“Eu
faço samba e amor
até
mais tarde,
E
tenho muito mais
o que
fazer*”
- Vamos ter,
cada um de nós, uma dessas e viajar! Primeiro o Brasil, depois a América Latina.
- Certo, mas eu
fico com a preta e você com a dourada.
E a partir daí,
olhando aquelas duas motos 750cc Four, que ficavam sempre estacionadas na
calçada da mureta próximo ao Farol da Barra, onde até pouco tempo esse grupo de
motoqueiros – como se dizia antes da era dos chatos de plantão, hoje são
motoclistas (que nome medonho) – se reuniam. Passavam o resto da tarde viajando
nos detalhes da viagem, corria os anos finais da década de 1970.
Eram dois jovens
de seus dezessete anos, um deles com seu cabelo escovinha, alto e cara de bom
moço, o outro de cabelos compridos e desgrenhados, mas nada diferentes para uma
época em que não se ficava por aí dizendo que o rock morreu, pelo contrário.
O tempo foi
girando, a vida acontecendo, mas a idéia das 750cc Four, nunca era superada,
novas motos foram lançadas, novas marcas chegaram ao país, algumas até lhes
pertenceram, mas não as setecentos e cinqüenta do sonho. No rolar do tempo o
objeto de desejo foi ficando cada vez mais raro, até tornar-se peça de
colecionador, mas a quimera não embolorava, e cada vez que se encontravam, e
muito se encontravam, a velha viagem vinha à tona. O Brasil, a América Latina,
o vento, as mulheres (claro), a aventura.
Os anos oitenta
chegaram com um turbilhão de loucuras, turma, meninas, Porto da Barra, Jazz e
rock. Viagens, muitas viagens, Minas Gerais e suas cachoeiras no meio do ano...
- Mas o que
vamos levar para comer lá na Cachoeira das Andorinhas?
- Ora, não se
preocupe com isso, comeremos amoras silvestres, lindas bem vermelhinhas...
E lá íamos nós,
como dizia a frase de efeito importada da década anterior – “vamos com fé e
filosofia”, para os que não viveram o lema, esta fé não diz respeito à
religião, mas sim a certeza, segurança e vontade. No verão praias do Nordeste,
ou simplesmente aguardar a horda de malucos que desciam pela BR-116,
Rio-Salvador, para as famosas temporadas de verão da cidade. Férias, praias,
shows, festas!
- “"Ascende" um,
Paulo Daniel!”
Lema que virou
hino entre nós vinda diretamente do Recife! Era tudo festa e loucura, mas havia
sempre a vontade de ir mais, sempre mais, e mais naquele momento significava
assumir o sofrimento de 36 horas a bordo da Viação São Geraldo com destino a
cidade onde tudo acontecia, a Babilônia. Pouco dinheiro no bolso e o mundo, ou
pelo menos o mapa-múndi, na cabeça. Bom, daí em diante a dupla virou trio, depois
quarteto, mas mesmo dentro de toda a multidão que poderia está envolvida, lá continuava
estacionado no primeiro plano do universo dos sonhos duas 750cc Four, uma preta
a outra dourada.
Na terra dos
Mutantes, o que antes eram somatórias de informações, foram lapidando-se e
transformando-se em conhecimento, desenvolveu-se nestes tempos a arte da
dialética, da reflexão, da impossibilidade de aceitar o é pelo simples fato de ser.
Por quê? Prá quê? E Prá quem? Eram, portanto questionamentos contínuos, e entre
um reggae e um rock aqueles dois baianos foram se entranhando no universo do
Lira Paulistano, de Itamar Assumpção, do B’rock 80s, que dava seus passinhos,
dos Wailers, e de tantas coisas que preenchiam aquela imensa Bahia, onde água
só de cima pra baixo, e que encontrava porto seguro, ou porta destrancada, só na
Itapicurú 333, apartamento 122, Perdizes- São Paulo.
- Cara aqui você
precisa cortar os cabelos ou não vai arranjar emprego.
O cabelo então
foi cortado, revoltou-se de tal maneira, os cabelos, que se vingou caindo
praticamente todo, mas não teria importância, assim não atrapalharia a vista
quando estivesse “comendo asfalto” sobre a 750cc Four preta.
São
Paulo-Rio-Trancoso-Salvador, este rito era mágico e esperado minuto a minuto
enquanto o semestre de estudos e trabalho se impunha. Neste tempo o cabelo do
antes “bom menino” de corte escovinha foi crescendo, junto com uma imensa
sabedoria, e uma meta em relação ao mundo. Meta muitas vezes não compreendida
por todos, diga-se de passagem, mas realizada com destreza.
Do antes
cabeludo que atraia malucos, vieram filhos, mudanças, transformações e
transformações. Do antes “escovinha”, agora cabeludo, veio o mais profundo amor
pelas coisas mais simples da vida – o mar e a alegria; a festa.
- Poxa não tem
nada prá fazer.
- Então vamos
fazer uma festa! Chama a banda dos meninos, e vamos nessa... Colé Roginho.
Vamos nessa.
Esta frase ecoa...
Mas nesta noite
chuvosa de julho de 2014, na cidade do Salvador onde tudo teve início, olhei no
fundo do sonho e só há uma moto 750cc Four estacionada. A preta.
- Seco filho da
puta, não foi isso que havíamos combinado.
Roger Ribeiro
08 de julho
2014.
*Samba e Amor - Chico Buarque