terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Ah... Esqueci!



O tempo não era dos mais afortunados, sentia-se como nunca havia se sentido antes. Era um enorme descompasso entre o interno e os limites definidos pela fina pele, a impressão que tinha era que a luz estava apagada em plena noite de Lua Nova, ao meio-dia.

Sentia os lobos rondando e surdamente rosnando aguardando o momento exato para traiçoeiramente atacar. Não se expunham frente a frente, nas sombras, nas curvas e quinas aguardavam no subterfúgio no jogo, mas sempre à espreita com suas babas viscosas, aguardavam a primeira oportunidade. Vivem do que tramam.

Poucos dias atrás conseguiu reaver um contato que há muito não fazia. Alguém muito especial, ainda mais em um momento como este nunca d’antes imaginado, reapareceu. Em conversa rápida pôde expressar um pouco do seu desafinar dentro do momento vivido. Como sempre lhe foi dada a generosa atenção e um pouco de acalanto, lembrou-lhe de uma certeza que sempre carregou consigo: o movimento deriva do desequilíbrio.

Saiu um pouco daquele ambiente insalubre e foi buscar alguma coisa que normalmente quando não sabemos bem do que se trata, dizemos que estamos em busca de um pouco de ar puro. Claro que isso não condiz com a realidade, afinal ar só se procura quando se está em baixo d’água e, viver em uma grande cidade hoje e encontrar algo como ar puro, é querer viver em um planeta entre Salvador Dali e Zé do Bar e os Filósofos que Tomaram Ácido!

Era necessário encontrar uma saída, aquele micro-universo já não lhe seduzia, estava algo parecendo o carnaval de Salvador: faltava brilho, luminosidade, alegria, enfim faltava fantasia!

Com estes devaneios na cabeça caminhava absorto, lenço não possuía, mas os documentos, estes eram abundantes, porém não prestou atenção à suas próprias observações e sem mais nem menos, em uma minúscula pedrinha, tropeçou... Neste tropeço viu o mundo girar, tentou se segurar no ar, tateou, nadou em terra firme, mas nada o ajudou e ao solo foi com a sede dos Beduínos. De longe ouviu o comentário:

- Pô o cara tomou um “estabaque retado”! (seguido de grande e jubilosa gargalhada)

Na sua cabeça (ao solo) ficava dividido entre a vontade de responder àquelas gargalhadas e entender o que havia acontecido? Afinal como uma minúscula pedrinha daquela poderia levá-lo ao solo daquela forma?

- Levanta daí. Não está vendo que estás impedindo a passagem? Toma vergonha, uma hora dessas em vez de está trabalhando ta aí bêbado feito um gambá!

Neste momento veio em seu pensamento: gambá? E gambá bebe desde quando? Ou será que esta criatura no alto de sua arrogância quer dizer que estou fedendo? Vagarosamente foi revirando a cabeça para responder aquela interlocução. O bico do seu sapato estava a menos de três dedos da ponta do seu nariz e a sua visão, no sentido Sul – Norte, demonstrava uma perna longilínea, torneada, ornada por uma meia feminina prata que parecia não ter fim. Tomou fôlego e:

- A senhora está insinuando que estou bêbado?
- Olha se não está é bom procurar um médico, pois o vi cambaleando por uns cinco metros procurando no ar uma garrafa imaginária até não resistir mais e desabar como uma jaca mole e aí permanecer parecendo uma lagarta aguardando as asas.
- Minha senhora...
- Senhorita, por favor?
- Acaso está sentido cheiro de álcool?
- Estou muito gripada, estas viroses pós carnaval...
- Saiba que a senhorita está muito enganada, sou um trabalhador de respeito, só estou aqui arejando um pouco o juízo para retornar ao trabalho...
- Arejar o juízo...? Olha meu querido, lá em casa eu tenho sabão e escovão e estou necessitando de alguém para arejá-la. Ali sim o lar de uma trabalhadora. Arejar o juízo? Isto deve estar escrito em tudo que é parede de banheiro de boteco.
- Hã! Assim a senhora está me ofendendo...
- Senhorita já disse! És surdo ou abestalhado?

Se levantou vagarosamente sentindo ponto por ponto aonde doía mais e aonde doía menos.

- Senhora, senhora e senhora... E mais: uma senhora broaca, e se não gostou vá dar queixa no módulo policial! (acho que desta vez me vinguei)
- Você é um mal educado descompreendido que não sabe enxergar uma pessoa decente quando vê, e sabe por quê? Porque no mundo de lixo em que vive não há nem sequer um exemplar!
- Você é que não se enxerga! Não vê que estás sendo mesquinha e egoísta? Tropecei no girar da terra e tomei uma queda que, se fosses uma pessoa realmente humana, me perguntaria se me machuquei e me ajudaria a levantar, mas em vez disso ficas aí me ofendendo...
- Agora quer que eu o chame de coitadinho? Não me faça rir de você. Termina logo de levantar que estou com fome!
- E eu com sua fome?
- Xiii, acho que bateu a cabeça e avariou de vez. Vamos logo afinal você vai me levar para almoçar e eu vou te contar maravilhas do planeta em que venho!

Assim, sem mais forças para reagir, lembrou que esqueceu. Deu-lhe o braço e saíram em direção ao almoço, não sabia mais de onde vinha nem aonde deveria estar. Sua única dúvida era aonde levar a senhorita? Ao natural ou a churrascaria? Com as portas e as janelas da cabeça aberta, começou a cantar... E no meio da rua ela o puxou para dançar!

“"Astronarta" libertado
Minha vida me ultrapassa
Em qualquer rota que eu faça
Dei um grito no escuro
Sou parceiro do futuro
Na reluzente galáxia”*

E eu vendo tudo daqui da Lua Nova.

Roger Ribeiro
28 de fevereiro de 2012.
*2001 – Tom Zé

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Qual o seu plano?



Para Maurício, um sábio amigo.

Por aqui é assim mesmo, os dias não nascem apenas por nascer. Existe sim, claro, o dia que nasce preguiçoso e deixa a cargo dos seres terráqueos a função de fazê-lo acontecer, mas tem dias que as conjunturas já se pronunciam, é nesta hora que o dia já nasce atento, ou como dizia Dona Beré em sua sabedoria sino-recôncava: “o dia nasce de olho aberto!”.

Há algum tempo atrás, em uma tarde marrenta, calorenta e úmida dirigi-me ao Largo Dois de Julho, para espantar o calor sorvendo um “pão líquido”, como definitivamente e sabiamente define a velha cervejinha a nossa Rita Bacana. Não havia marcado nada com ninguém, porém as sintonias transitam pelo imponderável e quase simultaneamente chegamos para ficarmos sob a jurisprudência gentil de Manoel, que rapidamente nos levou, eu, o Barba e o Gordo para uma mesa de alumínio fresca, já empunhando uma “ampola” do nosso pão “líquido”, assim do nada já estávamos no velho e bom Líder. A tarde iria render.

A prosa começou com o eterno sorriso largo do Gordo, que nunca escutei falar na primeira pessoa do singular, de sua boca a pronúncia era sempre o nós. Esta era a pessoa que ocupava o seu universo, o nós. Pois assim disse:

- Os meninos estão dispersos demais.

Uma pausa foi feita para se ter a clareza do dito. Nesta pausa quase que um livro inteiro passou na minha cabeça (O Solara da Fossa). Realmente era uma verdade, os meninos estavam dispersos. É algo que se passa de geração em geração, acontece principalmente com nós meninos, olhei para Barba que neste momento fitava seriamente suas velhas botas pretas, e verbalizando parte do meu pensamento disse:

- Mas Gordo, esse é o caminho natural, principalmente para os garotos, esta necessidade de ruptura de laços para transpor a fase infantil para a fase adulta.

Mais um tempo de pausa, e finalmente o Barba resolveu entrar na questão:

- Sim é verdade, parece que este movimento pendular não irá se romper nunca. Nascemos com a essência sutil aberta, até determinado momento somos como que um seminário de aprendizado, agregamos a nós talentos que vão se somando aos nossos e de pedacinho em pedacinho, de pessoa a pessoa que agregamos a nós, formamos um grande mosaico, um todo que adentra no mundo como a Escola de Samba no Sambódromo. Simplesmente invade sem pedir licença e, encanta.

Sim, pensei, é assim mesmo. Lembrei da frase inicial do Gordo, as idéias foram se conectando: café, estúdio, jornalismo, composições, etc. Tudo isso que um dia formou um único corpo agora formava partes que mantinha-se educadas, “aqui nessa casa ninguém quer a sua boa educação”*

- Estupidez eterna! (retomou a palavra o Barba) Abandona-se a essência sutil para inflar o ego, a camada mais densa, perde-se a noção do mosaico, da somatória, no lugar de fortalecer a generosidade e a ingenuidade desprovida de ambições desmedidas, isola-se acreditando que um homem deve tornar-se arrimo de sua vida, só. Desapega-se do coletivo rico e composto, para o minimalismo individual e frágil.

Ouvindo o Barba lembrei-me das olheiras de Tom Zé, tomando café da manhã na Padaria Santa Marcelina em Perdizes, que, em uma leitura minha muito minha, parecia perguntar atônita aonde andava a turma? Era época de um suposto ostracismo, mas que como hoje fica claro, nunca deixou de ser gestor.

“Todos os dias eu faço força pra lembrar,
Coisas pequenas que eu nunca pude reparar direito,
Onde será que andava o mato do jardim,
E os bichos da noite,
Que eu nunca ouvi tão alto assim?”**

- Precisamos quebrar este ciclo vicioso, (retomou o raciocínio o Gordo), é preciso fazer alguma coisa.

O tempo entre aquele encontro passou, a idéia central jamais se perdeu, mas como disse, nesta terra existem caminhos que não se explicam apenas se aplicam e se aprende com eles.

Um dia o Gordo, do nós, fez questão de ficar sozinho e assim só partiu para uma nova viagem, mas por que ele do nós neste dia quis ser o eu?

Os dias seguem seu curso, mas o aprendizado fica. Pelo menos para os que ainda se permitem ter tempo para ler os signos da vida.

Roger Ribeiro
07 de fevereiro 2012


*Volte para o seu lar – Marisa Monte
**O brilho das pedras – Sá, Rodrix e Guarabyra