Do nada, absolutamente... Apenas
havia acordado. Isto posto, fez tudo o que um homem de meia idade faz, seguiu a
risca o despertar: pólen, laranja, mel e café. O céu? Bem... nada de estranho,
azul com aquele azul que só mesmo a Baia de Todos os Santos sabe doar no verão,
não que ache este azul o mais azul dos azuis, não, ainda prefiro o azul do
outono! Mas nada mudará o presente por esta opção.
Até então tudo parecia estar
seguindo a sua perfeita ordem nada havia de diferente, nem mais nem menos, tudo
continuava como Arquimedes planejara, ou pelo menos até apurar mais os
sentidos. Talvez um despertar um pouco mais despertado quando os sensos começam
a fazer a varredura de reconhecimento: cheiro, temperatura, som, brisa,
sombras, enfim tudo que nos traz um bem estar de acolhimento. Passou por todas
as etapas e ao final chegou a uma conclusão um tanto quanto desconcertante:
tudo lhe era muito natural, porém não reconhecia ser exatamente aquele local
como o seu, apesar da extrema familiaridade.
Passou a vista, agora com mais
cuidado, mais detalhadamente, reconheceu cada milímetro daquelas pilastras
arranhadas, o cheiro da cebola no refogar do restaurante ao lado, as cestas com
legumes, frutas, hortaliças, as moças apressadas falando alto perguntavam pelo
charque, queijo, abobrinha, sabão, etc, etc. Creio que falam alto, pois assim
tudo se resolve mais rápido - nunca entendi o que volume tem a ver com o tempo
necessário para as coisas?
Bom, mas assim era. Começou a
desconfiar que aquela manhã apresentava-se frenética demais para quem pudesse
estar despertando vagarosamente em um quarto. Só não entendia porque conseguia
por segundos antever os fatos, por ínfimos segundos sabia que aquele ladrilho à
esquerda estava riscado com o batom do seu sorriso, isto antes dos olhos verem
a tatuagem do ladrilho.
Tudo estava lá, e esta sensação era
milenar: o restaurante, o mercadinho e entre estes, esgueirando-se como uma
sombra o local onde, sabia nunca estivera, mas vivenciou, ou melhor, criou
tanto e tantas histórias se desdobraram... Não podia ser! Afinal quando começou
este filme?
- Bom dia a todos!
Entrou no ambiente, suado e
segurando a cabeça debaixo do braço.
- Bom dia! (respondeu. Esfregou os
olhos, se perguntou: respondi a quem? Por quê?).
Pessoas chegavam e interagiam com
normalidade enquanto de forma lenta e harmônica iam derretendo e deixando seus
rastros coloridos pelo chão. Para estas pessoas, esteve sempre ali, afinal
dirigiam-lhe o olhar, perguntavam-lhe coisas, respondiam, diziam terem
pesquisado após os últimos encontros. Meteu a mão no estomago e o desvirou,
pediu pela primeira vez a um ser, supostamente superior, que zelasse por sua
sanidade, queria também poder desmanchar seu ser com naturalidade.
O barulho da rua era baixo, porém
intenso, pássaros que passavam em rasantes berrando coisas incompreensíveis,
homens fortes carregando engradados, homens fracos carregando engradados,
homens inchados pelos muitos engradados, homens engarrafados, lentos, suados,
de olhar eternizado em nada, evaporado. As mesmas mulheres que derretiam
enquanto seus cabelos cresciam, passavam de um lado para o outro carregando
suas especiarias, os alimentos, os ingredientes que ocupariam seu dia. Transitavam
quase que automaticamente, se falavam prosaicamente, nada havia para emoção,
mesmo que mínima. Eram apenas braços, pernas, cebolas, alhos, barrigas,
vestidos caseiros velhos. Parecia que a vida estava resolvida, estavam sempre
sobre a ponte.
Do seu estado de incredulidade do
estar, permitiu-se pensar que aquelas senhoras, cheias de responsabilidades
para alimentar, não olhavam que as águas continuavam a passar perenemente por
baixo dos seus pés. Não se permitiam refrescar seus finos, quase cristalinos
pés, nas águas que correm com a calma de quem viverá todos os estados físicos
possíveis. Balançou a cabeça se recriminando, quem achava que era para poder
julgar?
Era um quebra-cabeça, que se
montava todo dia, por vezes uma peça se perdia, mas não era de preocupar, logo
aquele espaço irregular seria preenchido e tudo continuaria a transitar entre
os braços que carregavam os engradados de sonhos e as mãos firmes que levavam
em suas sacolas a fome do mundo.
Pediu algo, encheu o copo e bebeu o
líquido com ternura, era ainda o meio da manhã, mas o calor já era intenso, o
líquido gelado dava uma sensação agradável, tirava-lhe do universo mental e o
remetia à oralidade. Falava e agitava-se se achando plenamente acolhido. Ali,
naquele momento, nada de mal o atingia era como se estivesse, enfim, “vestido
com as roupas e as armas de Jorge”.
- Tô te falando? Sim, pode
pesquisar... aposto o que você quiser...!
Esta era uma fala clássica, pelo
menos de meia em meia hora ela se impunha... A única coisa estranha mesmo era
aquela impressão, ou melhor, aquela certeza de que não podia estar ali.
Levantou-se lentamente, retirou
algo de dentro da pele, avistou cuidadosamente ao entorno, olhou com ternura o
pão fresco no balaio sorriu e sumiu.
Nunca mais soube exatamente o que
era: Criador ou criatura? Por vezes era os dedos que digitavam as palavras, por
vezes era as palavras que inventavam os dedos de um ser que, aos poucos, ia
deixando os rastros do seu derretimento nos papeis.
Ou seria o papel o responsável por
forjar aquela existência?
Na maioria das vezes as perguntas
não procuram respostas, afinal o menor caminho não é uma linha reta.
Roger Ribeiro
15 de janeiro 2013.