Ela o mirou de longe, na realidade ele
passava pelo outro lado da rua, mas ela sentada por detrás do tabuleiro seguiu
os seus passos até que ele desapareceu dobrando a esquina. Nada disse apenas
re-arrumou as folhas que havia posto acima do tabuleiro, sussurrou algumas
palavras incompreensíveis, limpou os dedos no vento que corria e retornou ao
seu afazer.
- Completo...?
Na outra ponta, o rapaz seguia seu caminho
distraidamente, tão distraidamente que não percebeu que aquele vento que lhe
estremeceu o corpo não seria algo normal em um final de primavera ao meio dia
de um azul escaldante, não se deu conta, entretido estava com seus vagos
pensamentos e vagando com eles permaneceu.
De costume há anos só saia entre as 11:00h e
às 14:00h, pois só neste intervalo a linha composta pela sombra dos fios
estavam em posicionamento adequado para que pudesse trafegar. Só andava por
sobre estas sombras, se sentia energia pura! A matéria que, por ventura, alguém
enxergasse não passava de miragem, alucinação, ou simplesmente um
condicionamento coletivo constituído a partir da consolidação do “capitalismo
selvagem”, como costumava protestar.
Ele não. Era energia máxima, podia
transpassar o universo por dentro de fios, cabos, fibras ópticas, condutores e
receptores de forma geral. Vivia em um emaranhado de redes de conduções que
simplesmente interligava todo o universo terrestre, por isso mesmo, apesar de
aos olhos de nós humanos parecer ser um solitário andarilho urbano, tratava-se
na realidade de um ser único. Para que você possa entender, o mais próximo que
temos em relação a este estranho personagem é a construção literária do
Surfista Prateado.
Hoje caminhava, concentradamente, pela trama
de sombras de fios entre o Largo da Vitória e o Farol da Barra, evitava o
trajeto da Vitória/Campo Grande, pois apesar de achar muito belo, até onde
conseguia enxergá-lo, sabia que os seus condutores estavam, naquela área, com bastantes
interrupções geradas pelas copas das grandes árvores, porém não se queixava
afinal, e sempre disse a todo o pulmão, e olha que pulmão de energia tem no
mínimo duas fases, que as árvores eram suas irmãs ancestrais, pois sempre foram
as verdadeiras antenas de ligação entre o impalpável interior e o invisível
externo!
Eu por minha vez sempre tive o hábito de
trafegar pelo trecho da Avenida Sete alcunhado de Corredor da Vitória, isso
também vem de velhas datas, desde o tempo do “bar Crivos”, um dos berços da
música desta cidadela, e olha que são muitos, até os quase diários passeios de
mãos dadas com a mais bela pétala morena que Minas deixou escapar por suas
montanhas. Como o “Crivos” não existe mais e a minha pétala morena enfeita
outro jardim, encontrei no meu amigo, equilibristas de fios, razão para
continuar freqüentando, este tão frondoso Corredor.
Sento-me em um tamborete junto ao isopor de
Dona Marta, que por sua vez fica ao lado da Baiana Chica, refiro-me à vendedora
de acarajés e outros quitutes e não às naturais do Estado, e ali fico de prosa
com uma turma que foi se juntando com o tempo e onde, se não estiver chovendo,
pois pode dar curto-circuito, o meu amigo equilibrista passa.
Com o tempo e de tanto oferecermos
acostumou-se a parar, equilibrado na sombra da junção de um entroncamento de fios,
para beber água e dar “dois dedinhos de prosa”, aliás, estes “dois dedinhos”
foram após meses, mas enfim confiou parou e passou a narrar suas aventuras pelo
mundo da velocidade e de como, de micro explosões em micro explosões, foi moldando
novos seres que a humanidade não mais permitia ver pelo excesso de luz criada.
Discorria por um bom tempo sobre o porquê o
homem necessitava das luzes artificiais? Porque às 12 horas de luz não lhes
eram suficientes? E quanta coisa este mesmo homem perdia contato por não
perceber as energias da noite, os ventos, a água correndo nos seixos, o sal que
se tatuava na rocha após a explosão de um amor furioso entre a onda e a pedra,
o voar das criaturas da noite, o mapa que as estrelas traçam para guiar sua
emoção. Por esta falta de coragem, dizia: o Ser Humano sempre temeu o eclipse,
nunca percebeu que ali se abre o portal.
Ao resto do mundo, ele não passava de um
louco, para nós era um ser que conseguia nos fazer enxergar nas fagulhas que
estalavam no ar, quando Dona Chica iniciava a ascender seu fogareiro, bailarinas
lindas rodopiando!
Um dia o equilibrista não apareceu,
passaram-se dias e... Nada. Ninguém sabia dele, procuramos, fomos a todos os
lugares possíveis de ter alguma informação, nada. Por fim resolvemos, um dia,
ficamos todos até o anoitecer. Até a luz se desdobrar por detrais dos mega
prédios da Vitória. Quando o sol desceu e a noite começou a cair, do nada, as
luzes se apagaram, só havia as bailarinas que saiam do fogareiro da Chica e de
tantas outras Baianas rodopiando no ar.
Disseram depois ter sido um apagão por razões
desconhecidas, mas enfim a cidade da Bahia pode vivenciar:
“As
criaturas da noite
Num vôo calmo e pequeno
Procuram luz aonde secar
O peso de tanto sereno (...)”*
Num vôo calmo e pequeno
Procuram luz aonde secar
O peso de tanto sereno (...)”*
Roger
Ribeiro
11
de dezembro 2012-12-11
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Criaturas da Noite – O Terço
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