quinta-feira, 14 de abril de 2011

Aff, eu devia ter ficado calado!



- Por favor, o senhor poderia falar mais baixo?

- Mas como assim?! Não vês que estou pregando a palavra do Senhor? Acaso é um destes hereges?

- Não meu senhor, sou apenas um trabalhador, retornando do serviço neste coletivo...

- Pois irmão! Não há hora melhor para que permitas que o Nosso Senhor se aloje em seu coração...

- Meu amigo, não tenho nada contra seu credo, apenas pedi para que falasse mais baixo, pois estás berrando no meu ouvido...

- Vejam vocês que absurdo! (apontando aos céus) Foi por pessoas assim que ele foi torturado, crucificado...

- Olha, sinceramente, prá mim chega! Você fica aqui berrando no ouvido de quem quiser, eu vou descer.

Pééééémmmmmmmmmmmm, puxou a cordinha e desceu no primeiro ponto.

Resolveu ir caminhando prá casa, ao todo seriam uns 8 a 10 quilômetros, seria bom para desopilar de um dia tenso no trabalho. Não conseguia tirar a idéia da cabeça de injustiça global sobre seus ombros, afinal como podia, um ser como ele, tão capaz, tão inteligente e responsável, ter que labutar dia-a-dia em algo tão indigno?! Ficar recebendo e cumprindo ordens ínfimas, que nada afetariam a humanidade, nada, nada que ultrapassasse as paredes sujas daquele escritório bolorento...

Parou em uma pastelaria.

- Por favor, um pastel de queijo.
- Só tem misto, pizza e carne.
- O de pizza tem presunto?
- Presunto, queijo, tomate e orégano.
- Hummm,
- Sim, quer do quê? A fila tá grande e o senhor esta ocupando espaço!
- O problema é que não como carne e...
- Então, vá procurar uma pastelaria natural e me deixe em paz!
- Você é um animal!
- E daí?! Você não come carne mesmo... vá...

Antes que o atendente complementasse a frase, o lado direito e esquerdo de seu rosto foi atropelado por braços portadores de fichas que aos berros tentavam se comunicar com o balconista!

- Uma esfirra, um de pizza, duas coxinhas...

Era um tumulto, foi assim que, posso dizer, foi praticamente expurgado do ambiente e exposto em seu limite vegetariano na calçada onde uma senhora esquálida olhava-o balançando negativamente a cabeça. Imaginou o que poderia se passar pela cabeça daquela senhora... Dirigiu-se a ela falando:

- Não precisa me julgar... Tome (entregou-lhe o dinheiro que antes tentava trocar pelo alimento), vá lá e compre a porcaria que quiseres.

- Obrigado senhor, que Deus o dê em dobro.

Pela calçada continuou seu percurso, até chegar a uma pequena praça que nunca havia observado existir. Ali se sentou e começou a refletir sobre os seus dias, sua existência e de como passou a vida inteira tentando ser uma pessoa boa e que ao final sempre ressoava a mesma classificação sobre si: - Um coitado.
- Coitado é a puta que pariu...!

Brandiu do nada, a todo o pulmão.

Uma senhora que passava carregando a sacola com pão e leite, levantou-lhe a vista e com um ar sério de repreensão acusou-o:

- Velho tarado, não se respeita? Aqui é um lugar decente!

Olhou ao redor e enrubesceu, realmente ali só haviam crianças brincando acompanhadas por suas mães ou babas. Ficou sem ação ao ter a certeza de que havia externado o que, por anos a fio, apenas passava em sua cabeça...

- Perdão gente! Não foi minha intenção... Eu juro!
- De boas intenções o inferno está cheio (censurou uma destas senhoras portadora de criança).

- Desculpem-me!

Retirou-se apressadamente, sem se dar conta de que havia esquecido a gravata e a pasta de trabalho sobre o banco da praça. Andava apressado assim como disse o poeta Paulo Leminski, como se sentisse alguma dor. Na verdade sentia, era uma dor profunda, muito funda que não tinha a coragem de atormentá-la. Por fim fatigado, pensou que não poderia chegar em casa ofegante daquela forma. Parou mais uma vez, desta vez em um boteco, destes de esquina e pediu uma cerveja bem gelada.

- Engraçado nunca o vi por aqui... (comentou uma jovem, morena, não diria atraente, mas pelo trajar, diria ser bem oferecida).

- É verdade, não costumo freqüentar este local, aliás, prá ser sincero, nunca o havia visto antes...

- Aqui é bom! A cerveja está sempre gelada e temos um cardápio especial que fica logo ali dentro daquela saleta atrás daquela cortina roxa... (falou isso a menos de 5 centímetros do seu rosto, piscou o olho e saiu, fazendo um andar que ... Bem não é preciso nem dizer que ninguém anda daquela forma).

- Humm... Eu heim; que dia! (falou para si mesmo).

Pagou a cerveja e terminou o percurso. Chegou ao prédio verdinho em que morava, respirou fundo para superar os três andares de escada, subiu, abriu a porta e... Lá estava ela, sua querida mulher, com ar de exausta após também um dia puxado de trabalho... Estava enfim salvo. Ela o olhou,olhou, mirou e disparou:

- Ôxeee, cadê a gravata?
- Hã...
- E sua pasta de trabalho? (aproximou-se e...) Mas que cheiro de perfume é esse? (apalpou-o cheirando-o e...) E cadê a sua carteira? Tá suado, cheirando perfume barato e cerveja...Olha...

- Amor não é nada disso... Foi um dia... Senta aqui que vou te contar...

- Contar coisa nenhuma... Bem que Creuzinha sempre me alertou... Velho tarado!

- eu?! Vocês é que vivem inventado coisas...

- Inventando?! Tá me chamando de mentirosa?... De mentirosa é...?!

Crashhh... foi-se a garrafa d’água, cabrumm (vaso), splasshhh... brawummmm, voou mais de metade da casa pela janela... E o grito ecoava sem parar...

- Mentirosa é? Seu velho tarado...

O vizinho aumentou o som para nada ouvir...

“Meu bem
Já não precisa
Falar comigo
Dengosa assim...”*


Roger Ribeiro
14 de abril de 2011
*gatinha manhosa – Erasmo Carlos