quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Não é assim não, meu rei!




Domingo pela manhã. Não importa se é verão, inverno, primavera ou outono. Também pouco importa se chove ou faz sol. O certo é que a segunda mesa à direita da porta em frente ao balcão está lá com duas cadeiras postas e ninguém se atreve nem se quer a encostar e, se algum desavisado, novo no espaço, se arvora a dela deleitar é imediatamente advertido de que aquela mesa está reservada.

O ambiente é claro e fartamente ventilado. Trata-se de um restaurante famoso na cidade, possui uma cozinha invejável, produz iguarias gastronômicas, muitas delas, difíceis de serem encontradas, apesar de serem tradicionais da cultura local. Porém, a modernidade e sua eterna pressa fizeram-nas sumir dos cardápios, afinal são receitas cheias de segredos, possuem tempo de cozimento e maturação longo... O comerciante não quer ter esse gasto e o cliente, coitado, com seu paladar que não distingue um abará autêntico de um feito de farinha de milho, não quer perder tempo. Perda inestimável!

Ali você encontra todas essas receitas, mas apesar de tudo isso, a grande fama do estabelecimento de ‘pé direito’ dobrado não é bem a inigualável cozinha, mas sim o seu anexo de onde saem os famosos pastéis que deveriam ser servidos nas mesas, porém dificilmente isso ocorre, já que estes são disputados, educadamente claro, aos gritos, pelos habitantes do longo balcão. Vale tudo para não perder aquele lote. São eles que fazem, apesar da fritura, a fama deste Armazém, no bairro da Saúde.

Nove horas e quinze minutos em ponto. Eles chegam e ocupam a reservada mesa mencionada. Rapidamente uma das atendentes pega sob o balcão o tabuleiro e coloca-o à mesa entre os dois. Possuem quinze minutos para dispor sobre este os peões, cavalos, torres, bispos e, claro, suas respectivas casas reais. O embate medieval irá começar.

Nove horas e algo entre quinze e trinta, adentra ao recinto, com sua tradicional camisa social branca por dentro da calça Lee, assessorados de cinto e bota pretas, o Gentil.

Apesar da impecável vestimenta, Gentil possui uma vasta cabeleira encaracolada de cor amarela alaranjada que, pelo jeitão da coisa, brigou com o pente no mínimo há uns dez anos e com a cadeira rotativa e acolchoada do “Regis, o Pente de Ouro” então... Nem dá para precisar.

Seu nome verdadeiro, ninguém faz a menor idéia. Todos o conhecem como Gentil. Uns dizem que é porque toca no violão e canta os sambas do mestre Ederaldo Gentil melhor do que o próprio. Já a outra versão, diz tratar-se de uma homenagem ao sábio andarilho das ruas do Rio de Janeiro, o Gentileza. Qual a versão verdadeira? Como se diz aqui no popular: “quem souber morre!” Pouco importa! As pessoas desta cidadela não se incomodam com isso. Por aqui não se aprecia o certo e indiscutível! Não! Isso não serve para nada. O que aqui é prezado é o gosto pela polêmica. Sendo assim, todo fim de ano tem o “baba” (jogo amador de futebol), entre os adeptos da primeira explicação versos os da segunda. É “baba prá pirão”.

Gentil se posta em pé, frente ao tabuleiro. Está pronto para cantar, como um velho bardo, o embate. De um lado, o professor Cosme, um senhor negro de pele lisa e cabelos brancos como algodão. Do outro o professor Marcone, branquíssimo de pele sulcada e cabelos negros à “Camélia do Brasil”. Conhecem-se há muitas décadas, desde que eram titulares de Matemática e Física no saudoso Ginásio da Bahia. A contenda é séria, dizem que jogam cientificamente, porém regada à famosa “da casa”, servida, com distinção, em cálice de cristal e porções especiais de pastéis miúdos. Direitos adquiridos.

- Bispo na 4 do bispo da dama, cavalo do bispo de rei.

O jogo já está a toda. Professor Cosme sorri, ao que indica, ou pelo menos ao que percebo aqui do balcão, parece que fez um grande lance. Já professor Marcone está apreensivo. É hora de Gentil entrar na contenda:

- Belo cavalo branco,
sobre ele um garbo cavaleiro
arvora-se de nobre protetor,
mas no bolso nem pataca nem tostão,
portanto, nem pinga nem pastel,
afinal, aqui tem fiado não meu senhor!

E assim a manhã dominical vai passando, a missa acaba e as senhoras rezadeiras atravessam a rua para não passar na calçada do estabelecimento. Fingem repúdio e desdém, mas sempre encontram um pretexto para, enamoradas, olharem o que ali se passa. Só enfezam mesmo quando flagram o fingido, adoentado marido, de pinga e pastel na mão.

- Torre do bispo derruba a rainha!

Gaba-se, desta vez Marcone, sem dó nem piedade.

Suspense, aliás, tudo suspenso no recinto. Será verdade? Ninguém respira, o silêncio é total. O clima fica grave a ponto da bandeja de pastéis passar por toda a área do balcão e ninguém perceber. As atendentes pararam de servir, ninguém ousou pedir nada. Por segundos, temeu-se o pior.

- Êpa, êpa! Calma lá. Mas o que é isso? Onde pensa que estamos?! Aonde já se viu tamanho descalabro? Uma torre sobre uma dama? Uma rainha! Impossível!

Sobre a torre, a bela dama, a rainha
aguarda pelo seu salvador.
Do bosque, a espreita, o reluzente cavaleiro
busca forma precisa de livrá-la
de tão cruel penar.
Como pode Senhor, tal dama, tão distinta rainha
de pedras ser prisioneira,
se de tão longe consegue meu coração aprisionar?
Pois saibam, professores Marcone e Cosme,
Escutem com atenção:
no predicado nominal ela é sujeito e eu,
humildemente, predicativo.
Sem ela, não existo,
sem mim não tens sentido.
Sendo assim, não há torre neste mundo
capaz de impedir-me de
libertá-la!

Todos respiraram aliviados! Mais uma vez, Gentil salvou o domingo. Por conta, foi servida uma rodada da primorosa “da casa” e o jogo foi dado por encerrado. Eis o veredicto:

- Finalizado por falta de compostura frente à rainha!

Decretou Gentil.

Roger Ribeiro
28 de agosto 2009.

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