terça-feira, 8 de maio de 2012

Tu separarás a terra do fogo e o sutil do espesso**



Para meu amigo que sofre do coração.


De domingo a domingo esteja chovendo ou ensolarado, não importava, lá estava ela impávida sobre a Pedra do Peixe ao noroeste-próximo do Farol da Barra, poucos a viam. Todos os dias centenas de centenas de pessoas passavam passeando, correndo, de automóvel, bicicleta, skate, de mãos dadas, abraçados, absortos, loucos, enfim de tudo um pouco, mas poucos ou quase nenhum a enxergava, parecia coisa resguardada aos poetas, aos estetas ou aos aluados.



Apesar de tudo isso, estava ela, sempre de uma elegância impar com seus vestidos de levíssimos tecidos de florido bordados à mão de tamanha beleza e delicadeza que só poderiam ter sido incrustados naquele tecido por mãos de fadas, não qualquer fada, mas do tipo das que criaram o vestido da Gata Borralheira. Os pés descalços confundiam-se com o brilho do sal nas pequenas poças d’água que formavam oásis para pequeninos peixes na escura e inabalável rocha negro-chumbo.



Por solfejar intermitentemente uma linda melodia, aqueles que não a viam, mas que a ouviam, costumavam chamar aquele local de “morada das sereias”. Os que viviam do mar temiam; nem as ondas violentas das ressacas de março ousavam tocar-lhe, apenas a fresca brisa nordeste lhe acariciava e fazia flutuar seus imensos fios de cabelo azuis que, os contadores de histórias desta terra, desde tempos de Monan e Maire, portanto anterior à chegada de Cristo ou Oxossi por estas terras, narravam que as pontas destes cabelos apagavam as pegadas das virgens nativas nas areias de uma das Ilhas mágicas, que se petrificou, saindo do hiato entre a Terra sutil e a Terra sólida com a chegada de Martin Afonso de Souza que a denominou de Ilha de Tinharé.



Não se tratava de uma jovem, os sulcos em sua face demonstravam que ampulheta havia virado por várias vezes, seus olhos negros confundiam-se com as Marias-Pretas, rápidas e abundantes nas poças que rodeavam aquela pedra, conseguiram permanecer abundante por terem pouca carne e muitas espinhas, o destino lhes foi benevolente. Enquanto o sol brilhava atinha-se a terra, lia com muita atenção a fisionomia de todos que passavam. Nada dizia. À noite voltava-se para o horizonte marítimo e postava-se como em oração. Nada dizia.



Apenas quando os poucos que a enxergava chegavam e mansamente sentavam ao seu lado parava de solfejar e atinha-se de corpo e alma ao que lhe era narrado. Jamais se apressava em emitir parecer, o tempo lhe era grande aliado, sabia ouvir os sinais da natureza, não bastavam as palavras, era necessário ouvir a brisa reverberar no som das palavras, o sol estalar na pele do narrador, havia muitos sinais que iam além dos limites impostos pelo que seus bloqueios mais sutis permitiam falar, e era exatamente ali que podiam estar os caminhos possíveis.



Por vezes sentia que o vento perdia a rota, sentia pelos fios dos cabelos que saiam da reta e rodopiavam perdendo a cor azul-água corando-se de verde-esmeralda que a emoção daquele corpo estava confusa. Os pássaros marinhos não ousavam se aproximar muito menos piar nestes momentos, de longe observavam as mudanças melódicas, aliás, do Morro Ypiranga ouvia-se:  


“Quando o riso se perde da face
E a tristeza invade
Entre o céu e o mar (...) / as gaivotas (...)”*

Em um destes momentos, quando o seu acompanhante iria começar a narrativa, levantou a mão pedindo-lhe que nada dissesse, colocou levemente os dedos sobre seus lábios e fechou os olhos para poder ouvir o vento e o sol naquele corpo, os odores que surgiam naquele momento, a reação dos peixes e das aves, foi neste momento que me viu voando entre o sol e seus olhos, sombreando-os, sorriu largo para meu voar! Voltou-se para o seu acompanhante e baixinho lhe falou:

- Amedrontamo-nos com o só por temermos ter de nos aceitar.

Seus cabelos retornaram à rota, agora em um azul-marinho vivo. Seus longos cabelos nas pegadas nativas – o tempo.

Roger Ribeiro
08 de maio de 2012.
*Vôo Rasante – Lui Muritiba
** Hermes

3 comentários:

  1. Que lindo Roger !!!! Muita poesia
    Engraçado e que eu cantei Vôo Rasante sexta passada la em Nazareth, em Portugal quando vi aquela paisagem grandiosa do alto !!!
    beijos e saudades

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