sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O dia em que o Lá menor se apaixonou



Todos os dias, pouco importava se era início, meio ou fim de semana, podia também ser feriado pátrio ou religioso, era inabalável: entre quatro e meia e cinco horas, junto aos primeiros raios do sol, os meus sentidos despertavam ao som daquela melodia saída do piano de alguma daquelas dezenas de janelas. De onde será que vinha? Que mãos será que passeava tão delicadamente por aquelas teclas brancas e pretas?

Por várias vezes levantei e fui até a janela tentar decifrar esses enigmas. Procurava por luz acesa em alguma das janelas, mas nada! Ou não havia nenhuma ou algumas. Tentei apurar a audição a ponto de definir o nascedouro geográfico da melodia, nada! O som se propagava livremente naquelas quase sempre manhãs frescas de brisas leves. Às vezes imaginava um roteiro para cinema, essa era a única forma que encontrava para responder a todas aquelas perguntas.

Bolei de tudo, senhoras viúvas nuas desvairadas, enlouquecidas, jovens românticas sofrendo por perdas amorosas, meninas feias de áureas grandiosas, Jovens senhoras que tocavam para o corpo embalsamado do marido ou do filho no centro da sala... Em um ano criei mais argumentos e roteiros fílmicos do que toda a produção das companhias Atlântida e Vera Cruz somadas.

Porém, essa necessidade de definição só durou um ano, primeiro porque encontrei outro dilema para me preocupar, qual seja: numa dessas belas manhãs enquanto ouvia uma melodia triste, bem triste de Franz Liszt (sim passei a estudar música para reconhecer o que vinha do piano) e bolava mais um argumento, percebi que todas as histórias que criava sempre a protagonista era do gênero feminino, seja nova, madura ou velha, mas sempre era mulher e o piano sempre negro e opaco.

Fiquei efetivamente preocupado com isso, seria um sintoma de paranóia? Uma fixação materna, uma carência afetiva, uma patologia emocional, uma fixação na fase infantil? Eram perguntas e mais perguntas sem respostas, busquei ajuda, alistei-me no rol de pacientes de um psicólogo, fiquei um mês, percebi neste tempo que a psicologia é uma ciência lenta e cara, nestes trinta dias e quatro encontros o meu querido “médico de maluco”, não me disse nada e eu acumulei um novo problema: dívidas.

Larguei as consultas e resolvi que se havia vivido até aquele momento bem com minha fixação pelo sexo oposto, então continuaria assim, voltaria a ser um feliz sociopata romântico e não endividado. Foi difícil chegar a esse ponto, mas cheguei e percebi que tudo isso havia me desviado do melhor, ou seja, a ação de apenas me permitir embalar pela melodia matinal produzida pela busca incessante da carícia dos dedos nas teclas do piano e virse-versa. Mãos finas e femininas e piano negro opaco, claro.

Notei que ninguém nunca reclamou, apesar do horário, nunca ninguém gritou da janela: “para com essa zonada aí!”. Na verdade, creio que todos como eu, achavam-se privilegiados, afinal, em uma cidade como esta, com todas as cruezas das cidades grandes, com todo o corre-corre, o barulho, a sujeira, o mau-humor, os atrasos, trânsitos, incompreensões, enfim, com tudo o que compõe a vida urbana contemporânea, quantas pessoas têm o luxo de serem acordadas por uma suave e linda melodia?

Sim, era uma benção, por isso após passar pela paranóia de ter de explicar tudo, quando eu evoluí para minha condição de imagem e semelhança do bem e me deixei embriagar pela música, então meus dias passaram a ter sempre a perspectiva de serem maravilhosos.

Uma hora, sempre por uma hora, alguém, aquela mulher, presenteava a cidade com sua sonoridade. Passei a buscar variações, levantava e sentava no chão da cozinha, vestia uma bermuda e ia para a varanda, descia do prédio e ficava no meio da rua, subia ao último andar e, após longa negociação consegui fazer uma cópia da chave que me dava acesso ao teto onde fica o tanque d’água do prédio. Em cada lugar o som chegava diferente, mais grave, mais agudo, ecoando, reverberando, equilibrado...

Um dia fiquei parado no meio daquela imensa avenida ouvindo-a tocar e imaginei aquele som seguindo avenida afora, sem nada para detê-lo, desviar o seu caminho. Invadiu-me uma sensação de infinitude e liberdade, que jamais havia sentido.

Em uma manhã especial, quando o céu foi ficando todo rosa e uma bruma de água pousava lentamente sobre a cidade, ela tocou Ave Maria de Schubert. Estava na janela esperando o início do concerto e fiquei paralisado. Costumava ouvir essa composição, pois tinha o hábito de correr ao final de tarde e a rádio que escutava enquanto me exercitava, às 18 horas tocava-a com os mais variados interpretes, porém, com aquele sentimento, com aquela sensibilidade, eu nunca havia escutado.

Era quase que a idealização do que seria o paraíso! Aquela bruma de água, o roseado celeste, o cheiro da terra úmida e aquelas notas sonoras suspensas no ar. Cheguei a parar de respirar para não interferir. Cheguei à conclusão de que deveria ser o dia do aniversário dela, anotei no calendário da cozinha, só podia ser isso.

Nesse dia, nada conseguiu me aborrecer, no trabalho todos brincavam de que eu estava com cara de apaixonado, com ar de quem viu o passarinho verde, ofereceram-me a trilogia de Polyana, me aconselharam sobre os perigos da paixão, etc, etc.

Fui ao banheiro do escritório e percebi que realmente havia algo estranho na minha fisionomia.

Pois amanhã faz exatamente um ano daquela manhã, faz também um ano que entrei para o conservatório de música da Universidade Federal e estudei compulsivamente. Agora estou aqui, no ônibus indo à Praça da Sé, marquei com meu amigo-irmão Pedro Santana, na loja de instrumentos musicais, pois ele irá me ajudar a escolher um violino.

Amanhã ela terá uma grande surpresa! No dia do seu aniversário, de uma janela que ela não saberá qual, o som do meu violino irá dançar junto à melodia que, por tanto tempo solitário, aqueles delicados dedinhos produziam nas teclas do piano negro opaco. Será um amanhecer para a eternidade.

Roger Ribeiro
30 de outubro de 2009.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Ela me falou algo sobre roupa




- Troquei o meu cobertor por uma capa para minha guitarra.
- Mas como assim? Você ficou louco?
- Não apenas não sinto frio, e minha guitarra necessitava de uma roupa digna!
- Não sei não, acho que você não fez uma boa ação.
- Olha bem minha querida, boas ações são coisas para Lobinhos, Escoteiros e Bandeirantes.
- Você me lembrou bem! Sabe, nunca mais vi uma alcatéia de lobinhos nem tampouco pessoas vestidas com aquelas fardas de escoteiros e bandeirantes. O que será que aconteceu? Será que ainda existem? Ou será que se extinguiram?
Lembro bem que quando eu era menina, sempre aos domingos pela manhã os via em fila, cantando. O primeiro sempre carregando a flâmula que identificava o grupo. Isso era a cara do domingo. Nunca mais os vi.
- Creio que foram superados pelas ONGs.
- Será?
- Olha o que tem de ONG que cuida de pato, cachorro abandonado, gato manco, tartaruga em desova, periquitos de asa cortada. Tem ONG pra tudo baby, só não vê quem não quer.
- Pena, gostava daqueles grupos, “sempre alerta!”.
- Eu heim!? Você está parecendo disco do Roberto Carlos, sempre parece que já ouviu aquilo no disco anterior.
- Não seja insensível. Aliás, o que esperar de alguém que troca o próprio cobertor por uma “roupa nova” para a guitarra? Só pode ser um desumano mesmo.
- Por quê? Você acha que a “Brigitte Bardot” não merece um traje de gala? Sei não... Acho que você está é com inveja.
- Eu não, nem ligo. Só fico pensando quando formos acampar novamente, como será sem o Bob.
- Viu! É sempre assim, você só pensa em você. Se eu tivesse trocado o “Bob Dylan” por aquele vestido curtinho, ou aquele colar de contas coloridas, ou ainda aquela bota prá você, certamente você não diria nada, mas como foi uma roupinha nova prá “Brigitte”... Aí você faz esse drama todo.
- Você quer me comparar a essa guitarra de décima mão? Toda estropiada, empenada e desafinada? Eu bem que vinha desconfiando de sua sanidade mental, mas agora você passou de todos os limites. E te digo mais, esse universo é pequeno demais para mim e “Brigitte”, portanto escolha já: ou eu, euzinha ou ela. E ponto final.
- Se fosse você eu não faria isso!
- O quê? Pois está decidido. Nunca mais me procure. Adeus fique com essa guitarra velha... E tem mais, eu nunca te disse, mas agora vou dizer.
- Lá vem... Se nunca disse foi por covardia, nunca te censurei de dizer nada.
- Pois saiba que você é o pior guitarrista que já ouvi tocar.
- Pô! Agora você pegou pesado, O PIOR?

Dei as costas e fui embora, eu e “Brigitte”. Parei algumas quadras adiante, olhei para ela em sua roupinha nova e com os “olhos rasos d’água, o coração cheio de mágoas” perguntei: “Brigitte”, você que já passou por tantas mãos, eu fui o pior? Ela não respondeu.

Sentei no banco da Praça do Relógio de São Pedro e apoiei o queixo no braço daquela única criatura no mundo que me entendia. Ela foi cruel demais, não havia necessidade, ela podia ter me dito apenas adeus e ido embora, não precisava magoar o meu coração desse jeito. Será que eu toco pior do que aquele oxigenados do “Pagodão de Dona Maria”? Não! Não é possível, aí já é demais. Ele não sabe nem afinar as cordas! Da última vez, antes da “Caveira com Osteoporose” entrar em cena, eles iriam fazer a abertura (sim, acredite, é um desses eventos que acontecem nessa cidade que tem como mote a diversidade, sabe como é?) pois, era a nossa estréia e botaram pra abrir a noite uma banda de pagode.

Como uma banda de Rock pode entrar pra tocar depois do “Pagodão”? Bem, mas isso não vem ao caso, o certo é que quem afinou a guitarra do oxigenado fui eu! Então não é possível que eu seja pior que ele!

- Oi, você sabe tocar aquela do Paulo Diniz? Ô moço, tá morto? Tá me ouvindo falar com você não? Ô, fiu! Num tá escutando não?

Senti uma mão no meu ombro me chacoalhando, retornei à realidade assustado. Havia um homem, com um paletó preto todo roto, uma gravata azul com uma clave de sol amarela bordada, imunda, uma barba de pelo menos uns três anos e uma bota preta que começava a dar sinais de exaustão.

- Ôxi menino, tô te perguntando se sabe aquela do Paulo Diniz?
- Desculpe, não ouvi que estavas falando comigo.
- Perdoado, mas agora já sabe e, sendo assim, dá prá me responder?
- Já sei você quer aquela de “voltar prá Bahia” né?
- Que! Você está louco. Se fosse essa eu mesmo tocava e cantava, olha (tirou algo do bolso do velho paletó), veja tenho essa harmônica desde os doze anos de idade foi meu pai que me deu. (solou um trecho da melodia). Mas não estou aqui para tocar pra você...
- Sim e qual é a música que você quer?
- “Viola no Paletó”.
- Como? Viola aonde?
- E... Já vi tudo, você está guardando a guitarra de alguém não é mesmo? Afinal não existe guitarrista no mundo que não conheça “Viola no Paletó”. Te digo mais, sabe quem tocou ela? Hendrix meu filho! Ele mesmo, no festival de Monterrey em 1968. Você nem tinha nascido, tá achando pouco? Pois o Clapton...
- Quem?
- Clapton, Eric Clapton, mas que diacho de guitarrista é você? Vai dizer que nunca ouviu falar nele?
- Claro que ouvi.
- Pois ele mesmo, eu estava lá, foi no Festival da Penha, ali na Ilha, em 1976, ele sozinho na guitarra tocando o quê? Adivinhe...
- Sei lá! Nunca soube que Clapton tocou aqui.
- Santa ignorância, essa juventude... Pois ele tocou e solou longamente o clássico “Viola no Paletó”.
- hum...
- Já vi tudo, você não sabe não é mesmo? É assim, ouve só: lá, lalá riii lááá! Sacou?
- Não.
- Da cá essa guitarra e aprenda.
- Mas é preciso um amplificador e uma caixa prá guitarra soar.
- Você não sabe de nada, escuta:

Minha gente eu vim de longe
Estou aqui cansado e só
Tenho muito pra contar
Do que vi, por onde andei
Das estradas dos caminhos
Dos lugares que passei
Tô chegando e trouxe pouco
Porque muito eu não ganhei
Trouxe forças pra lutar
Por um bem que já se fez
Trouxe uma vontade imensa
De ficar de uma vez
Trouxe um canto e um desencanto
E um sorriso que consola
Muito amor dentro do peito
Pouca coisa na sacola
Trouxe o cansaço da vinda
De quem anda a pé e só
E uma viola sofrida
Pendurada no paletó.*

Aprendeu?
- Olha... (pensei melhor, o cara é louco, melhor não contrariar) Claro, é fácil.
- Ótimo, então vamos.
- Como assim? Vamos aonde?
- Na casa dela, claro.
- Dela quem?
- Primeiro vamos passar na casa de uma moça linda, advogada sabe? Ela processou e condenou meu coração, a malvada, perversa! É pra ela que vou cantar essa canção. Depois, bem... Depois você vai tocar para a moça que está lá na Praça Castro Alves triste que nem Lua Minguante, com os olhos refletindo você, assim como os seus estão refletindo ela.
Vamos! Não há tempo a perder, precisamos fazer tudo isso antes que a Terra dê mais uma volta sobre si.

Roger Ribeiro
22 de outubro de 2009

* Viola no Paletó - Paulo Diniz

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Sim, eu ouvi




Foi assim mesmo como estou te falando. Ela vinha firme e se espatifava na pedra. Voava uma espuma branca muito alto, mas muito alto mesmo! Era de uma beleza que não conseguiria nunca, por mais que tentasse fazer você ver.

Eu estava bem acima, na mureta de proteção, na minha frente um mato fechado, de um verde profundo que, pelo ângulo do meu olhar, se estendia até o azul claro do mar. Tudo parecia muito calmo, era um dia aberto de sol forte e ventos fracos, tudo indicava que, enfim, a harmonia reinava.

Engano. Do nada, ela vinha como uma montanha e sem medir as conseqüências se espatifava na rocha marinha. Era fúria pura. Só podia ser um sinal, não era possível que aquilo fosse à toa, não era acidental, era uma após a outra.

Por que você me olha desta forma? O que estou te dizendo é a pura verdade, fiquei paralisado frente aquela força, aquela coragem de se lançar daquela maneira e se espatifar em milhares de pedaços. Ali não era água e pedra, mas sim energia, o universo se repensando.

E você fica aí olhando para mim como se estivesse vendo um louco! Não quer compreender. Às vezes é necessário ter a coragem de se lançar de frente, de peito aberto se espatifar para, quem sabe, se reagrupar e renascer novamente. Não suporto mais seu sorriso débil, seu pequeno mundinho de escritório, sempre as mesmas futricas, as mesmas pessoas agindo sempre da mesma forma e você se julgando superior a tudo e a todos. Fulaninha disse isso, fulaninho não fez aquilo... E você? O que fez? O que faz?

Nada? Ta, já sei, no sábado você vai ao salão, depois vai visitar seus pais e almoçaremos nos dizendo que as contas estão cada dia mais altas, que já não sabemos mais o que fazer, que merecemos um aumento de salário, que o computador de sua sala é velho, lento, que, pelo menos, poderiam te dar uma máquina nova para trabalhar! Por fim, de barriga cheia, muito mais de ar de tanto reclamar do que de comida. Iremos dormir à tarde até a hora de tomarmos banho e irmos ao shopping comprar um presentinho para não sei quenzinho, filha de fulaninha que vai nascer, ou nasceu, ou já existe há tempos. Sei lá!

Só sei que à noite você vai querer assistir aquele filmezinho já deitada na cama, sem perfume, sem aquele vestidinho colorido de alcinha, sem batom, com o cabelo preso para não embaraçar, creme na perna, no braço, no rosto e, certamente dará o golpe final:
- Amanhã, o marido de Carlinha vai fazer um churrasco e nos convidou.

Eu já esperava algo assim, claro! Tem um ano que tento parar de comer carne e todo domingo tem um churrasco que o marido, o filho, o amante, o pai, ou seja lá quem, vai fazer e nós somos convidados. Pararei a leitura e farei a já esperada pergunta:

- Quem é Carlinha?
- Pô, você heim!? Carlinha lá do escritório, aquela que sempre vai com o mesmo vestido.
- Não sei quem é.
- Sabe sim, semana retrasada demos carona para ela. É aquela que mora perto do Farol de Itapoã.

Minha nossa! Pensarei sem verbalizar: moramos no Campo Grande, amanhã é domingo, pelo visto fará sol e teremos de atravessar a cidade naquele trânsito infernal, suando feito beduíno para encontrar o escritório dela, de bermuda e sandália. A mesma coisa, as mesmas pessoas que ela vê de segunda a sexta, apenas piorado, pois estarão acompanhados dos mesmos maridos ou esposas, namorados ou namoradas, inclusive eu, contando as mesmas histórias como no dia em que ficaram presos, pois o contínuo perdeu a chave e a porta fica trancada por causa de assaltos. Vai ser emocionante.

E você continua olhando-me com esse sorrisinho no rosto como quem pergunta se está tudo bem comigo. Sim, é claro que está tudo legal comigo. Apenas estou tentando lhe dizer que por trás daquela calmaria que se fazia hoje, havia algo em fúria. Ninguém nunca imaginaria o que se passava, era algo que vinha inexplicavelmente, mas vinha. E quanto mais ela se lançava contra a rocha, mais o verde das largas folhas se agitavam e se tornavam mais verdes, sempre mais verdes e mais vibrantes!

Era como se elas também estivessem encantadas com a beleza daquela força. Eu sentia que algo me atravessava o peito, sentia na boca o sal daquela espuma branca no ar, sentia que aquelas largas folhas verdes se enraizavam nas minhas pernas. Estava paralisado, por mais que quisesse, não conseguia me movimentar. Algo se apossou de mim e eu nada podia frente a isso.

Se você um dia viver o que vivi, vai entender. Mas, para isso, você vai ter que permitir que o verde do mato se enlace nos seus finos e brancos pés, que o sal das águas do mar resseque seus lábios vermelhos sem batom, que a leve brisa tome a forma de uma lança e atravesse seu peito nú. Que uma força em fúria domine sua mente e dirija o seu olhar para algo que você nunca viu, nunca pensou poder existir. Você perderá completamente o domínio sobre você e, quando menos perceber, estará nos braços do universo dançando uma música que ninguém nunca tocou, cantou, criou.

Apenas você sentirá que seu sangue vazou dos seus poros, suas células se desconectaram uma das outras, você se desmaterializou por completo, lançou-se com toda a fúria ao encontro de algo muito maior. Você se espatifou em milhões de pequenas partículas fluorescente.

Sim, é por isso que estou aqui impassível, tranqüilo e terno, a um segundo apenas de me virar de costas e sair sem te dizer absolutamente nada, após você, temerosa, com olhar aflito, me dizer que não me quer mais.

Roger Ribeiro.
16 de outubro de 2009

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Tio



Saco! Você precisava me enviar essa mensagem às seis e meia da manhã? Eu tenho certeza de que você fez de propósito, claro! Sua idéia era acabar com o meu dia, minha semana. Talvez a sua maldade seja tamanha que seu intuito seja acabar com meu mês, meu ano. Ora! Por que você não diz logo que seu maior desejo é acabar com a minha existência, riscar, apagar de uma vez por todas meus passos pelo planeta, desvirar minha ampulheta, apagar dos anais do universo, meu ser, nem que seja necessária borracha bicolor para lápis e caneta!

Saí de casa assim, digamos, meio nervoso, os dentes travados. A impressão que tinha era de que babava feito cachorro louco. Bati a porta com a chave dentro, claro! Tinha de ser assim, o dia estava azul que nem vestido de noiva apaixonada e meu ser, meu eu, meu íntimo intransferível, amarelo, pior, amarelinho como gemada para tuberculoso, psicótico crônico, ou quem sabe algo aterrador como sorriso de comentarista esportivo da Rede Globo. Vixi... Eu heim! Xô!

Entrei no automóvel e antes de dar a partida fui escolher um cd para aliviar o dia. Algo calmo para quebrar a fervura ou algo pesado para deslocar o foco da questão? Fui passando um por um no porta cd: Gil, Marina, Ronei Jorge, Led Zeppelim III, Cascadura, Dead Kennedys, Sex Pistols. Mas ainda não era o que precisava ouvir naquela manhãzinha, insuportavelmente azulzinha como tudo que termina em inho/inha – amorzinho, benzinho, xodozinha, chatinha, inssuportavelzinha, fominha, soninho... Arc, gruff! Chega.
Achei, finalmente achei, era o último cd da pilha. “Úteros em Fúria”! Sim, meu querido amigo Maurão iria me resgatar naquela manhã.

Som “no talo”, automóvel ligado, freio-de-mão arriado, consegui enfim soltar o primeiro sorriso do dia ao pensar: ainda bem que aqui não tem Rua Augusta! Agora é cuidado, atenção, não deixe seus nervos desalinhados perturbar a concentração. São muitos carros circulando e ninguém tem nada a ver com a mensagem, impertinente, que recebestes. Claro! Falei bem alto para me convencer.

Um quarteirão, sim, acredite, não é paranóia! Um quarteirão e o pneu estava no chão, o metal da roda no asfalto fazia aquele som inigualável como quem diz: vais ter de sujar a mão.

Encostei, abri o porta-malas, peguei: triângulo, “macaco”, chave-de-roda, encontrei enfim aquela parafina perdida, toda derretida no carpete da mala, uma cena linda! Como se não bastasse descobri também que aquele iogurte que pensei haver pago e deixado no caixa do supermercado, também ele residia, junto à parafina, na mala do “Demolidor”, meu possante automóvel.

Ao virar-me de volta para a rua, lá estava ele, claro, nesta hora eles sempre aparecem, surgem do nada, acho que brotam do asfalto ou da calçada, parece que sempre estiveram ali, mas você só os vê neste momento, olhou para mim e disparou:

- Furou o pneu tio?
- (Ai, dói nos ouvidos, tudo menos tio!) Nããããão, de jeito nenhum, o problema são os outros três que estão cheios de ar.
- Olha tio, né por nada não, mas esse outro aqui também tá bem ruinzinho, viu?
- (Ui, agora doeu demais, tio somado a inho, eu mereço) Não sou seu tio.
- Certo tio.
- NÃO SOU SEU TIO!
- Fica nervoso não tio, acontece são muitos buracos na rua, não tem pneu que agüente. Olha se o senhor quiser, eu troco. Depois o senhor dá um trocadinho...

Não costumo explorar o trabalho infantil, nem dar trocado para crianças para não incentivar a “indústria” da exploração de infantil, mas naquela, até então, tenebrosa manhã, tinha uma reunião importante por isso estava vestido que nem diretor de arte de agência de publicidade. Manja? Pois é.

- Tudo bem, você sabe trocar pneu?
- Claro, troco uns dez por dia aqui mesmo.

(será que ele põe pregos na rua? Afastei o pensamento, era sórdido demais).

- só tem uma coisa...
- sim, o que é?
- normalmente não tenho força para folgar os parafusos da roda.
- tudo bem, deixa que folgo. Enquanto isso, traga o “socorro” aqui para perto.
- (Lá fui eu folgar os parafusos) Pega também o “macaco” que deixei lá junto ao triângulo, e depois encaixa o “macaco” no lugar certo.
- Tio! Seu carro é complicado, não encontrei o encaixe para o “macaco” não.
- Tudo bem, me deixa ver isso aqui. Agora para de me chamar de tio, pelo amor de Deus.
- Tudo bem tio.

(Ai!) Ergui o carro, tirei a roda, encaixei o “socorro”, coloquei os parafusos, desci o “macaco”, apertei o parafuso, ficou uma beleza. Conferi o outro pneu, realmente estava meio baixo, mas dava pra chegar ao posto para calibrar. Meti a mão, imunda, no bolso, tirei a carteira e... A menor nota que tinha era de dez reais.

- Aí “meu sobrinho” (tentei recuperar o humor), vai ao bar ali e compra uma água sem gás pra mim.

Rapidamente ele foi e retornou com a garrafinha de água e o troco. Peguei um real e dei-lhe.

- Pô tio, abre a mão! Eu tô com fome, desde ontem não como nada e ainda tenho que levar uma comida pra casa, pois minha mãe tá doente e tenho mais três irmãos menores que estão há dois dias sem comer e bláblábláblá....
- tá, tá, tá chega. Pelo amor de Deus! Toma! (puxei a nota de cinco reais e dei-lhe.)

Entrei no carro, dei a partida e ainda tive tempo de ouvir.

- Valeu aí, Tio!

Mudei o disco, talvez algo mais calmo fosse melhor. Coloquei a Fernanda Takai tirando onda de Nara Leão. Respirei aliviado. Pensei: coitado do menino... Espera aí, quem tirou o “macaco”, o “socorro”, o triângulo de sinalização e a chave de roda da mala-do-carro fui eu, quem folgou os parafusos fui eu, quem tirou o pneu furado e colocou na “mala” também fui eu, quem botou o pneu socorro no lugar, colocou os parafusos apertou, subiu e desceu o “macaco’ também fui eu! Dei um real para ele, depois dei mais cinco, ou seja, aquele “pestinha” ganhou seis reais meus só para atravessar a rua e comprar uma água! Eu mereço.

Olhei para mim, conferi... Eu estava imundo, um lixo ambulante, minha roupa de publicitário havia virado de borracheiro. Eu cheirava mal, suava as bicas, era verdadeiramente um flagelo humano... E agora? O que fazer? No meio dessa agonia, o celular tocou. Deus! Deve ser do trabalho, estou atrasado e essa história de pneu furado é antiga... Encostei o carro para atender a chamada.

- Alô.
Do outro lado, uma voz toda meiga falou.
- Alô, benzinho... Olha, tô ligando pra pedir perdão por hoje cedo. Eu não queria dizer aquilo, você não é nada daquilo, você é um amor de pessoa, eu te amo muito... Perdoa-me, é que acordei na TPM, sabe como é, né?

- Tudo bem, beeenhêê! À noite a gente se fala.
- Bom dia pra você, até a noite!

Grrrrrrrrrrrrrrrrr! O que eu fiz de errado nesta vida meu Deus!
No som Fernanda Takai dá o golpe final:

“Ah, insensatez que você fez / coração mais sem cuidado / fez chorar de dor / o seu amor / um amor tão delicado...” *

Roger Ribeiro
02 de outubro 2009-10-08

* “Insensatez”- Tom Jobim / Vinícius de Morais

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Quem quer saber o quê?



- Então está combinado. Encontraremo-nos na Praça Tereza Batista, no momento em que Jards Macalé cantar a segunda música do show, você, de camisa branca, se posicionará bem em frente à mesa de som. Não tente adivinhar quem sou. Eu me aproximarei de você.

- Você estará com o doc...

- Claro. Não se preocupe levarei todos os documentos que comprovam a verdade.

- Está bem, estarei lá sem falta.

- Não se esqueça de ir de camisa branca para que eu possa saber quem é você.

Clic. O telefone foi desligado, era uma ligação de aparelho público para que o número não fosse identificado. Tudo se passava com absoluto sigilo. A situação era grave, exigia cuidado.

A negociação não envolvia dinheiro, não era uma chantagem, nem próximo a isso, aliás, muito pelo contrário. O que iria se presenciar era na verdade uma ação cidadã da mais alta estirpe. Você então se pergunta para que tanto sigilo? Tantos subterfúgios e cuidados? Ora meu querido, a verdade nem sempre é saudável para todos e por isso pode, muitas vezes, custar bem caro.

Era um belo fim de tarde e uma moça, alta, devia ter por volta de um metro e oitenta, com cabelos muito lisos e negros que lhe caiam até o meio das costas, postava-se debruçada na balaustrada da praia do Porto da Barra a observar aquela “bola de fogo vermelha” que se deitava por detrás da Ilha de Itaparica. Soprava uma brisa fresca e as pessoas passavam aos grupos falando alto e rindo, outras se abraçavam e, aproveitando daquele momento quase místico, faziam juras de amor. Ela estava visivelmente tocada, emocionada com toda aquela áurea de paz e felicidade. Afinal havia perdido a sua paz há algum tempo, isso se percebia pelo opaco dos seus olhos que um dia, certamente, deviam ter brilhado como diamantes.

Permitiu-se ficar, o que era muito raro. Havia tornado-se extremamente exigente consigo mesma, tinha de estar sempre em atividade, não se permitia ao prazer, ao lazer, nada! Se não estivesse trabalhando, estava estudando ou planejando novos trabalhos. Creio que resolveu ocupar-se desta forma para evitar os seus próprios pensamentos, fugia de sua verdade, afinal nem sempre a verdade se faz necessária e saudável.

O tempo passou e ela nem sentiu, também não viu que aquele rapaz que lhe perguntou as horas, na verdade estava, a tempo, procurando uma forma de se aproximar. Também não percebeu que um par de seus brincos havia caído de sua orelha e se alojado caprichosamente no espaço vago entre a pedra portuguesa branca e a preta. Não percebeu, na verdade, nada. Também não queria perceber. Há anos não se permitia vagar, deixar os seus olhos guiar os seus pensamentos, fazia tempo que não namorava a si mesma!

Olhou o relógio e viu que já estava quase atrasada. Virou-se e atravessou a rua em direção ao ponto de ônibus. O brinco de pedra escarlate permaneceu a embelezar a calçada que agora já não mais era preta e branca, mas sim preta, branca e escarlate, isso, óbvio, para bons observadores. Pegou o coletivo Praça da Sé, sentou-se e, novamente deixou-se absorver pela paisagem em movimento.

Ficou na verdade brincado de achar que ela estava parada, o que era verdade, afinal era o ônibus que estava em movimento, mas fez de conta que estava sentada em algo estático e que as coisas é que estavam em movimento - o prédio, a casa, o poste, o outdoor, os seres humanos, a academia, o asfalto - tudo correndo na mesma direção. Ficou tonta, para piorar a situação lembrou-se de Pró Mercedes (na época pró era pró, não havia essa coisa chamar de tia), lá no curso primário explicando o, na época inexplicável, curso da rotação e translação da Terra, lembrou que também lá havia ficado enjoada.

Antes do Elevador Lacerda o ônibus parou e o cobrador anunciou o ponto final, fazia isso, pois esse percurso era muito freqüentado por turistas. Pensou: “porque será que esse ônibus diz que o destino é a Praça da Sé se estou tão longe desta? Na verdade estou no meio da Rua Chile! Passarei pelo Elevador, pela Câmara Legislativa Municipal, pelo Palácio da Aclamação, pela inconveniente arquitetura da Prefeitura, pelo Museu da Misericórdia e aí sim chegarei à dita Praça. Acho que na bandeira do ônibus deveria ter: Rua Chile. Seria mais honesto”.

Parou no carrinho de iguarias, à porta da Câmara Legislativa e comprou um milho e um saco de amendoim, ambos cozidos. Continuou a passos lentos seu caminho rumo ao Pelourinho. Não gostava de ir a tal local. Sempre que ia ao Pelourinho sentia um peso nas costas. Uma vez procurou uma explicação para isso e o máximo de resposta que obteve foi que era porque ela era baiana. Achou essa resposta “jorgeamadiana” em excesso, deixou para lá e buscou evitar ir ao local. Tarefa difícil para quem mora na cidade do Salvador. Vira e mexe algo te leva lá.

Parou na padaria do Terreiro de Jesus e comprou um refresco de maracujá para si e um pão com manteiga na chapa para uma senhora que esmolava na porta do estabelecimento. Ficou um tempo na porta olhando o chafariz que solidamente se impunha no meio do Terreiro. Pensou: “hoje a água sobe impulsionada por uma bomba hidráulica elétrica”, e antes da eletricidade?

Lembrou que tinha de chegar à Praça Tereza Batista e adiantou o passo. Chegou e o evento já havia começado, no cartaz dizia tratar-se de um evento reunindo a vanguarda musical. Olhou bem a programação e notou que as principais atrações ou tinham o cabelo grisalho ou branco mesmo, pensou: “puxa, faz tempo que ninguém ousa.”

Postou-se em um local que dava boa visibilidade à mesa de som e aguardou. Logo terminou o primeiro show e veio o segundo.

- Nossa! Arrigo Barnabé. Há quanto tempo que não o vejo!

Aguçou a audição e ficou feliz ouvindo o criador de “Clara Crocodilo”. Ficou impressionada com o tecladista que lhe fazia dueto, nunca imaginou que pudesse haver outro louco a ponto de tocar daquela maneira. Viu algumas pessoas amigas e tratou de ficar o mais escondida possível. Nesta busca por ocultar-se acabou por presenciar algo inusitado como o encontro dos guitarristas Luciano Souza com Lanny Gordin.
- Isso é que é surrealismo, Salvador Dali perde feio.

Veio enfim o show de Jards Macalé. Na segunda música, olhou para frente da mesa de som e lá estava um jovem de aproximadamente 30 anos de camisa branca e olhar tenso, ansioso. Ela aproximou-se vagarosamente. Postou-se ao seu lado, abriu a bolsa e retirou um envelope pardo.

- Jaime?
- sim.
- Aqui está o documento. Nele você encontrará a resposta que tanto persegue. Porém, antes que você abra e leia te digo de todo o coração; nem sempre as verdades são necessárias.

Ele olhou-a fixamente, pegou o envelope, voltou a olhá-la, naquele momento só havia, ele, ela e o envelope pardo. Por uma estranha razão, talvez por ter se livrado do documento no envelope pardo, os olhos dela voltaram a brilhar. De súbito o universo deles foi invadido pelo som potente dos que vêem à frente:
-“Não choro, Meu segredo é que sou um rapaz esforçado, fico parado, calado, quieto, não corro, não choro não converso...”*

Ele segurou-a pela mão e desceram juntos as escadarias da Praça Tereza Batista.

No outro dia, ao fazer a limpeza da Praça o rapaz observou que jazia, ainda lacrado, na cesta de lixo, um envelope pardo. Apanhou, abriu e leu-o, ficou gelado, pálido, seus olhos tornaram-se opacos... Pensou: “porque fui fazer isso?!”

Nem sempre as verdades são necessárias.

Roger Ribeiro.
1 de outubro 2009.
*Mal Secreto – Jards Macalé.