
Possuía o dom de se tornar transparente, invisível e isso dizia aos quatro cantos do mundo que, por sinal é redondo, ou quase.
Mas como diz um dos bons poetas do Recôncavo
baiano: “você está / você é / você faz / você tem...”*. De tal maneira por
saber ser, ou por se iludir nada temia, ninguém o via, ninguém com ele mexia,
nada nem ninguém lhe tocava a carne sem que assim permitisse. Por isso saia de
peito aberto. Quando o encontravam, antes ou depois da grande festa, e lhe
perguntavam se não temia a nova realidade que se estabelecia, não apenas no
dito carnaval, mas em toda a cidade da Bahia, pois por ser contemporâneo de
Glauber Rocha, e o ler na época vorazmente em suas observações, adotara a
geopolítica do cineasta sobre o entorno da Baía de Todos os Santos – A Cidade
da Bahia!
Respondia aos seus interlocutores com muita
calma:
- Jamais abrirei mão do meu prazer de dançar
no meio da rua! Imagine, a cidade para! Os famigerados automóveis com seus
olhos incandescentes, brancos por falta de sangue nas veias, param, desocupam
os espaços, o furioso passar das pessoas atrasadas “sabe-se-lá-Deus” pra quê e
pra onde, cessam, tudo para, até o sol se pudesse parava de rodar e puxava a
lua pra dançar! E tudo isso para eu poder rebolar, pular, dançar no meio de uma
rua! Local que no resto do ano só é meu por míseros segundos de sinal
verde!? E querem que eu não vá? Vocês são loucos!
Todo este brandir, que presenciei por várias
vezes, calava os seus interlocutores e, por vezes, acabava por explodir em
aplausos, gritos e assovios de apoio vindo de todas as partes. Desta feita,
inclusive, ocasionou um olhar de repreensão do responsável pelo mau-humor
característico de um antigo e famoso restaurante no Largo do Mocambinho.
Neste ano não foi diferente, já na
quinta-feira, dia da entrega da chave ao Rei Momo, deu vazão a sua fantasia e
lá saiu para o que dizia ser o último resquício das felizes liberdades
plantadas em Woodstock e que, só encontrou solo fértil nos seis dias de festa
pelas ruas da Cidade da Bahia. Saía só, louco e transparente: “rebolando na
Avenida / prá desgraça e glória / desta vida”**.
Daí até a não menos famosa “Quarta de Cinza”,
viu, ouviu e dançou de tudo, encontrou um mar de gente, alimentou a alma de
cores inimagináveis, mas ninguém o viu, ouviu ou se quer soube de sua passagem,
mas lá estava! Como sei? Não sei, apenas escutei, ouvi falar.
Chegou até a mim à notícia de que enfim foi
visto. Andava, ou melhor sambava pela Rua Chile, quando foi abraçado pela
cintura e levado rodopiando como um pião até a Praça Castro Alves onde, inclusive,
esconderam o Poeta Maior. Estancou no meio da rua, milimetricamente entre o
Cine Glauber Rocha e a escondida, porém onipresente, estátua do poeta. Era um
ser todo prateado de onde se via rios de cor escarlate circulando
freneticamente como um solo de Armandinho!
Abriu-se uma enorme clareira na multidão
todos os olhos concentraram-se naquela visão prata-escarlate, o som tornou-se
pausa e da pausa passou-se a ouvir um levíssimo caminhar descalço, uma
silhueta descendo tão levemente que flutuava, vinha da Ladeira de São Bento em
direção ao clarão aberto no largo da Praça. O cheiro que desceu como orvalho
era de almíscar selvagem, à medida que o vulto avançava todos abriam passagem
e, como se estivessem hipnotizados, seguiam-na com os olhares mareados de
felicidade.
Parou ao centro, em frente ao homem
prata-escarlate e brilhou! Seu traje fino como um papel de arroz esvoaçava
acariciando o rosto de todos que olhavam. De silhueta tornou-se matéria real,
não mais era uma sombra flutuando, mas sim uma mulher de músculos finos e
longos, também com seus rios escarlates fervendo por entre sua dourada pele.
Estendeu-lhe os finos e longos braços e o prateado e dourado se entrelaçaram.
Em fração de segundos choveu púrpura na Avenida.
Em fração de segundos choveu púrpura na Avenida.
Quando os sentidos se realinharam, o espaço
estava sendo aberto novamente, o “Tapete Branco” chegara à Praça, desciam a Rua
Chile Os Filhos de Gandhi: a alfazema, o tapete branco aliado ao caxixis,
atabaques e agogôs, escondeu o voar prata e dourado... Como antes fora feito pela
chuva em Woodstock!
Roger Ribeiro
19 de fevereiro de 2013
*Dom de Iludir – Caetano Veloso
** Deixa Sangrar – C. Veloso
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