sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Peixe fora da panela!


Já passava quinze minutos do horário originalmente marcado. Éramos cerca de umas vinte pessoas, não sei ao certo, pois não me dei ao trabalho de contar com exatidão, dei-me por satisfeito em fazer uma estimativa. Na mesma estimativa dei como verídica a impressão de que, majoritariamente, o gênero feminino dominava o ambiente.

Inicialmente ficamos em pé próximos ao bebedouro e, buscávamos aliviar a ansiedade puxando conversas amenas do tipo: você é daqui? Qual o seu nome? Puxa, foi difícil chegar aqui no horário e, olha só! Algumas desconfiadas, afinal eu era o único homem do local, respondiam apressadas, fingiam lembrar de algo que estava na bolsa e saiam apressadas para o lado oposto, as quais depois eu as flagrava olhando de rabo de olho para mim.

Quando bateu mais ou menos uns vinte minutos de atraso, uma delas, não contendo mais o nervosismo próprio da ansiedade, falou em tom incisivo e alto: “isso é um absurdo, aonde já se viu?! Cheguei com quarenta minutos de antecedência para nada! Depois dizem que nós é que somos irresponsáveis”.

Notei que ela tinha um sotaque diferente e fiquei me perguntando quem seria o nós a que ela se referia? Procurei depurar os “erres” e “esses” dela para tentar deduzir de onde seria aquela moça de corpo largo, rosto redondo bem rosado e cabelos pintados de verde? Fiquei absorto e quase não percebi que rapidamente havia a nossa germana indignada atraído para si um punhado significativo de adeptas. Só atentei quando a polifonia de vozes fez com que a menina, diametralmente oposta à líder dos protestos, levantou-se e pediu calma a todos, ou melhor, a todas, já que eu era, e a essa altura já tinha certeza, o único homem. E encontrava-me bastante calmo.

Achei interessante ver aquela menina, moreninha, franzina, de olhos apertadinhos chamando aquelas moças, todas muito maiores do que ela, para o retorno ao equilíbrio emocional. Abri-lhe um sorriso e ela correspondeu. Fiquei meio sem graça, meio sem saber o que dizer, achei que seria primário em excesso perguntar-lhe o nome ou de onde vinha. Recorri então ao meu “anjo salvador”, que não raramente se torna “anjo exterminador”, Itamar Assumpção com suas composições ultra-românticas (na maioria das vezes dá certo, porém às vezes...). Bem, procurei na lista de suas canções uma saída para eu e ela. Disparei:

Você eu tenho que ter, meu bem
Pra poder comer, pra poder comer
Você eu tenho que ter
Pra poder dormir, pra poder dormir
Você eu tenho que ter
Pra poder viver, pra poder viver
Entre a Terra e a lua
Minh’alma tua
Entre a Terra e a lua...
Já sabe o que eu sinto de cor
Ou vou ter que escrever nos muros
Gritar nas ruas
Mandar por num outdoor?
De tanto não poder dizer
Meus olhos deram de falar
Só falta você ouvir *

Aqueles pequenos olhos se arregalaram. Havia uma fisionomia estranha naquele rosto outrora tão candido. Percebi que havia um grito preso na garganta. Comecei a temer pelo pior, isso já havia acontecido algumas vezes, nem sempre as pessoas entendem o que Itamar quer dizer, imagine eu querer dizer pela poesia do ‘negro dito Cascavel’! Talvez seja pedir demais, não é mesmo?

Pelo menos ela não levantou e saiu correndo, porém não conseguiu dizer nada, ficou me olhando com aquela interrogação gigante estampada no meio da testa. Olhou ao redor, talvez a procura de alguém que pudesse protegê-la, deu-me um sorriso nervoso e enviou o olhar dentro da bolsa florida sobre o seu colo. Certamente não procurava nada, apenas um local para pousar seus olhos atônitos longe dos meus.

O sol começou a esquentar e as “meninas” passaram a procurar uma sombra para proteção. Era um dia completamente azul, não havia uma só nuvem no céu, já beirávamos as nove horas e o calor começava realmente a incomodar. Tentei levantar-me para buscar um lugar à sombra, mas minhas pernas não correspondiam. Achei que havia escolhido a canção errada na hora errada. Procurei desviar a atenção, sai do olhar específico e retornei ao olhar geral.

Percebi que todas estavam de branco, apenas eu vestia-me coloridamente. Reparando um pouco mais, percebi que a única pessoa calçada ali era eu. Percebi também que todas, uma a uma, foram prendendo o cabelo e retirando das bolsas e sacolas, cordas coloridas que amarravam na cintura. Olhei ao redor e recobrei a memória de que estava em uma fortificação edificada no final do século dezessete e que serviu, além de fortificação, também de cadeia. Aliás, estávamos em um pátio rodeado de celas gradeadas: o Forte do Santo Antônio Além do Carmo.

Nossa! Santo Antônio? Pensei alto demais! A menina que já estava assustada, olhou-me sem entender nada e eu escondi o resto do meu pensamento. Prisão, Santo Antônio, meu Deus que perigo! Pensei, desta vez sem verbalizar: meu coração pode ficar aqui, aprisionado por séculos sem fim! Olhei a pequena menina morena e antes de me apavorar definitivamente, fui salvo pela entrada de quatro pessoas, também todas de branco e com cordões coloridos na cintura. Traziam atabaques, pandeiros e berimbaus. Anunciou enfaticamente: -“formar um círculo e iniciar o alongamento”.

Olhou para mim com olhar de estranhamento. Também me olhei e percebi que havia algo errado, eu estava de calça azul, camisa, bota e cinto de couro preto... Percebi que estava no local errado. Aproximei-me daquele que dava as ordens ali e perguntei-lhe: é aqui o curso de culinária marinha?

Ele riu e o riso dele me deixou sem riso algum, a situação era por demais incômoda para mim.

Senti uma pequena mão morena pegar em minha mão e com uma voz bem suave me disse: - “venha que eu te levo lá, aqui é a aula de Capoeira de Angola”.

Voltei a sorrir. Agradeci, mais uma vez, a Itamar Assumpção. Pensei: ela ouviu. É, ele tarda, mas não falha!

Roger Ribeiro
11 de setembro de 2009.

*Ouça-me
Itamar Assumpção.


Nenhum comentário:

Postar um comentário