terça-feira, 10 de maio de 2011

Buracos de alma



- Vamos, anda logo... Levanta daí.

Confesso que me assustei, afinal estava, tranquilamente deitado em um banco da praça sob uma frondosa amendoeira, tentando tirar uma soneca compensatória por uma noite mal dormida e aquela voz, forte e grave, cortava, o até então, pacato som bucólico característico de praças arborizadas, para me trazer de volta à sombria realidade da condição humana!

Imediatamente achei tratar-se da Guarda Municipal e esperei o complemento do tipo: não é permitido deitar no banco, ou, Não é permitido dormir na praça... Mas, nada disso aconteceu, quando a voz soou novamente, já foi inquirindo:

- Desde quando usas barba? Estas se disfarçando? Fugindo da polícia? Ou fugindo de você?

Abri os olhos e vagarosamente fui observando aquele ser de pé ao meu lado. Botas pretas gastas, um dos “bicos” abertos, calça jeans surrada, camisa de meia branca básica, e uma barba grisalha que praticamente só deixava de fora a ponta do nariz e os olhos... Perguntei-lhe: e agora usas chapéu?

- O céu está desmoronando por isso agora uso chapéu.

Lá estava meu amigo Barba! Havia muito tempo que eu não o via... Senti um alívio ao ver seu, sempre gentil, sorriso para mim!

- Aliás, meu caro (continuou ele), estava te procurando exatamente por isso. Porque ainda não levantastes?

- Calma Barba, já vai...

- Veja como andas; você nem mesmo percebeu como nestes últimos tempos que os dias não estão sendo tão claros e as noites não estão escurecendo o suficiente, não foi mesmo?

- Te confesso que não reparei, mas também tenho tido dias muito confusos e atribulados, não tenho reparado muito as coisas.

- Pois este é exatamente o problema, você tem visto muito pouco e o pior, não deu crédito ao que viu, assim não tomou as atitudes e decisões que deveriam ter sido tomadas.

As coisas aqui fora são bem diferentes meu velho amigo, muito diferentes... Veja! Você nem reparou que o céu está despencando! Tá vendo aquele buraco ali? E aquele ali?

Olhei para cima e tomei um susto, era verdade, o céu estava cheio de buracos, o que será que estava acontecendo? Logo o céu?!

- Pois é o que eu estava te dizendo (continuou Barba), nem o céu agüenta mais esta humanidade e suas farsas, humanidade de humanóides sem o sentido filosófico, que isso fique claro!

Vamos levanta logo daí e vamos ali para você me pagar um bauru com um suco de laranja, que vou te explicar o que tenho visto e que você não viu.

- Colé Barba, tá sem grana?

- Não de forma alguma, mas pagar um lanche para um amigo é algo nobre dentro de uma amizade! Sendo assim, vamos ali à padaria que tem um sanduiche ótimo.

- Tá bom. Mas o que explica estes buracos no céu?

- Seus olhos.

- Ãh... Como assim?

- Você continua enxergando o mundo com os olhos internos meu caro!

- Barba, sinto ter de dizer, mas acho que as seqüelas dos anos 70s finalmente se revelaram!

- É nada, lembra de uma das últimas vezes que nos encontramos e você falava sem parar de um jantar que iria à noite?

- Caramba isso faz tempo heim...

- Pois, desde aquela época venho de longe te observando, e vi quando você começou a ficar sem cor, transparente, translúcido, flutuavas, parecia uma onda no mar... Só não se apercebeu que no mar existem os recifes para as ondas se espatifarem...
Por favor, um bauru e um suco de laranja sem açúcar.

- Barba acho que você está sendo dramático demais...

- Você acha mesmo? Você tá escutando? (apontou para a pequena caixa de som na parede).

De tudo se faz canção,
E o coração na curva de um rio...”*


Olhei para o lado e lá estava o bauru e o suco de laranja, mas o Barba já não mais estava, notei que havia mais um buraco no azul do céu.

Roger Ribeiro
10 de maio 2011.

* “Clube da Esquina II” - Lô Borges / Márcio Borges / Milton Nascimento