quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Ponto, de partida




Fervendo, sim fervilhando! Assim começou o dia. Calor, muito calor, apesar da calçada vazia. O sol lentamente se levanta do horizonte, tem um brilho amarelado, meio assim... De quem ainda não lavou o rosto, os dentes, a alma. Porém mesmo assim tudo estava muito quente.

 

A luz enfim reverberava na vidraça da janela e isso gerava o eco. Sim, sem o eco nada há. Não existe movimento em mim sem que seja dentro do eco, é meu guia, meu vigia, aquele que em tudo está. Em tudo penetra. Necessito levantar, uso as reverberações solares que batem no vidro e criam um campo de atrito para poder me esgueirar.

 

Na pia ao tocar da água na louça o som se propaga pela concha aparadora, se expande, bate no espelho, dele na retina dos meus olhos, penetram na minha alma. Ameaçam minha calma, desviam meus sentidos. De minha caixa de ressonância forma-se um eco a repercutir pelos prédios. Desce avenidas, cria vias, caminhos, becos, encruzilhadas, ruelas... Desvios. Não existem placas, estas teriam de ser sólidas, mas no universo dos ecos entrecruzados nada é sólido, tudo é fluido, tudo flui à velocidade do som.

 

Apresso os encaminhamentos, não posso perder o tempo das ondas no espaço, se perder... Me atraso, ou talvez nem chegue, pode ser que me encaminhem para outras paragens, cenários diversos, afinal o universo é muito extenso e as vias por onde possam fluir as ondas são infinitas. Isso me conforta me apresenta a possibilidade de eterno.

 

Na rua a menina de pelos verdes sinaliza algo em minha direção, mas seu som é direto, necessito aguardar o delay, a reverberação, isso pode ser perigoso. Agachei-me rápido, desta vez deu tempo, o avião passou a dois dedos de minha cabeça. Um ser estúpido este avião, insiste em voar à frente do eco, voa no oco, no vácuo... O seu destino é previsível, o nada.

 

Vão com muita pressa em direção a algo que pertence ao futuro, portanto... Não existe. Porque ir de encontro ao que não existe, se tanta vida há nas entranhas do som? Por vezes passo a duvidar de meus próprios semelhantes, afinal aonde vão?

 

Necessito distinguir entre este universo de sons reverberando a tua voz, necessito de total concentração. No momento tudo o que me chega é a aproximação mais que veloz do meu transporte. Faz tempo que o sol bateu na minha janela, e ainda estou em meio a este turbilhão de caminhos sonoros sem conseguir ultrapassar a linha do tempo.

 

Diz um grande e magro poeta, com muita propriedade, que “a luz chega antes do som, e o som chega antes de mim”*, claro, afinal sem o entrecruzar das forças reais a imagem não se concretiza, não se materializa. O sólido só existe para ser transpassado pelo som, pela luz. São estas as vertentes reais que podem transformar o que existe em mim em algo inteligível: o amor, a dor, o triste, a raiva, a alegria. O que seria de todas estas coisas sem o eco do som, das cores?

 

Sim. Simplesmente eu não existiria, nem você, meu amor.

 

Roger Ribeiro

26 de agosto de 2015

* poesia de Ronei Jorge Martins.

2 comentários:

  1. Novos e bons ares virão meu caro. Com muito sucesso e satisfação pessoal, pode ter certeza!!

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  2. Existirmos: a que será que se destina?
    Pois quando tu me deste a rosa pequenina
    Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
    Do menino infeliz não se nos ilumina
    Tampouco turva-se a lágrima nordestina
    Apenas a matéria vida era tão fina
    E éramos olharmo-nos intacta retina
    A cajuína cristalina em Teresina.

    Que bom que vc sempre esteve, senao nao seria Vc!

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