terça-feira, 18 de outubro de 2011

O vento em seus cabelos


Para Dona Yara.




Olho os seus cabelos de longe e imediatamente me vem a imagem do Everest, longos... esvoaçam levemente das pontas castanhas claras subindo por suas cerdas ao cume da cabeça, desnudando um branco alvo e brilhante que orna de forma quase mítica os sulcos do rosto que traduz a sabedoria do sobreviver.

Encantei-me ao perceber que não mais porás tintas nos cabelos, na verdade a idéia que esta nova realidade me passou é que não podemos passar tinta nos caminhos, nem os percorridos muito menos os por percorrer. Senti-me perfeitamente bem, feliz ao constatar que tantos anos se passaram e tanto ainda tens a me ensinar.

Como sempre, um ensinamento de quem sabe por onde navega a possibilidade do conhecimento, sabe que nem sempre as palavras são as transmissoras da sabedoria, às vezes é difícil para quem não o conheceu entender como um andarilho urbano podia dizer algo tão simples que, para muitos hoje, pode parecer banal, piegas até: “gentileza gera gentileza”, mas, para quem conheceu o olhar e o desprendimento daquele ser, sabe o quanto esta frase se insere feito punhal nas ruas por onde andou.

Mais uma vez não foi a palavra, desta vez foi a simples visão de como tão miúda, tão pequena tornastes a mais imponente muralha do nosso planeta, o saber que se levanta da terra rumo ao céu.

A sabedoria acumulada e tão gentilmente partilhada transformou-te em um impávido e absoluto habitante da Terra. Dos pequeninos pés, da cor do recôncavo, até a neve dos cabelos que tornam o ar rarefeito, as idéias leves, tão leves e fluidas que podem penetrar nos castelos mais sombrios, nos corações mais petrificados arejando as mentes mais conturbadas.

O vento apenas coopera na expansão desta visão, a neve do topo de sua cabeça não gera frieza, muito pelo contrário, produz à possibilidade de contração, de condensação, o vento há de, ao passar pelos fios dos seus cabelos, espalhar sobre a forma de chuva a possibilidade de diluir as verdades, os dogmas, a ilusão de que alguém, além de você mesmo, acredita nos seus moinhos, seja você quem for.

Aquele mínimo corpo, gigantesco Everest, sabe que do seu topo as civilizações tornam-se apenas e somente imensos formigueiros, indistintos em seus detalhes, máximos em suas possibilidades de arregimentadas cruzarem florestas e desertos.

Sentado com minhas velhas botas pretas, mal engraxadas, na bela (e espero eterna) balaustrada do Porto da Barra que aponta para a Ilha de Itaparica, neste fim de tarde roxo-azulado, todas estas imagens e aprendizados me invadiram ao ver um objeto, que não quis identificar, plainando sobre o mar da Baia de Todos os Santos, entre o meu olhar postado sobre a branca balaustrada e a ponta da Pirâmide da Eubiose de Mar Grande, soou pleno nos meus ouvidos:

“Minha senhora
Onde é que você mora
Em que parte desse mundo
Em que cidade escondida
Dizei-me que sem demora
Lá também quero morar (...)”*


Assim, assisti à noite cair em paz, enegrecendo a linda Baia. Saí distraidamente sorrindo, lembrando de quanta, ao certo, felicidade te traria, minha muralha do Everest, saber que seus cabelos brancos apontam para um horizonte aonde não há tinta que encubra as cores da vida.

Nem que para isso se leve uma vida para saber.

Roger Ribeiro
18 de outubro 2011

*Minha Senhora – Gilberto Gil

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Uno? Não mais


Andava com a mente um tanto quanto turva. Os fatos não o ajudavam e não conseguia entender como havia entrado naquela espiral de turbulências que afetaram seu estado de espírito de forma abrupta e covarde.

Em todos os locais que freqüentava era sempre tido como alguém de muito equilíbrio e de um senso de justiça que o fazia de referência, jamais imaginou poder ser vítima de uma trama cósmica, ou seria cármica? Mas de uma coisa tinha absoluta certeza, tratava-se de algo de outro planeta, outra galáxia, outro mundo!

Agora aquele ser lúcido vagava como uma alma penada, a mente sempre em desalinho, para concentrar-se nos afazeres do cotidiano era um exercício hercúleo, ao fim do dia estava exausto. Sua aparência antes sempre muito bem cuidada cedeu lugar a um flagelo humano, estava praticamente irreconhecível, todo o seu ciclo estava apreensivo com seu estado e a pergunta rondava a cabeça de todos: o que houve? Que raios aconteceu com ele? Porém, resposta não havia.

Às vezes passava o dia vagando, andava a beira mar do Farol da Barra ao Farol de Itapoã, outras vezes sentava-se em um banco da Praça da Avenida Centenário e passava o dia olhando fixamente para um ponto qualquer. Nada percebia, nada o afetava, havia perdido qualquer contato com o seu ser sólido, vivia em um mundo paralelo, onde apenas as sensações existiam.

Disso tudo fiquei sabendo apenas depois, pois até aquele fim de tarde de domingo, nunca o havia visto. Mas o acaso ou os predeterminantes (depende de sua leitura sobre os fenômenos da vida humana), fez a diferença e colocou-nos um no caminho do outro.

Andava eu um tanto quanto distraído e apressado, estava meio atrasado para o meu encontro musical semanal com os amigos, assoviava o chorinho “André de Sapato Novo”, que iria sugerir para colocarmos no repertório, quando um bela moça sentada na grama tocando violão tomou toda a minha atenção, concentrei e tornei-me só ouvidos para captar o que ela tocava. A concentração era tal que nada mais percebia, apenas ouvia aquela voz miúda, porém bem afinadinha, alguns passos mais e consegui a audição total:

“Casa verde, portão aberto
Vejo à frente o deserto
Até o circo chegar
Pai, mãe, eu vou partir
Tem um circo em frente a casa
Pai, mãe, lá fora o sol é radiante
e meu vestido esvoaçante
tem um corte
Um grande beijo
Um abraço forte
Eu vejo o sol pela janela”*

Era uma bela moça, cantando uma bela canção, e com uma emoção, um sentimento tão límpido, que reduzi a velocidade do passo para poder aproveitar o máximo daquela situação. Foi exatamente aí que ocorreu:

Pruft ...cabrummm, lona, lá estava eu, violão e tudo mais esborrachado no chão, e pior entrelaçado com uma ser que nunca havia visto em minha vida. Após tomar ciência de que havia pisado e tropeçado naquele ser que até aquele momento julgava estar ali em paz e em segurança, até que minha distração o fez, a ele e a mim, retornar abrupta e sem escala para o chão úmido da pista de caminhada da Praça.

- Ôh! Não olhas para onde anda? Ou não andas por onde olhas? Veja (mostrou-me a perna que sangrava, não muito, mas sangrava).

Sem graça olhei-o e... O que mais podia fazer? Levantei-me e pus-me a ajudá-lo a levantar.

- Vamos (falei), logo ali tem uma farmácia, vamos lá fazer um curativo.

- Não há curativo que estanque, que cure... Veja (apontou para as árvores), elas estão aqui faz tempo, já assistiram de tudo, me contaram coisas que jamais poderia imaginar, dores e alegrias, risos e choros. Não tem jeito amigo, não tem cura!

- Mas o que é isso?!Porque tanto niilismo? Veja, olhe ao redor! Veja aquela menina mesmo ali, tocando e cantando, apontei...Olhei...Olhei novamente e... Ué! Cadê ela?

- Ela quem? Ali não havia ninguém...

- Como não? Eu vi e ouvi. Aliás, por causa dela que esbarrei em você.

- Vamos pegue seus apetrechos, a noite vem chegando e o destino ainda está muito longe.

- Como assim? Que destino? Não estávamos indo juntos a lugar algum! Aliás, se não me falha a memória, eu não o conheço. Assim como podemos estar indo...

- Você realmente, continua o mesmo... Por isso me desprendi de sua pessoa...

-Hã? Mas, espera aí... Do que você está falando? Das duas uma, ou você é louco ou eu estou ficando louco.

Do nada vi o vulto da menina que cantava passando ao meu lado, olhei-a e ela me mandou um sorriso largo, lindo! Seu rosto inteiro sorria para mim...

- Veja! (virei rapidamente pra o meu novo amigo) Não falei que ela estava lá? Olhe... Ôxi, cadê você?

Olhei trezentos e sessentas graus e... Nada. Como podia? De repente senti um desconforto na perna e vi que ela sangrava (pouco, mas sangrava), olhei novamente o vulto da menina e ela também já não mais estava.

A noite havia caído definitivamente. Peguei minhas coisas e voltei a caminhar, agora sem pressa, a sensação no meu peito era que nunca mais seria uno. Neste momento percebi o meu novo amigo apoiado no meu ombro direito, e a menina cantora abraçou-se à minha cintura esquerda.

Voltei a crer na cura.

Roger Ribeiro
13 de outubro 2011.
*Circo - Ronei Jorge