sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

O risco


Do nada, absolutamente... Apenas havia acordado. Isto posto, fez tudo o que um homem de meia idade faz, seguiu a risca o despertar: pólen, laranja, mel e café. O céu? Bem... nada de estranho, azul com aquele azul que só mesmo a Baia de Todos os Santos sabe doar no verão, não que ache este azul o mais azul dos azuis, não, ainda prefiro o azul do outono! Mas nada mudará o presente por esta opção.

Até então tudo parecia estar seguindo a sua perfeita ordem nada havia de diferente, nem mais nem menos, tudo continuava como Arquimedes planejara, ou pelo menos até apurar mais os sentidos. Talvez um despertar um pouco mais despertado quando os sensos começam a fazer a varredura de reconhecimento: cheiro, temperatura, som, brisa, sombras, enfim tudo que nos traz um bem estar de acolhimento. Passou por todas as etapas e ao final chegou a uma conclusão um tanto quanto desconcertante: tudo lhe era muito natural, porém não reconhecia ser exatamente aquele local como o seu, apesar da extrema familiaridade.

Passou a vista, agora com mais cuidado, mais detalhadamente, reconheceu cada milímetro daquelas pilastras arranhadas, o cheiro da cebola no refogar do restaurante ao lado, as cestas com legumes, frutas, hortaliças, as moças apressadas falando alto perguntavam pelo charque, queijo, abobrinha, sabão, etc, etc. Creio que falam alto, pois assim tudo se resolve mais rápido - nunca entendi o que volume tem a ver com o tempo necessário para as coisas?

Bom, mas assim era. Começou a desconfiar que aquela manhã apresentava-se frenética demais para quem pudesse estar despertando vagarosamente em um quarto. Só não entendia porque conseguia por segundos antever os fatos, por ínfimos segundos sabia que aquele ladrilho à esquerda estava riscado com o batom do seu sorriso, isto antes dos olhos verem a tatuagem do ladrilho.

Tudo estava lá, e esta sensação era milenar: o restaurante, o mercadinho e entre estes, esgueirando-se como uma sombra o local onde, sabia nunca estivera, mas vivenciou, ou melhor, criou tanto e tantas histórias se desdobraram... Não podia ser! Afinal quando começou este filme?

- Bom dia a todos!

Entrou no ambiente, suado e segurando a cabeça debaixo do braço.

- Bom dia! (respondeu. Esfregou os olhos, se perguntou: respondi a quem? Por quê?).

Pessoas chegavam e interagiam com normalidade enquanto de forma lenta e harmônica iam derretendo e deixando seus rastros coloridos pelo chão. Para estas pessoas, esteve sempre ali, afinal dirigiam-lhe o olhar, perguntavam-lhe coisas, respondiam, diziam terem pesquisado após os últimos encontros. Meteu a mão no estomago e o desvirou, pediu pela primeira vez a um ser, supostamente superior, que zelasse por sua sanidade, queria também poder desmanchar seu ser com naturalidade.

O barulho da rua era baixo, porém intenso, pássaros que passavam em rasantes berrando coisas incompreensíveis, homens fortes carregando engradados, homens fracos carregando engradados, homens inchados pelos muitos engradados, homens engarrafados, lentos, suados, de olhar eternizado em nada, evaporado. As mesmas mulheres que derretiam enquanto seus cabelos cresciam, passavam de um lado para o outro carregando suas especiarias, os alimentos, os ingredientes que ocupariam seu dia. Transitavam quase que automaticamente, se falavam prosaicamente, nada havia para emoção, mesmo que mínima. Eram apenas braços, pernas, cebolas, alhos, barrigas, vestidos caseiros velhos. Parecia que a vida estava resolvida, estavam sempre sobre a ponte.

Do seu estado de incredulidade do estar, permitiu-se pensar que aquelas senhoras, cheias de responsabilidades para alimentar, não olhavam que as águas continuavam a passar perenemente por baixo dos seus pés. Não se permitiam refrescar seus finos, quase cristalinos pés, nas águas que correm com a calma de quem viverá todos os estados físicos possíveis. Balançou a cabeça se recriminando, quem achava que era para poder julgar?

Era um quebra-cabeça, que se montava todo dia, por vezes uma peça se perdia, mas não era de preocupar, logo aquele espaço irregular seria preenchido e tudo continuaria a transitar entre os braços que carregavam os engradados de sonhos e as mãos firmes que levavam em suas sacolas a fome do mundo.

Pediu algo, encheu o copo e bebeu o líquido com ternura, era ainda o meio da manhã, mas o calor já era intenso, o líquido gelado dava uma sensação agradável, tirava-lhe do universo mental e o remetia à oralidade. Falava e agitava-se se achando plenamente acolhido. Ali, naquele momento, nada de mal o atingia era como se estivesse, enfim, “vestido com as roupas e as armas de Jorge”.

- Tô te falando? Sim, pode pesquisar... aposto o que você quiser...!

Esta era uma fala clássica, pelo menos de meia em meia hora ela se impunha... A única coisa estranha mesmo era aquela impressão, ou melhor, aquela certeza de que não podia estar ali.

Levantou-se lentamente, retirou algo de dentro da pele, avistou cuidadosamente ao entorno, olhou com ternura o pão fresco no balaio sorriu e sumiu.

Nunca mais soube exatamente o que era: Criador ou criatura? Por vezes era os dedos que digitavam as palavras, por vezes era as palavras que inventavam os dedos de um ser que, aos poucos, ia deixando os rastros do seu derretimento nos papeis.

Ou seria o papel o responsável por forjar aquela existência?

Na maioria das vezes as perguntas não procuram respostas, afinal o menor caminho não é uma linha reta.

Roger Ribeiro
 
15 de janeiro 2013.