quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Pode acreditar



Nosso amor que não esqueço
E que teve seu começo
Numa festa de São João,
Morre hoje sem foguete
Sem retrato, sem bilhete
Sem luar e sem violão#

Foi de repente, assim... entre um segundo e outro fez PAC! E saiu, foi, vazou, tirou, deu no pé, retirou-se, disse adeus, tchau, té’mais, ou seja lá como queira. Só sei que quando ele notou já era tarde, ela já estava do outro lado da rua olhando para a cara dele e sorrindo, um sorriso largo. Virou-se e saiu andando.

Ele incrédulo se olhava sem acreditar, com um olhar de quem se pergunta: mas o que está acontecendo? Porque logo comigo? O que eu fiz de errado? Passaram-se longos segundos, tempo suficiente para ela distanciar-se. Enfim ele parou de querer entender e percebeu que tinha de ir buscá-la de volta, saiu meio atabalhoado, atravessou a rua sem olhar, por muito pouco não foi atropelado, chegou do outro lado da rua, subiu em um pequeno batente e conseguiu enxergá-la já ao longe. Acelerou o passo e rumou atrás dela.

Quando ela percebeu que estava sendo seguida, também apertou o passo, era uma perseguição voraz, quanto mais ele adiantava o passo mais ela punha velocidade no andar, de repente não mais andavam, corriam,foram para a beira do asfalto, pois na calçada havia muita gente, era estreita e, de espaço em espaço havia um coqueiro, um ambulante, buracos à granel, de todos os tamanhos e profundidade, e, quando não havia isso tudo, (é vergonhoso mas tenho de dizer), em pleno século vinte e um, havia carros parados sobre a calçada.

A mil, próximo à sarjeta corriam, ela na frente ele atrás, de repente ela entrou em um beco, ele teve dificuldades, pois passava muita gente e ele perdeu tempo, ela saiu do outro lado, ele chegou... Não sabia para que lado ela havia ido, perguntou a uma e a outro até que um senhor muito velho lhe disse:

- Elas sempre vão para a esquerda, não tem erro.

Saiu correndo pela esquerda e algum tempo depois conseguiu avistá-la novamente. Ela achando que havia se desvencilhado havia parado de correr, andava rápido, mas não corria. Ele aproveitou e foi correndo, se esgueirando para não ser visto e quando estava a poucos passos de pegá-la, tropeçou no buraco, saiu metros “catando ficha”, com o corpo todo dobrado para frente, caiu de cara no chão a centímetros do tacho de dendê da Baiana de Acarajé. Suspirou assustado, foi por pouco!

Ela percebeu a presença e novamente saiu a correr, entrava em loja, saía de loja, entrava em ruas, saía de ruas e ele atrás, não desgrudava, não conseguia alcançá-la, mas não a perdia. Ela entrou em uma roda de pessoas onde um pastor pregava o apocalipse, todos erguiam as mãos para o céu e gritavam freneticamente:

- aleluia, aleluia.

Ele passou direto, ela deu meia volta e saiu correndo na direção contrária, ele viu, retornou, se bateu no pastor, este caiu, os fiéis não gostaram saíram correndo atrás dele, um deu-lhe uma rasteira, caiu, pela segunda vez, foi chutado, não reagiu,tudo o que queria era levantar rápido para não perdê-la de vista.

Novamente em pé, ficou perdido, onde estaria ela? Suava muito, resolveu entrar no bar e pediu um refresco de maracujá. Estava quase desistindo da perseguição quando viu pelo espelho do fundo do bar, ela, do outro lado da rua encostada num poste olhando para ele e dando uma sonora gargalhada!

Não é possível, ele disse, ela só pode esta querendo provocar, saiu do bar correndo e esqueceu-se de pagar o refresco, o atendente gritou em vão, ele não ouvia nada, estava louco, cego, precisava retomá-la, isso não poderia ficar assim, estavam correndo já há horas e nada! Decidiu que seria agora; colocou todo o fôlego que ainda lhe restava e saiu a toda. Empurrava quem estivesse na frente, pulava coisas, derrubou o carrinho de caldo de cana, estava realmente decidido.

Era agora, enfim estava conseguindo, levantou o braço para pegá-la e... sentiu uma forte mão segurando-lhe o ombro e um cassetete apertando-lhe a garganta, era a polícia, atrás dela vinha, o pastor, o atendente do bar, o dono do caldo de cana, e uma porção de “peru-de-fora”, a dar palpite e opinião. Ele a viu se afastar.

Na delegacia, uma espera interminável, ele tentava explicar, ninguém lhe dava ouvidos, parecia que falava para a parede, enfim acompanhado por um guarda foi a um caixa eletrônico, retirou dinheiro, pagou o refresco, o prejuízo do caldo de cana, tomou dois cascudos por ter machucado o pastor, pediu desculpas a quem devia e a quem não devia e por fim, já noite alta, foi liberado.

Saiu desolado, não tinha mais esperança de recuperá-la, quando do nada, do outro lado da rua, lá estava ela, olhando para ele e sorrindo, virou-se e correu, ele atrás, chegaram então ao Porto da Barra, o céu já arroxeava para amanhecer e uma Lua Cheia enorme, se escondia por detrás da Ilha de Itaparica, ele a viu, pela última vez, a Lua a levou.

Desolado, sentou-se no meio-fio, deitou a cabeça sobre os braços e nada mais disse.

Ali estava um homem que daquele momento em diante teria de aprender a viver sem alma.

Roger Ribeiro
13 de outubro 2010.

#Nosso Amor – Noel Rosa

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Que papelão!


Era cedo o sol ainda estava frio e as sombras longas, mas para muitos o dia já estava a mil. Rapazes fortes se apossavam de pedaços de rua como se fossem realmente proprietários, só faltavam mostrar o carnê do IPTU para definitivamente comprovar que aquele minifúndio urbano lhes pertencia e para estacionar ali terias de desembolsar uma quantia, que a depender de sua cara, sua idade e, principalmente seu sexo, podia ter uma variação de mais de 1000%.

Outros já não tão fortes se esgueiravam ao largo para dar o bote em senhores e senhoras mais idosas que, em respeito ao ato cívico, não se permitiam ir à vontade e, exatamente seus requintes, eram o que estas “almas sebosas” visavam, não se refutando a derrubar, machucar pessoas de generosas idades para obter algo que brilhasse. O verdadeiro ouro dos tolos.

Também chegavam mulheres, principalmente elas, com camisas estampando rostos, siglas, números e o escambau... Traziam “malocados” em seus pertences pequenos papéis com os mesmos números fotos e mimos, que seriam distribuídos, jogados ao solo, levados pelo vento em uma perfeita demonstração de como podemos emporcalhar uma cidade em fração de minutos.

Incrível é que o mundo mudou, todos perceberam menos estes que fazem a “Grande Festa da Democracia”, como “berram” as manchetes dos jornais. Estes não perceberam, e do canto daquela calçada uma pergunta ecoa e não quer se calar:

- Será que estes malditos não percebem que ao fazer as funestas carreatas, que incomodam a todos, não estão irritando e afastando qualquer possibilidade de simpatia popular ao projeto, já que este parte do equívoco de que incomodar causando engarrafamentos, usando os jurássicos carros de som (me diga alguém consegue ouvir o que aqueles pagodes terríveis conseguem dizer?), faz alguém prestar atenção no número daquele infeliz que fica berrando naquele som de péssima qualidade, que passam por você ininterruptamente, enquanto tudo o que você quer é um pouco de paz e silêncio?!

Não! Mas eles não percebem... Não percebem nada e, ao não perceberem nada, se igualam em um espectro do que há de mais retrógado, mais atrasado.

Chamou-me atenção um louco urbano que gritava em pleno pulmão:

- Não! Não acreditem neles, só São Sebastião, sangrando pelas flechadas pode nos trazer a salvação, o seu sangue não é este papel que é derramado pelo chão!

Do outro lado da rua uma moça de uns vinte e poucos anos tocava um violão surrado ao lado de uma criança que deveria ter uns quatro anos no máximo, tocava e cantava para conseguir um dinheiro para tomar café da manhã. Estava feliz e quando uma senhora abaixou-se e deu-lhe uma nota, não vi de quanto, agradeceu com um grande sorriso e disse:

- eles não valem, nenhum deles vale, nenhuma canção.

Percebi que ela estava plenamente livre, sabia que aqueles motoqueiros das carreatas eram pagos, que aquelas “militantes panfletetes” eram remuneradas, que nada daquilo era real, para ela o real era seu violão, a canção e o pão com café que tomaria em breve com sua filha, estava feliz, já não fingia acreditar na “Farsa da Democracia”, preferia o sonho da vida real.

Chegamos a tal da zona, sim digo chegamos, pois era eu, meus sapatos e mais uma ruma de gente, era gente prá tudo que é lado, todos procuravam pela sua Zona, lembrei de tempos idos e de pessoas como Iolanda da Ondina, Martinha da Barra, lembrei do que se chamava de zona e por um estranho sentido, tive vergonha de perguntar onde era minha zona, parei e perguntei a uma pessoa de crachá: - por favor, onde fica esta urna? Sabia onde era minha zona e, sabia mais, sabia que ali é que não era.

Devidamente indicado engendrei por um estreito corredor com portas azuis de um lado e do outro e que não possuía ventilação alguma; era um calor daqueles que aos poucos vai minando qualquer possibilidade de bom humor.

Mas olhei para frente e havia apenas umas dez pessoas, ora com a votação eletrônica e, com todo mundo trazendo sua “cola” de representantes seria rápido. Mais um engano. Cada vez que parecia que iria entrar alguém de minha frente... pumba!

Chegava um sexagenário membro da “melhor idade”, lá vai ele entrar e nós... bem nós no calor, na fila, uma fila que começou a me lembrar o metrô de Salvador, ou seja ela estava lá, existia, mas ninguém nunca andou.

Tudo bem... vamos manter a calma, alguém gritou:

- Viva os verdes?

A resposta foi imediata:

- Marciano não cobra dízimo!

- Colé?! (Alguém gritou) vocês querem derrubar o que resta de mata, por isso estão afiando a Serra!

-Para com isso gente!

- Vamos fazer uma festa cívica civilizada!

- A luta continua Companheiros...

Ái..., esta doeu já esperei o grito de guerra dos anos setenta que, claro veio na tampa... três garotos no fim da fila em coro entoaram:

- Alho, alho, alho companheiro é o caralh...!

Xi... o clima pesou, veio a segurança, gente de tudo que é cor de crachá, queriam prender os meninos, “desacato ao ato cívico!”, meia fila não resistiu... a gargalhada foi geral... desacato a quê? Perguntou uma senhora que dizia ter oitenta anos... acho que foi namorada do Cavalheiro da Esperança, pois de sombrinha em riste dizia que só levariam os meninos dali por cima do seu cadáver! Êta terrinha de povo que cultua sua história! Gritou uma criatura sabe lá de onde...

– Viva Maria Quitéria!

Respondeu o outro a quatro pessoas de mim...

- Maria Quitéria coisa nenhuma sua ignorante; Viva Joana Angélica...

Resposta na lata:

- Vá se fod...

Vaias tempitóricas ...

E o calor? Se antes estava uns quarenta graus no maldito corredor agora estava oitenta! O velinho votou. Saiu... todos respiraram aliviadas e... Chegou uma grávida, e depois outra velhinha e chegou um sujeito chamado Raimundo vendendo picolé Capelinha, o segurança queria botar ele prá fora, ali não podia mercar nada, mas e os votos? Ora, ora tudo levava a crer que o pau que dava em Chico não dava em Francisco! Picolé não, mas voto, vaga na fila, santinhos, passe de Umbanda, fitinhas do Bomfim, tudo se vendia...

Aos trancos e barrancos chegou minha vez. Entrei olhei bem para aquela cabaninha de papelão e a única coisa que me veio à cabeça foram aquelas pessoas que eu passava todos os dias dormindo pela calçada na Avenida Sete de Setembro, a única coisa que eles possuíam era um papelão para se cobrir.

E ali estava eu, em frente ao meu país e a única coisa que ele tinha era um pedaço de papelão a cobrir os mesmos Brasis.

Roger Ribeiro
05 de outubro 2010.