinta o quê?
- Quinta Avenida meu filho! O que há com você está drogado? Necessita de ajuda?
- Nããão... De forma alguma, desculpe-me apenas estava distraído.
- Hum... Você conhece o livro “Distraídos Venceremos”?

“Ainda ontem
Convidei um amigo
Para ficar em silêncio
Comigo
Ele veio
Meio a esmo
Praticamente não disse nada
E ficou por isso mesmo”.*

Ao ouvi-la foi lentamente dirigindo os olhos que antes vislumbravam, meio turvamente, o Farol da Barra e dirigiu-se para aquela pequena senhora que lhe abordava. Ela tinha a pele morena clara e, pelos muitos anos que acumulava, a pele soltara da já inexistente carne ficando uma pele longa e enrugada sustentada por finos ossos, estava belamente vestida de Mulher Maravilha, com aquela saia de bandeira norte-americana estilizada e prendendo-lhe os prateados fios de cabelo a tiara com a estrela maior.

- Bom (falou ele recuperando o senso de real), a senhora quer ir à Quinta Avenida?
- Afii!... Eta povinho difícil sô! Pois já não te falei isso?
- A senhora está vendo aquele Farol?
- Espera, deixa-me acionar meus olhos de laser! Sim, nitidamente.
- Pois então, a Quinta fica exatamente à oitava volta do farol vermelho sobre a quina da Pedra dos Peixes.
- Ô meu filho, que Deus o abençoe... Muito obrigada.
- Não por isso, vá com cuidado.

Ela partiu, ele continuou o seu caminho como se nada tivesse acontecido, permaneceu olhando, ora em frente admirando a arquitetura do forte guardião dos “olhos do mar”, ora para as ondas que travavam a remotíssima batalha com as poderosas rochas litorâneas, sempre as imaginei como filhas de Erik o Vermelho.

Andando distraído tropeçou em algo, quase caiu, olhou para trás e viu tratar-se de uma fina e esquelética perna, assustou-se, será que a havia machucado? Olhou para o corpo que cabia àquela perna e apressou-se:

- Perdão minha senhora, estava distraído... e...

De repente reconheceu, era ela novamente! Mas como pode ser? E a roupa de mulher maravilha? Estava agora toda rota, suja... O que haveria acontecido?

- Senhora, lembra de mim? Há pouco lhe indiquei o caminho da Quinta Avenida?
- Sim meu filho, claro, você foi tão gentil! Como iria esquecê-lo?
- O que aconteceu?...
- A Quinta Avenida é linda meu filho, mas seus encantos são traiçoeiros, morei lá por tempos, desde que me indicastes o caminho, ouvi jazz, cansei de ver a bola do ano novo, porém me enamorei mesmo, foi pela maçã, perdi os dentes, mas não perdi o sabor da vida!
E você que não vejo há tanto tempo, continua andando distraidamente pela vida? O que fizeste durante o século XXI?

“(...) Fez-se enxertar réguas, esquadros
e outros utensílios
para obrigar a mão
a abandonar todo improviso.

Assim foi que ele, à mão direita,
impôs tal disciplina:

fazer o que sabia
como se o aprendesse ainda”**

-Eu?!


Roger Ribeiro
31 de dezembro 2010.

* “Arte do Chá” – Leminski
** “O Sim Contra o Sim”- trecho – João Cabral de Melo Neto.