
Da última vez
que o encontrei lá no Restaurante Caxixi, no Largo do Dois de Julho, entre uma
geladinha e um tira-gosto, iam chegando amigos e a conversa ia ganhando fôlego,
dizia, sem bravata, mas com a certeza dos repentistas de feira popular, que
após a barreira do som, chegaria à da luz... Eis o seu sonho desde menino,
correr pela orla de Salvador na velocidade das estrelas!
- Conheço desde
menino, sempre pertenceu ao grupo dos aluados, em determinado período por muito
pouco não se transferiu para o dos desatinados, mas aí sabe lá como achou em
alguma viela dessas um tino perdido...
- Ôh... Kleber,
não fala assim, além disso, a Majuí nem está aqui pra se defender... Ficar
agora conhecida como o tino perdido? Ela não merece isso.
Nossa! Essa
conversa vai longe, aliás, isso é todo sábado fim da manhã, é melhor mudar o
rumo da prosa, apesar de que, tenho de ser justo: o Kleber tem certa razão.
Domingo cinco e
quinze da manhã, o dia amanhece vagarosamente azul, ainda se avista as
criaturas da noite dobrando apressadamente o horizonte, do outro lado um vento
leve e muito fresco sopra como se tivesse viajado meio globo para trazer
partículas da aurora boreal para esta cidade, afinal tudo e todos, forçados ou
por apetite de dragões, nos mais variados tempos, por estas areias aportaram.
Continuam aportando.
Desta maneira
avistei-o de longe, se preparava para o treino, vestia cada peça da roupa sobre
o corpo que não existia com um ritual quase messiânico. Majuí ao seu lado abria
com o olhar verde escuro uma rota entrecortando o ar, o tempo, o calor, toda e
qualquer partícula de energia, emoção, intenção ou ansiedade. Nada poderia
pairar na raia a ser percorrida, qualquer choque com qualquer partícula poderia
provocar uma explosão sem precedente. O caminho era reto, o verde olhar já o
traçara, mas o retorno era o que mais havia de incerto.
Agachou, colocou
a palma da mão esquerda no cimento da calcada, esticou a perna direita, olhou
com extrema ternura a sua menina, deixou seu enorme cabelo translúcido cair-lhe
pelos ombros e esperou o sinal. Majuí deu-lhe:
A paz
Invadiu o meu coração
De repente, me encheu de paz
Como se o vento de um tufão
Arrancasse meus pés do chão
Onde eu já não me enterro mais
Invadiu o meu coração
De repente, me encheu de paz
Como se o vento de um tufão
Arrancasse meus pés do chão
Onde eu já não me enterro mais
Partiu em disparada... Abria-se um vácuo e uma
total ausência de sentidos se fazia. Ultrapassou todos os limites, passou pelos
Ramones, pelo Steve Vai, Jimmy
Page e até mesmo pela Baby Consuelo cantando chorinho. Uma explosão... A
barreira da luz foi ultrapassada. Neste momento o universo tornou-se lento,
tudo estava como em câmera lenta!
Majuí, com seu
sorriso prata, flutuava encantada por entre os portais desta cidadela para onde
tudo converge, de frente para o mar percebeu-se entre dois morros verdes que
avançavam como brigues para o horizonte, sobre o primeiro a luz da
racionalidade humana, ali repousava o incansável Farol guiando a nau da
civilização, no outro pairava um dos signos do intocável, do imponderável, a
força que tudo é, mas que não se explica, guiando a nau da civilidade. Entre
estes Majuí etérea, continuava abrindo os caminhos para seu aluado lumiar seu
sonho de menino.
A paz
Fez o mar da revolução
Invadir meu destino; a paz
Como aquela grande explosão
Uma bomba sobre o Japão
Fez nascer o Japão da paz
Eu pensei em mim
Eu pensei em ti
Eu chorei por nós
Que contradição
Só a guerra faz
Nosso amor em paz
Eu vim (...)*
Roger Ribeiro
25 de Março de 2014
* A Paz - Gilberto Gil & João
Donato