segunda-feira, 14 de julho de 2014

750cc Four


 

 

“Eu faço samba e amor

até mais tarde,

E tenho muito mais

o que fazer*”

 

- Vamos ter, cada um de nós, uma dessas e viajar! Primeiro o Brasil, depois a América Latina.

- Certo, mas eu fico com a preta e você com a dourada.

 
E a partir daí, olhando aquelas duas motos 750cc Four, que ficavam sempre estacionadas na calçada da mureta próximo ao Farol da Barra, onde até pouco tempo esse grupo de motoqueiros – como se dizia antes da era dos chatos de plantão, hoje são motoclistas (que nome medonho) – se reuniam. Passavam o resto da tarde viajando nos detalhes da viagem, corria os anos finais da década de 1970.
 

Eram dois jovens de seus dezessete anos, um deles com seu cabelo escovinha, alto e cara de bom moço, o outro de cabelos compridos e desgrenhados, mas nada diferentes para uma época em que não se ficava por aí dizendo que o rock morreu, pelo contrário.


O tempo foi girando, a vida acontecendo, mas a idéia das 750cc Four, nunca era superada, novas motos foram lançadas, novas marcas chegaram ao país, algumas até lhes pertenceram, mas não as setecentos e cinqüenta do sonho. No rolar do tempo o objeto de desejo foi ficando cada vez mais raro, até tornar-se peça de colecionador, mas a quimera não embolorava, e cada vez que se encontravam, e muito se encontravam, a velha viagem vinha à tona. O Brasil, a América Latina, o vento, as mulheres (claro), a aventura.
 

Os anos oitenta chegaram com um turbilhão de loucuras, turma, meninas, Porto da Barra, Jazz e rock. Viagens, muitas viagens, Minas Gerais e suas cachoeiras no meio do ano...


- Mas o que vamos levar para comer lá na Cachoeira das Andorinhas?

- Ora, não se preocupe com isso, comeremos amoras silvestres, lindas bem vermelhinhas...


E lá íamos nós, como dizia a frase de efeito importada da década anterior – “vamos com fé e filosofia”, para os que não viveram o lema, esta fé não diz respeito à religião, mas sim a certeza, segurança e vontade. No verão praias do Nordeste, ou simplesmente aguardar a horda de malucos que desciam pela BR-116, Rio-Salvador, para as famosas temporadas de verão da cidade. Férias, praias, shows, festas!


- “"Ascende" um, Paulo Daniel!”


Lema que virou hino entre nós vinda diretamente do Recife! Era tudo festa e loucura, mas havia sempre a vontade de ir mais, sempre mais, e mais naquele momento significava assumir o sofrimento de 36 horas a bordo da Viação São Geraldo com destino a cidade onde tudo acontecia, a Babilônia. Pouco dinheiro no bolso e o mundo, ou pelo menos o mapa-múndi, na cabeça. Bom, daí em diante a dupla virou trio, depois quarteto, mas mesmo dentro de toda a multidão que poderia está envolvida, lá continuava estacionado no primeiro plano do universo dos sonhos duas 750cc Four, uma preta a outra dourada.


Na terra dos Mutantes, o que antes eram somatórias de informações, foram lapidando-se e transformando-se em conhecimento, desenvolveu-se nestes tempos a arte da dialética, da reflexão, da impossibilidade de aceitar o é pelo simples fato de ser. Por quê? Prá quê? E Prá quem? Eram, portanto questionamentos contínuos, e entre um reggae e um rock aqueles dois baianos foram se entranhando no universo do Lira Paulistano, de Itamar Assumpção, do B’rock 80s, que dava seus passinhos, dos Wailers, e de tantas coisas que preenchiam aquela imensa Bahia, onde água só de cima pra baixo, e que encontrava porto seguro, ou porta destrancada, só na Itapicurú 333, apartamento 122, Perdizes- São Paulo.


- Cara aqui você precisa cortar os cabelos ou não vai arranjar emprego.


O cabelo então foi cortado, revoltou-se de tal maneira, os cabelos, que se vingou caindo praticamente todo, mas não teria importância, assim não atrapalharia a vista quando estivesse “comendo asfalto” sobre a 750cc Four preta.
 

São Paulo-Rio-Trancoso-Salvador, este rito era mágico e esperado minuto a minuto enquanto o semestre de estudos e trabalho se impunha. Neste tempo o cabelo do antes “bom menino” de corte escovinha foi crescendo, junto com uma imensa sabedoria, e uma meta em relação ao mundo. Meta muitas vezes não compreendida por todos, diga-se de passagem, mas realizada com destreza.

Do antes cabeludo que atraia malucos, vieram filhos, mudanças, transformações e transformações. Do antes “escovinha”, agora cabeludo, veio o mais profundo amor pelas coisas mais simples da vida – o mar e a alegria; a festa.


- Poxa não tem nada prá fazer.


- Então vamos fazer uma festa! Chama a banda dos meninos, e vamos nessa... Colé Roginho. Vamos nessa.


Esta frase ecoa...
 

Mas nesta noite chuvosa de julho de 2014, na cidade do Salvador onde tudo teve início, olhei no fundo do sonho e só há uma moto 750cc Four estacionada. A preta.


- Seco filho da puta, não foi isso que havíamos combinado.


Roger Ribeiro

08 de julho 2014.
*Samba e Amor - Chico Buarque

 

 

segunda-feira, 5 de maio de 2014

A luz turva


O meu processo criativo é violento, agressivo, aguerrido. Fragmentos de ações que não me pertencem, sei lá de onde vêem? São geradas em mim, se esbarram nos limites sólidos, em mim, dentro de mim mesmo. O eu e um monte de gentes, atos e ações que possuem urgência em sair, de se fazer existir.


Batem-se nas paredes das minhas idéias, no oco onde repousa pulsante meu cérebro, descem para o peito, braços, pernas, pés e sobem em velocidade hiper máxima espatifando-se ao norte da minha cabeça. Precisam se desvencilhar de mim, forçam, comprimem, é o sobre natural; doi.
 

Afasto-me nesses momentos de todos; é perigoso. Até onde a radiação desta dor atinge o externo? Não sei, só sei ser necessário proteger o ao redor, não posso expor quem nada sabe sobre a natureza da dor, a cor de um parto, que só a natureza em seu estado de urgência exige, conhece, reconhece, compreende e perdoa. Mesmo que, assim como a explosão da ação, a cor da dor se impõe.


Por vezes, a depender da extensão e das cores do pensamento, me permito reajustar meu feixe celular à forma da criação, um re-moldurar uma moldura sem molde, disforme, etérea como uma canção:

“Eu uso óculos escuros

para as minhas lágrimas esconder

quando você vem para o meu lado

as lágrimas começam a correr (...)”*

 
Mas, nem sempre é possível. Por vezes, e muitas vezes, ela vem retilínea, altiva, com seus longos braços e suas enormes mãos e devassa, invade pelos poros, pelos olhos, boca, nariz, orelha, usa os fios dos cabelos como condutores ao núcleo, e de lá extrai, sorrindo, sempre sorrindo, a mais sólida e precisa idéia.

 
De agora em diante, ainda úmida do parto, a narrativa me acompanha, anda ao meu lado, senta na minha mesa, na cadeira à minha frente. Da mesma forma que estou naquele enorme salão iluminado, no térreo de um enorme casarão no Santo Antônio Além do Carmo de onde avisto o forte, onde tantos foram aprisionados, ao meu lado, a mais nova história, idéia gestada, conto sem fada, sólido e liberta de todas as suas amarras, travas, grilhões; se faz fato.

 
- Pelo que pode ser visto, frente às últimas, notícias, uma nova idéia veio ao mundo em parto não anunciado, não acompanhado, dizem – expunha esganiçado o rádio no alto da estante, ao lado da moringa de água-ardente – que quando a assistência chegou já o encontrara sentado ao lado da cabeça genitora ao meio fio, explicava que, apesar daquele crânio o ter gestado, não lhe pertencia.

 
Aliás, a nada sólido podia pertencer a cor da idéia que materializa uma narrativa que se inicia, porém sem corpo, sem longilíneos braços, posto que ainda não possuir meio, sem fim. Apenas início, indício; quem sabe?


Enfim, à porta, bati com delicadeza, você com seu vestido curto e vermelho, com os lindos pés na cerâmica fria, abriu-a para mim. Estendi a flor amarela que tinha em mãos. Você brilhou e sorriu, em segundos, tudo sabias.


Roger Ribeiro

05 de maio de 2014

* Vampiro – Jorge Mautner

terça-feira, 25 de março de 2014

O Portal Verde


 

Treinava para atingir a velocidade do som, já havia conseguido equiparar-se às ondas produzidas por João Bosco e estava a um passo de alcançar o Jorge Bem, mas seu alvo era o Ramones, precisava chegar à velocidade destes magrelos novayorquinos, enquanto isso não ocorresse iria suar a camisa e ralar a chinela pra cima e pra baixo.

Da última vez que o encontrei lá no Restaurante Caxixi, no Largo do Dois de Julho, entre uma geladinha e um tira-gosto, iam chegando amigos e a conversa ia ganhando fôlego, dizia, sem bravata, mas com a certeza dos repentistas de feira popular, que após a barreira do som, chegaria à da luz... Eis o seu sonho desde menino, correr pela orla de Salvador na velocidade das estrelas!

 
- Conheço desde menino, sempre pertenceu ao grupo dos aluados, em determinado período por muito pouco não se transferiu para o dos desatinados, mas aí sabe lá como achou em alguma viela dessas um tino perdido...

- Ôh... Kleber, não fala assim, além disso, a Majuí nem está aqui pra se defender... Ficar agora conhecida como o tino perdido? Ela não merece isso.
 

Nossa! Essa conversa vai longe, aliás, isso é todo sábado fim da manhã, é melhor mudar o rumo da prosa, apesar de que, tenho de ser justo: o Kleber tem certa razão.

Domingo cinco e quinze da manhã, o dia amanhece vagarosamente azul, ainda se avista as criaturas da noite dobrando apressadamente o horizonte, do outro lado um vento leve e muito fresco sopra como se tivesse viajado meio globo para trazer partículas da aurora boreal para esta cidade, afinal tudo e todos, forçados ou por apetite de dragões, nos mais variados tempos, por estas areias aportaram. Continuam aportando.

Desta maneira avistei-o de longe, se preparava para o treino, vestia cada peça da roupa sobre o corpo que não existia com um ritual quase messiânico. Majuí ao seu lado abria com o olhar verde escuro uma rota entrecortando o ar, o tempo, o calor, toda e qualquer partícula de energia, emoção, intenção ou ansiedade. Nada poderia pairar na raia a ser percorrida, qualquer choque com qualquer partícula poderia provocar uma explosão sem precedente. O caminho era reto, o verde olhar já o traçara, mas o retorno era o que mais havia de incerto.

Agachou, colocou a palma da mão esquerda no cimento da calcada, esticou a perna direita, olhou com extrema ternura a sua menina, deixou seu enorme cabelo translúcido cair-lhe pelos ombros e esperou o sinal. Majuí deu-lhe:

A paz
Invadiu o meu coração
De repente, me encheu de paz
Como se o vento de um tufão
Arrancasse meus pés do chão
Onde eu já não me enterro mais

Partiu em disparada... Abria-se um vácuo e uma total ausência de sentidos se fazia. Ultrapassou todos os limites, passou pelos Ramones, pelo Steve Vai, Jimmy Page e até mesmo pela Baby Consuelo cantando chorinho. Uma explosão... A barreira da luz foi ultrapassada. Neste momento o universo tornou-se lento, tudo estava como em câmera lenta!

Majuí, com seu sorriso prata, flutuava encantada por entre os portais desta cidadela para onde tudo converge, de frente para o mar percebeu-se entre dois morros verdes que avançavam como brigues para o horizonte, sobre o primeiro a luz da racionalidade humana, ali repousava o incansável Farol guiando a nau da civilização, no outro pairava um dos signos do intocável, do imponderável, a força que tudo é, mas que não se explica, guiando a nau da civilidade. Entre estes Majuí etérea, continuava abrindo os caminhos para seu aluado lumiar seu sonho de menino.      


A paz
Fez o mar da revolução
Invadir meu destino; a paz
Como aquela grande explosão
Uma bomba sobre o Japão
Fez nascer o Japão da paz
Eu pensei em mim
Eu pensei em ti
Eu chorei por nós
Que contradição
Só a guerra faz
Nosso amor em paz
Eu vim (...)*
 

Roger Ribeiro

25 de Março de 2014

* A Paz - Gilberto Gil & João Donato



segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

O trilho


 

 

 

“Eu vi um menino correndo
eu vi o tempo brincando ao redor
do caminho daquele menino”*

 

 

Sim o sol pesava-lhe sobre os ombros, olhava felinamente em busca de um refúgio, nada. Ergueu o braço em busca do tempo, o pulso não lhe deu a hora, no lugar dos ponteiros, da circunferência e da pulseira, havia um vão, sua mão esquerda pairava no ar, por entre o antebraço e a mão corria livremente o ar quente do verão, mas a mão continuava a obedecer-lhe com perfeição e isso lhe ficou bem claro no momento em que se percebeu um náufrago salvo pelo vento que não move moinho que, como a lâmina fria, chegava-lhe aos lábios como o cálido sussurro da madrugada.


Alguns em movimento se aproximavam:

 
- Desculpe-me, mas poderia me informar as horas?

- Claro! São doze horas de intensa claridade e ar quente, para em seguida vir doze horas de escuridão e ar tênue.

- Mas, em que momento deste tempo estamos?

- Estamos dentro do tempo presente, mas se apresse, pois logo podes ser aprisionado pelo bloco de tempo passado.
 

Partiram todos. Olhando ao redor a única coisa que avistou foi o Forte do Farol da Barra e este continuava imponente apesar da força para manter-se impávido, visto que o ar quente que soprava ao seu encontro deixava-lhe um tanto quanto maleável, por isso necessitava agarrar-se ao solo de maneira firme. Segurava-se na força de séculos que se escondiam por debaixo de suas rochosas paredes.
 

Percebeu que ao Farol também faltava um dos anéis de sua torre de luz, ali também havia um vão onde o vento quente passava silvando em direção as pedras do Porto da Barra. Aquele vão roubava-lhe a idéia de solidez, seria possível o girar as luzes de indicação sem parte de sua formação? Ficaria então as embarcações a deriva?
 

Uma embarcação a deriva é uma nave sem tempo. Ela pode pertencer a qualquer tempo, posto que não se dirige a local algum. Pode ter saído de Palos no século XV, mas quando chegou à futura América? Aliás, como pode ter chegado à América se esta não existia enquanto América? E o que existia? Em que hiato de tempo vivia? Teriam pulsos?
 

Olhou novamente os não pulsos apenas na esperança de constatar que perdera o tempo, aliás, perdera de tal forma que o vão aberto antes do tempo da mão permanecia intacto em meio à intensa temperatura que a esta altura beirava a algum grau que no momento não lhe vinha à mente, perdera o termômetro, a bússola, o mapa, a régua, perdera em algum lugar próximo ao vento, creio que ficou na caixa que esquecera ao sair, mas quando mesmo saíra? Será que saíra mesmo ou o externo é lhe foi ao encontro?
 

- Perdido meu jovem?
 

Olhou assustado e sentiu aquela não mão que lhe pousava sobre o ombro, onde antes lhe pesava a temperatura, e um rosto desconhecido que queria uma informação que não sabia dizer.


- Perdido, eu! Não. Só se perde quem vai a algum local. Não é o meu caso, aliás faço parte de um cenário onde um local me queria, sendo assim, não posso perder-me. E a senhora, sabes para onde se dirige?
 

- Sempre pra frente meu filho, sempre para frente, mesmo que saibas que darás a volta na circunferência. Mas o importante é a meta que se impões no espaço existente entre as duas paralelas da visão, vês?


- Não, há muito misturei o senso de visão, perdi as paralelas, desde então tudo se tornou um tanto quanto nebuloso, meio nublado, chuvoso, turvado como quando tentamos sentir o sorriso que não chega dos seus para os meus lábios, quando só reflito a sobra do trem que sempre parte dos meus pés ao infinito.
 

Levantou por mais uma vez o não pulso, e mais uma vez constatou que as horas o havia abandonado, já não há tempo.


Despediu-se de sua mais nova amiga entrou no trem, a mesma locomotiva que sempre estava partido, olhou a torre da estação e lá não havia o ponteiro, não havia o tempo. Tudo o mais ficou no exato momento em que os pingos se lançaram da nuvem e a eternidade até que molhem a terra.


Roger Ribeiro

24 de fevereiro de 2014


* Força estranha – C. Veloso