terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Enfim, humano!


 

Havia passado mais um carnaval. Passava completamente ao largo de todas as discussões a respeito das transformações ou não da festança momesca. Pouco lhe interessava as celebridades dos trios elétricos, dos camarotes, quem era a rainha da música carnavalesca? Quem era o rei? Quais atores, atrizes, modelos, quem veio de fora ou deixou de vir?

Possuía o dom de se tornar transparente, invisível e isso dizia aos quatro cantos do mundo que, por sinal é redondo, ou quase.


Mas como diz um dos bons poetas do Recôncavo baiano: “você está / você é / você faz / você tem...”*. De tal maneira por saber ser, ou por se iludir nada temia, ninguém o via, ninguém com ele mexia, nada nem ninguém lhe tocava a carne sem que assim permitisse. Por isso saia de peito aberto. Quando o encontravam, antes ou depois da grande festa, e lhe perguntavam se não temia a nova realidade que se estabelecia, não apenas no dito carnaval, mas em toda a cidade da Bahia, pois por ser contemporâneo de Glauber Rocha, e o ler na época vorazmente em suas observações, adotara a geopolítica do cineasta sobre o entorno da Baía de Todos os Santos – A Cidade da Bahia!


Respondia aos seus interlocutores com muita calma:


- Jamais abrirei mão do meu prazer de dançar no meio da rua! Imagine, a cidade para! Os famigerados automóveis com seus olhos incandescentes, brancos por falta de sangue nas veias, param, desocupam os espaços, o furioso passar das pessoas atrasadas “sabe-se-lá-Deus” pra quê e pra onde, cessam, tudo para, até o sol se pudesse parava de rodar e puxava a lua pra dançar! E tudo isso para eu poder rebolar, pular, dançar no meio de uma rua! Local que no resto do ano só é meu por míseros segundos de sinal verde!? E querem que eu não vá? Vocês são loucos!


Todo este brandir, que presenciei por várias vezes, calava os seus interlocutores e, por vezes, acabava por explodir em aplausos, gritos e assovios de apoio vindo de todas as partes. Desta feita, inclusive, ocasionou um olhar de repreensão do responsável pelo mau-humor característico de um antigo e famoso restaurante no Largo do Mocambinho.


Neste ano não foi diferente, já na quinta-feira, dia da entrega da chave ao Rei Momo, deu vazão a sua fantasia e lá saiu para o que dizia ser o último resquício das felizes liberdades plantadas em Woodstock e que, só encontrou solo fértil nos seis dias de festa pelas ruas da Cidade da Bahia. Saía só, louco e transparente: “rebolando na Avenida / prá desgraça e glória / desta vida”**.


Daí até a não menos famosa “Quarta de Cinza”, viu, ouviu e dançou de tudo, encontrou um mar de gente, alimentou a alma de cores inimagináveis, mas ninguém o viu, ouviu ou se quer soube de sua passagem, mas lá estava! Como sei? Não sei, apenas escutei, ouvi falar.
 

Chegou até a mim à notícia de que enfim foi visto. Andava, ou melhor sambava pela Rua Chile, quando foi abraçado pela cintura e levado rodopiando como um pião até a Praça Castro Alves onde, inclusive, esconderam o Poeta Maior. Estancou no meio da rua, milimetricamente entre o Cine Glauber Rocha e a escondida, porém onipresente, estátua do poeta. Era um ser todo prateado de onde se via rios de cor escarlate circulando freneticamente como um solo de Armandinho!


Abriu-se uma enorme clareira na multidão todos os olhos concentraram-se naquela visão prata-escarlate, o som tornou-se pausa e da pausa passou-se a ouvir um levíssimo caminhar descalço, uma silhueta descendo tão levemente que flutuava, vinha da Ladeira de São Bento em direção ao clarão aberto no largo da Praça. O cheiro que desceu como orvalho era de almíscar selvagem, à medida que o vulto avançava todos abriam passagem e, como se estivessem hipnotizados, seguiam-na com os olhares mareados de felicidade.


Parou ao centro, em frente ao homem prata-escarlate e brilhou! Seu traje fino como um papel de arroz esvoaçava acariciando o rosto de todos que olhavam. De silhueta tornou-se matéria real, não mais era uma sombra flutuando, mas sim uma mulher de músculos finos e longos, também com seus rios escarlates fervendo por entre sua dourada pele. Estendeu-lhe os finos e longos braços e o prateado e dourado se entrelaçaram.

Em fração de segundos choveu púrpura na Avenida.


Quando os sentidos se realinharam, o espaço estava sendo aberto novamente, o “Tapete Branco” chegara à Praça, desciam a Rua Chile Os Filhos de Gandhi: a alfazema, o tapete branco aliado ao caxixis, atabaques e agogôs, escondeu o voar prata e dourado... Como antes fora feito pela chuva em Woodstock!
 

Roger Ribeiro

19 de fevereiro de 2013

*Dom de Iludir – Caetano Veloso


** Deixa Sangrar – C. Veloso

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