quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Uno? Não mais


Andava com a mente um tanto quanto turva. Os fatos não o ajudavam e não conseguia entender como havia entrado naquela espiral de turbulências que afetaram seu estado de espírito de forma abrupta e covarde.

Em todos os locais que freqüentava era sempre tido como alguém de muito equilíbrio e de um senso de justiça que o fazia de referência, jamais imaginou poder ser vítima de uma trama cósmica, ou seria cármica? Mas de uma coisa tinha absoluta certeza, tratava-se de algo de outro planeta, outra galáxia, outro mundo!

Agora aquele ser lúcido vagava como uma alma penada, a mente sempre em desalinho, para concentrar-se nos afazeres do cotidiano era um exercício hercúleo, ao fim do dia estava exausto. Sua aparência antes sempre muito bem cuidada cedeu lugar a um flagelo humano, estava praticamente irreconhecível, todo o seu ciclo estava apreensivo com seu estado e a pergunta rondava a cabeça de todos: o que houve? Que raios aconteceu com ele? Porém, resposta não havia.

Às vezes passava o dia vagando, andava a beira mar do Farol da Barra ao Farol de Itapoã, outras vezes sentava-se em um banco da Praça da Avenida Centenário e passava o dia olhando fixamente para um ponto qualquer. Nada percebia, nada o afetava, havia perdido qualquer contato com o seu ser sólido, vivia em um mundo paralelo, onde apenas as sensações existiam.

Disso tudo fiquei sabendo apenas depois, pois até aquele fim de tarde de domingo, nunca o havia visto. Mas o acaso ou os predeterminantes (depende de sua leitura sobre os fenômenos da vida humana), fez a diferença e colocou-nos um no caminho do outro.

Andava eu um tanto quanto distraído e apressado, estava meio atrasado para o meu encontro musical semanal com os amigos, assoviava o chorinho “André de Sapato Novo”, que iria sugerir para colocarmos no repertório, quando um bela moça sentada na grama tocando violão tomou toda a minha atenção, concentrei e tornei-me só ouvidos para captar o que ela tocava. A concentração era tal que nada mais percebia, apenas ouvia aquela voz miúda, porém bem afinadinha, alguns passos mais e consegui a audição total:

“Casa verde, portão aberto
Vejo à frente o deserto
Até o circo chegar
Pai, mãe, eu vou partir
Tem um circo em frente a casa
Pai, mãe, lá fora o sol é radiante
e meu vestido esvoaçante
tem um corte
Um grande beijo
Um abraço forte
Eu vejo o sol pela janela”*

Era uma bela moça, cantando uma bela canção, e com uma emoção, um sentimento tão límpido, que reduzi a velocidade do passo para poder aproveitar o máximo daquela situação. Foi exatamente aí que ocorreu:

Pruft ...cabrummm, lona, lá estava eu, violão e tudo mais esborrachado no chão, e pior entrelaçado com uma ser que nunca havia visto em minha vida. Após tomar ciência de que havia pisado e tropeçado naquele ser que até aquele momento julgava estar ali em paz e em segurança, até que minha distração o fez, a ele e a mim, retornar abrupta e sem escala para o chão úmido da pista de caminhada da Praça.

- Ôh! Não olhas para onde anda? Ou não andas por onde olhas? Veja (mostrou-me a perna que sangrava, não muito, mas sangrava).

Sem graça olhei-o e... O que mais podia fazer? Levantei-me e pus-me a ajudá-lo a levantar.

- Vamos (falei), logo ali tem uma farmácia, vamos lá fazer um curativo.

- Não há curativo que estanque, que cure... Veja (apontou para as árvores), elas estão aqui faz tempo, já assistiram de tudo, me contaram coisas que jamais poderia imaginar, dores e alegrias, risos e choros. Não tem jeito amigo, não tem cura!

- Mas o que é isso?!Porque tanto niilismo? Veja, olhe ao redor! Veja aquela menina mesmo ali, tocando e cantando, apontei...Olhei...Olhei novamente e... Ué! Cadê ela?

- Ela quem? Ali não havia ninguém...

- Como não? Eu vi e ouvi. Aliás, por causa dela que esbarrei em você.

- Vamos pegue seus apetrechos, a noite vem chegando e o destino ainda está muito longe.

- Como assim? Que destino? Não estávamos indo juntos a lugar algum! Aliás, se não me falha a memória, eu não o conheço. Assim como podemos estar indo...

- Você realmente, continua o mesmo... Por isso me desprendi de sua pessoa...

-Hã? Mas, espera aí... Do que você está falando? Das duas uma, ou você é louco ou eu estou ficando louco.

Do nada vi o vulto da menina que cantava passando ao meu lado, olhei-a e ela me mandou um sorriso largo, lindo! Seu rosto inteiro sorria para mim...

- Veja! (virei rapidamente pra o meu novo amigo) Não falei que ela estava lá? Olhe... Ôxi, cadê você?

Olhei trezentos e sessentas graus e... Nada. Como podia? De repente senti um desconforto na perna e vi que ela sangrava (pouco, mas sangrava), olhei novamente o vulto da menina e ela também já não mais estava.

A noite havia caído definitivamente. Peguei minhas coisas e voltei a caminhar, agora sem pressa, a sensação no meu peito era que nunca mais seria uno. Neste momento percebi o meu novo amigo apoiado no meu ombro direito, e a menina cantora abraçou-se à minha cintura esquerda.

Voltei a crer na cura.

Roger Ribeiro
13 de outubro 2011.
*Circo - Ronei Jorge

Um comentário:

  1. As vezes só nos damos conta das nossas várias variáveis quando lemos a mais verdadeira explicação num texto gostoso, leve e marcante como esse, amei meu marido perfeito tudo de bom.

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