quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Pretos, no máximo, acaboclados


De um momento para o outro, o que já se anunciava ao alvorecer, veio se formando: o vento as nuvens, tudo começou em um ciclo mais dinâmico do que os dias quentes e normais de verão.

Como se não fosse suficiente, na memória, também de um momento para o outro, veio-me frase dita; quando? Como? Por quem? Bom, não importa. A voz, diz: - as cotas raciais extremam o racismo e a política do privilégio.

Mas agora é tempo de férias, tempo para poder pensar e produzir o que ninguém, assim seja, quer comprar. Fui em busca de ondas, coisas raras nessa época do ano, mas, não posso mentir, esse ano não tenho do que reclamar; boas ondas e boa disposição, sem contar os encontros mais que inusitados que só à disposição do ócio se faz possível.

O tempo...

Eram todos pretos ou levemente Caboclos, muitas, muitas das muitas crianças pretas ou, no máximo, quase Caboclas. Com elas coloridos estandartes de algodão doce, picolés, sorvetes, acarajés, cocadas, água, artesanatos, enfim de um tudo nos ombros magros e pretos ou, no máximo, acaboclados daquelas crianças de pés descalços em um chão escaldante de verão.

O espaço...

Como se houvesse um cordão de isolamento invisível, do outro lado a alguns metros, homens de enorme protuberância abdominal acompanhados de senhoras de enormes chapéus e jovens e crianças que, apesar do delírio sensitivo do local onde estavam, não levantavam a vista dos trecos eletrônicos que um dia chamou-se celular. Auto fotos, muitas, o tempo inteiro; de ladinho, sorrindo, fazendo caras e bocas, o eu o tempo todo perpetuado pelo próprio eu e que, creio, só interessa ao próprio eu.

Donos do mundo.

- Você traga isso, traga aquilo, quero assim...

E lá estavam com suas enormes e brancas protuberâncias abdominais felizes por estarem sendo gentilmente assediados com todas as delícias possíveis para o gozo de um lindo balneário, nascido de uma colônia de pesca, possivelmente, originária de um quilombo, mas não tenho essa informação, fico devendo, em um dia claro e quente de verão.

E as crianças pretas e acabocladas, descalças passavam por entre eles, na maioria das vezes eram invisíveis, iam e retornavam à sede da colônia de pesca onde descansavam por alguns minutos à sombra, para logo refazer a trajetória por entre as protuberâncias e chapelões. Quando vinham à sede da colônia, percebíamos se haviam sido notados, quando isso ocorria vinham com um pequeno sorriso no rosto, quando não os olhos vinham opacos. A difícil sensação de inexistência.

Muitas crianças pretas, ou no máximo, acabocladas, descalças, provavelmente de férias escolares e que de segunda a segunda chegavam à praia por volta das oito horas, carregando seus produtos cheirosos e coloridos, que seriam oferecidos do lado de lá da divisória invisível até as 18 horas, todos os dias, os pés descalços e a ingênua conformação de que assim é o mundo. A esperança vai enrolada na cocada, no algodão doce, no acarajé, no picolé, mesmo quando aquela enorme protuberância branca, calçada, segurando um equipamento de alguns milhares de Reais na mão, disparava sem dar atenção:

- Como? Não está muito caro, querem explorar o visitante!

E a menina preta com uma caixa de isopor quase do seu tamanho, continuava com seus pés descalços naquela areia escaldante, tentando vender um fresco e delicioso picolé de alguns Reais a senhora de chapelão que aguardava a chegada das bebidas e comidas que custarão, sem dúvida, algumas centenas de Reais.

Hoje é domingo, 29 de janeiro de 2017, às 10 horas e cinquenta minutos, as crianças já estão a postos, todas pretas, ou no máximo, acabocladas, todas descalças, todas sorrindo e brincando entre elas. Os enormes carrões do Centro-oeste, Sudeste, Sul, Nordeste, de todos os cantos deste país começam a chegar, buzinam, gritam, xingam; São os donos do mundo, aqui ninguém existe antes deles chegarem e, depois que chegam, o que existe, existe para servi-los.

No dia que dedicaram à comemoração de São Francisco de Assis, na sede da colônia de pesca teve samba. Eram todos pretos, ou no máximo, acaboclados. Vez ou outra uma protuberância abdominal branca e calçada se aproximava, fazia uma ou duas fotos e se ia apressadamente. Da mesma forma que as crianças pretas, ou, acabocladas, entre um gole de refrigerante, afinal era dia de festa, dia do padroeiro da Colônia, e outro, saiam descalços, atravessavam a linha invisível, tentando existir.

Que tal estabelecermos cotas para a condição humana?

Roger Ribeiro

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