
I've got a
feeling, a feeling deep inside
I've got a
feeling, a feeling I can't hide*
- Este é o meu juízo final.
Disse firme. Sua voz saiu com a precisão da
lâmina de um samurai ao desferir o golpe letal, com toda a admiração e
respeito, sobre o oponente. Falou e imediatamente fechou seus olhos de longos
cílios, aliás, não fechou apenas os olhos; fechou-se toda! Todos os poros,
todas as ligações nervosas, todos os sentidos, fechou-se enquanto humana
transformando-se em mineral, uma rocha, sólida e inabalável. Morria de medo do
peso, da gravidade e, principalmente, da finitude – algo que nunca havia
sentido – de sua decisão, do seu juízo final.
Não, não havia chegado àquele ponto por mero
impulso, por raiva, desespero, por algum sentido fugaz, não! Era a dolorosa e
quase sobre-humana tarefa do desfazer a corrente fluida, continua e circular;
era um juízo final, uma ação em frase lapidada.
Por dias, descalça, andou pala areia morna e
colorida da beira mar, por noites e noites, sem dormir, regou, letra por letra,
palavra por palavra, vírgula a vírgula com suas lágrimas brilhantes e
cristalinas seu veredicto. Sua decisão não era uma mera decisão, uma simples
constatação, era sim, o ponto, mas não qualquer ponto, mas o ponto final.
Juízo. Tenha juízo!
Frase que parece que nasceu escutando, agora
lhe rondava a cabeça como um tufão, era como se estivesse em meio à grande
tempestade que sempre esperou e nunca veio. Eram como as músicas que sempre
soube que existiam, mas nunca ouviu, o espelho que não lhe refletia, mas que a
tragava, sugava-lhe pouco a pouco, levou-lhe as pequenas flores vermelhas bordadas
do seu vestido laranja, levou-lhe a tinta lilás expondo, o por tanto tempo
escondido, azul-marinho original dos seus cabelos, levou-lhe o tempo, os
músculos... Mas não o juízo.
Contudo e apesar de toda a aparente lucidez,
não conseguia abrir os olhos. Falou e após falar cerrou os lábios. Lábios que
aos poucos perdeu a umidade, o brilho, desbotou, perdeu o tempo do beijo, o
cheiro do gosto que só pelos lábios se sente, mas nada disso lhe assustava,
temer... Somente o de ter de abrir os olhos e ser invadida pelas lágrimas de
tons rosa-verdejantes que minavam dos seus olhos, afinal, apesar da aparente
firmeza daquela “comissão julgadora” formada pelos infinitos Eus contidos nela,
apesar de todo o filtro racional, de sua história construída, morria de medo de
estar apenas e somente errada.
Temia estar sendo covarde frente ao desafio
titânico que lhe era apresentado, proposto. Poderia apenas estar recusando um convite
para um novo bailar!
Mas esta hipótese poria por terra todas
aquelas semanas de reflexões, de decisões. Como encararia daquele momento em
diante os seus pés que, de tanto tocar as partículas coloridas da areia da beira
mar, foi absorvendo cores? Como manteria a sua relação com o vale existente
entre os seios que se aprofundavam, assoreavam-se pelo veio d’água contínuo e
cristalino minados dos óios dos seus olhos descendo Serra abaixo por entre os
seios incandescente?
Do seio esquerdo, o pulsar frenético do
coração, aterrorizado que estava pela proximidade da decisão a ser tomada, o
fazia expandir-se ao seu máximo, de tão expandido a pele se afinou a ponto de,
por cima do vestido desflorado e alaranjado, tornava-se perceptível seus
órgãos; órgãos alimentados pelo fole do pulmão que tocavam uma sonata de Bach
na Catedral demolida da Sé.
De medos viveu semanas, por dias foi
permitindo esvair os seus azuis, por horas, minutos segundos deixou-se germinar
de gigantescas árvores que se expandiam esverdeando de um verde chumbo,
entrecortada de cipós de veias que tentavam a todo custo conter a corrente
furiosa de um sangue envenenado pelo medo; o juízo foi feito, a palavra dita,
ficou o final e, após o final... Apenas o medo do erro. A floresta
intransponível.
Temia o ter de admitir que não conseguisse.
Temia ouvir a música que tanto lhe dizia, sabia que soava, sentia os seus
graves lhe irrompendo pelas costas transformando suas costelas em cordas de uma
harpa afinada, translúcida arpejada por dedos finos de unhas compridas que se
integravam e vibravam de forma a não mais se perceber o que eram os dedos, o
que eram as cordas. Um único elemento perdendo pouco a pouco suas partículas
sólidas, nada mais havia para os seus olhos cerrados do que sons: música.
Abriu lentamente os olhos, o suficiente para
fitar à sua frente o espelho que lhe sugava, levantou-se, beijou o que ainda
restava de matéria à sua frente. Reafirmou:
- Sim, está decidido, sem direito à revisão,
este é o juízo final.
Atravessou a sala, ainda descalça, aguardou o
elevador, entrou apertou o último botão, aquele que a levaria ao térreo, a
porta fechou-se à sua frente, voltou a fechar os olhos e desceu.
Alguns segundos passaram-se e o elevador
chegou ao seu destino, fechado estava, fechado ficou.
Um bando de crianças, gritando e correndo,
escancarou a porta do mesmo elevador, entraram apertaram todos os andares e
passaram a brincar de voar do térreo ao décimo andar, eram, por alguns segundos
super heróis. Para assim ser fecharam os olhos, cerraram os punhos e sorrindo
gritavam sem o menor juízo:
- Estamos voando!
Roger Ribeiro
27 de março de 2013
* I've Got a Feeling - Beatles