segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Esse cheiro de dendê no ar...



- Tá olhando o quê?

Bradou ela para que todos ouvissem. E todos ouviram. Eram 17 horas e quarenta minutos de uma terça-feira típica de novembro, ou seja, após um dia de sol intenso, o final de tarde trazia o alento da brisa fresca que vem do mar, além, claro, do forte cheiro de dendê quente que toma conta de todos os cantos desta cidade a partir das 17 horas.

Não houve quem não direcionasse o olhar para a fonte da voz. Ela era uma morena grande, daquelas que se vê com certa freqüência aqui na cidade do Salvador. Não era muito alta, possuía uma estatura mediana, normal para as moças soteropolitanas, assim no “olhometro”... Um metro e sessenta, não mais que isso, porém as partes do seu corpo possuíam lateralidades e volumes que lhe conferiam uma presença muito mais impositiva.

Estava em pé, de frente para o lado do mar. O coletivo estava cheio, é o horário de saída de trabalhadores e estudantes. A cada ponto mais gente se espremia para entrar no ônibus, e o trânsito interno no veículo já se tornava bastante difícil. Como se não bastasse, uma baiana colocou seus “apetrechos” (tabuleiro, mocó, cestos e afins) muito próximos da saída do transporte, afunilando, e muito, a passagem. Ninguém reclamou. Quem é maluco de reclamar com a baiana?! Ainda mais que ontem, 25 de novembro, foi o dia delas!

Aqui por essas bandas é assim, o transporte coletivo, se você estiver de bom humor, é sempre uma atração à parte no seu dia. Todos falam ao mesmo tempo e alto, o baleiro entra pedindo atenção de todos para suas promoções de balas e chocolates, alguém briga porque o trocador não tem troco para dar, todos comentam que é sempre assim, que o trocador está de má vontade, que o motorista está correndo demais, ou que está lento demais, o celular de alguém toca um pagode aos berros, crianças choram, idosos entram aos montes e ocupam metade das cadeiras, ninguém diz nada mas todos praguejam baixinho, pois estão cansados, trabalharam o dia inteiro. E pra completar, sempre tem um gaiato fazendo galhofa de tudo e de todos.

- Tá olhando o quê?

Repetiu, mais incisivamente a morena. Percebi que ela falava com um rapaz franzino que estava sentado no banco, dois passos atrás dela.

- Pensei que fadas só andassem em pontas de estrelas! É a primeira vez que vejo uma andando de ônibus. (respondeu o rapaz)

Ela disfarçou, mas não aguentou e largou um sorriso, porém antes que tivesse tempo de dizer algo alguém, uma voz perdida naquele coletivo lotado, completou:

- Também nunca se viu uma fadinha com um “pandeiro” deste tamanho, haja estrela!!
- É porque sua mãe só concorreu para o título de bruxa!!

Bradou a morena com sua possante voz. Todos caíram na gargalhada, assovios, berros, instigações, ouvia-se de tudo.
De repente a voz oculta mostrou-se e novamente manifestou-se:

- Não bote minha mãe no meio disso sua “broaca”!

Só ouvi o zunido do vento e depois o Splashh! Só que não era o beijo roubado no cinema e sim uma “bifa” (tapa, sopapo, ou como queira chamar), daqueles que pegam em cheio na bochecha e saem ardendo da nuca até o Tendão de Aquiles.

- Broaca é a ...
- É o quê? Cê só fala isso por que é mulher...
- venha cá que te dou outro sopapo... E blábláblá...

Nossa! A gritaria no ônibus era tão intensa que não se conseguia distinguir mais nada, era um empurra-empurra sem fim, todos provocavam a todos, na verdade cada um buscava colocar um gravetinho para ver a fogueira pegar fogo.

Quando a situação já estava insuportável de tantos gritos, palavrões, risadas, assovios, provocações e os “cambaus”. Veio a “gota d’água”: o cesto do baleiro voou! Foi amendoim, jujuba, balas, chocolates, doces em geral prá todo lado!

- “Peraí motô”!

O grito foi forte, o motorista olhou o campo de guerra pelo espelho, deu sinal e parou o veículo com aquele freio mais contundente que costumamos nomear de freio de arrumação.

- Tá pensando que tá carregando boi?

E voou um saco de amendoim na cabeça do motorista.
Por sorte, ou não, logo atrás do ônibus vinha uma viatura da polícia, que imediatamente parou e dela desceram três soldados da polícia militar já de arma em punho. Acho que desconfiavam ser um assalto.
Entram no ônibus e ordenam:

- As mulheres ficam os homens descem com seus pertences.
- Mas que é isso! Eu tô atrasado, esse povo maluco!
- Olha doutor, eu só quero saber quem vai pagar meu prejuízo? (Falou o baleiro com voz de choro).
- Esse vagabundo me chamou de “broaca”!
- Essa “broaca” ofendeu minha mãe.
- Aquele magricela disse que eu tinha que andar na ponta sabe lá do quê, pois ele nem tem caixa prá encarar o filé aqui!
- Eu só tava dizendo um gracejo!
- Alto lá! (berrou o Capitão, como ficou conhecido), vamos parar com essa gritaria. Já falei os homens descem com seus pertences e as mulheres ficam.

Todos resmungando, aceitaram a ordem, não havia jeito.
Revista de cá, revista de lá, a coisa começou a demorar, então alguém falou ao motorista:

- “Ô motô”, vou ali comprar uma água, não saia sem mim, heim!
Apontou para uma birosca que estava a uns 5 metros de onde o ônibus parou. E cada um que terminava a revista se dirigia à birosca. De água, alguém pediu uma cerveja, copos, as pessoas iam chegando, o baleiro tentava negociar seu prejuízo entre um copo e outro da cerveja. O motorista fingiu que ia no banheiro para tomar um copinho, pois como estava trabalhando e dirigindo não podia beber.

Chegou também a morena, a baiana, o gaiato, um dos policiais... De repente alguém sacou do pandeiro, o dono da birosca botou uma carne no carvão...
A morena achou o magricela e disparou com um copo na mão:

- E aí neném vai encarar?
O magricela pigarreou, olhou para a morena de cima a baixo, chegou para junto do pandeiro e disparou;

- “Lá vem a baiana
De saia rodada, sandália bordada
Vem me convidar para dançar
Mas eu não vou
Lá vem a baiana
Coberta de contas, pisando nas pontas
Achando que eu sou o seu iôiô
Mas eu não vou
Lá vem a baiana
Mostrando os encantos, falando dos santos
Dizendo que é filha do Senhor do Bonfim
Mas, pra cima de mim?!
Pode jogar seu quebranto que eu não vou
Pode invocar o seu santo que eu não vou
Pode esperar sentada, baiana, que eu não vou
Não vou porque não posso resistir à tentação
Se ela sambar
Eu vou sofrer
Esse diabo sambando é mais mulher
E se eu deixar ela faz o que bem quer
Não vou, não vou, não vou
Nem amarrado porque eu sei
Hum hum hum hum hum hum...”*

O ônibus foi embora, vazio!

Roger Ribeiro.
26 de Novembro de 2009.

* “Lá Vem a Baiana” – Dorival Caymmi

2 comentários:

  1. Valeu! Depois de uma manhã bem trabalhada (a minha), a sua criatividade e humor com certeza vale PALMAS. Um beijo grande.

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