quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Arquitetura do Ser

Para uma jovem avó, que me ensinou que o verdadeiro arquiteto é o poeta - a verdade.




"Responder a perguntas não respondo.
Perguntas impossíveis não pergunto.
Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.

Toda a minha experiência, o meu estudo,
sou eu mesma que, em solidão paciente,
recolho do que em mim observo e escuto
muda lição, que ninguém mais entende.

O que sou vale mais do que o meu canto.
Apenas em linguagem vou dizendo
caminhos invisíveis por onde ando.

Tudo é secreto e de remoto exemplo.
Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
E todos somos pura flor de vento".*




Andava distraído, não havia um destino exato, era um caminhar misto de desocupação, contemplação e exercício. O dia era chuvoso, uma chuva fina, aquilo que os paulistanos chamam de garoa, umedecia a cidade e, naquela praça gramada e repleta de árvores, uma das poucas remanescentes da cidade, esta friagem era ainda mais sentida.

No ouvido o fiel fone ligado ao rádio, que de tanto ser o companheiro do solitário caminhador já havia sido batizado, ironicamente, de Orlando Silva – “O Cantor das Multidões”. Pois, foi exatamente dos poderosos pulmões, ou melhor, dos poderosos transistores de “Orlando” que lhe veio à surpresa. Havia, ele não sabia quem, transformado uma lenta e sensibilíssima canção de amor em uma levada funk pop, sem o menor sentido.

O nosso caminhador tomou tal susto que chegou a parar, ele não acreditava naquilo, como podia alguém transformar uma canção como “A Linha e o Linho” naquilo, não era possível, é algo impensável, para você ter uma idéia seria como retirar “Moon Over Bourbon Street” da obra “Bring On The Nigth” - o álbum duplo pós Police - e colocá-la em um arranjo típico do “Chiclete com Banana” (a banda baiana). Nossa! Como seria possível tamanha falta de sensibilidade?

Ele balançava a cabeça em negativa, estava realmente incrédulo com o que lhe invadia os ouvidos. Pensava: será que eles não percebem que esta poesia possui música própria?

Não agüentou, retirou os fones de “Orlando” do ouvido e passou a olhar aquela paisagem fria e úmida, algo quase londrino em plena Salvador. Pessoas passavam por ele com vestimentas de “malhação” sempre muito coloridas e ar de ausência, afinal quem pode estar em atividade física em plena quinta-feira às 9:00 horas desta manhã chuvosa de alguma forma se sente ausente, para o bem ou para a dor, do mundo robótico dos “normais”.

Continuou sua caminhada e agora mais do que nunca estava alheio a tudo que lhe cercava. Apenas a imensa interrogação lhe ocupava a mente: como podem ter feito aquilo?

Caminhando mais que distraído acabou por esbarrar em uma árvore; bateu caiu... Quando recobrou o mínimo de consciência estava deitado em um chão molhado, rodeado de olhares que lhe interrogavam de cima para baixo:

- Você, você, cê, c... Está, está, tá, t... bem, bem, bem be...b...?

Eram muitas vozes que lhe arrebatavam o espaço que até então era exclusivo de “Orlando”, balbuciou meio que embriagadamente:

- T... tudo bem... mas, algum de vocês pode me dizer como pode ser?

- Moço,olha o seu rádio...Caiu mas já testei, pra sua sorte ele tá funcionando.

- “Orlando”! Nossa não sei como te agradecer...

Olhou aquela mão fina e morena jambo, como as melodias de Jards Macalé, que lhe estendia o seu grande e único companheiro e foi lentamente reparando aquela menina encoberta por um vestido vermelho que lhe realçava a pele morena e o sorriso que lhe reduzia os pequenos olhos, que, menores ainda ficavam por detrás daquele óculos de lentes grossas.

- Ôcê poderia ter se machucado...

- Pior, muito pior, menina cor de jambo, eu poderia ter decretado a morte de “Orlando”, Deus do céu!

- Quem?!!

- “Orlando”, que você salvou para mim!

- Ah! Seu rádio chama-se “Orlando”?

- Sim, “O Cantor das Multidões”! E você, mineirinha né? Tem nome?

- Não sou mineira, morei muito tempo lá, mas sou daqui, de qualquer forma você pode me chamar de mineira, fica-me bem... e eu mato um pouco a saudade.

Passaram a andar juntos, ela, como boa mineirinha, matutando disparou:

- Mas o quê houve com você?

Ele olhou-a com uma ternura de séculos sorriu e disse:

- Os tolos pensam que podem ludibriar os poetas!

Roger Ribeiro
04 de agosto de 2011

*SONETO ANTIGO – Cecília Meireles

Um comentário:

  1. esses tolos... também, se não fosse assim não seriam tolos
    bjsss... ; )

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