segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Inteiro ou fração?




- Você destroca para mim?
Parei olhei a mão estendida a segurar uma nota de cinquenta reais e pensei: sim, eu entendo o que ela quer, ela quer saber se eu troco aquela nota por frações que a somatória dê aquele total. Mas porque ela coloca o “des” na frente do trocar?
- Moço! Você destroca ou não?
Continuei absorto pensando na semântica da coisa: eu só poderia destrocar se já tivesse antes realizado o ato da troca. Enfim falei:
- Você quer que troque?
- Sim “fiu”, você desgarra pra mim?
- Desgarrar?
- Sim! Preciso pagar umas compras na quitanda e lá ele não destroca.
Peguei a carteira pra ver se possuía a quantia.
- Cinco de dez...
- É já ajuda, obrigada.
- De nada, boa sorte!

Segui o meu caminho ainda pensando no assunto e concluindo que existe uma linguagem cotidiana que está longe, muito longe dos bancos escolares, das conjugações verbais, das sintaxes e morfologias. Existe uma linguagem que não está aprisionada em papeis, ela é viva, dinâmica. Anda pelas ruas e vai ganhando forma as mais diversas. Apega-se muito ao timbre, sem saber o que é timbre, mas na maior parte das vezes a entonação da palavra dita, diz mais do que a própria palavra.

Afinal, não é por preguiça, afinal dizer trocar é muito mais fácil do que dizer destrocar. É uma questão de comunicação, conheço pessoas que ao invés de ter dificuldade, tem dificulidade, e como a dificulidade é séria não há nem espaço para uma sonora risada já que a sonoridade da nova palavra tem um acento cômico quando chega aos ouvidos. Mas cada um sabe o grau das suas dificuldades, ou dificulidades, não é mesmo?

De tão intrigado nos meus pensamentos acabei por passar do local para onde estava me dirigindo, parei, percebi o erro gerado pela minha distração e dei meia volta para chegar ao local exato. Percebi que do outro lado da rua havia um quiosque oferecendo água de coco. Atravessei a pista cheguei ao balcão do quiosque e pedi:

- Por favor, me veja um gelado! (o calor era intenso).
Sem uma palavra o rapaz com muita destreza retalhou o coco, colocou um canudo rosa e me entregou a fonte do meu desejo imediato.
Tomei todo o conteúdo enquanto observava ao redor o colorido das pessoas que passavam naquela manhã ensolarada de um céu azul intenso que realçava as cores das roupas das pessoas. Fiquei uns dez minutos tomando a água de coco e saboreando a idéia de como a cidade era colorida. Pessoas negras vestidas de branco, pessoas brancas vestidas de preto, pessoas nem brancas nem negras vestidas de verde, vermelho, roxo, azul, amarelo, laranja, passou uma menina com um vestido de arco-íris... Embriaguei-me de tantas cores!

Perguntei o preço, só para confirmar, pois havia uma tabuleta bem clara que dizia: “coco natural ou gelado 1,00”.

- Um real!

Meti a mão nos bolso, nada! No outro e no outro... Percorri todos os bolsos e, nada! Peguei a carteira e lá estava arrumada em “berço esplêndido” a nota de cinqüenta reais “destrocada”. Meio sem graça, mas fingindo naturalidade peguei-a e estendi-a ao rapaz.
Ele me olhou e percebi no olhar que não estava acreditando muito no que via. Coçou a cabeça com o cabo do facão e disse:

- rapaz, tem trocado não?

Ainda sem graça, pois sabia que consuetudinariamente, eu estava errado, apesar de legalmente estar certo, afinal era dinheiro, eu não estava me recusando a pagar, portanto a obrigação de ter troco era dele. Porém, na lei do dia-dia não é assim.
O olhar dele para mim era de incredulidade, ou seja, ele não tinha troco, não tinha como sair dali, pois não havia ninguém para ficar no seu lugar e, pior, se eu não pagasse quem pagaria seria ele, afinal ele não era o proprietário do quiosque e sim apenas o funcionário e, certamente, o dono não iria nem querer saber, os cocos estavam contados e se não batesse quantitativo com receita quem pagaria seria ele.

- Rapaz, respondi, tenho não. Mas espera um pouco que vou tentar trocar.

Sai perguntando, fui a uma banca de jornais próxima e perguntei:
- Por favor, você troca pra mim?
A resposta foi um aceno de cabeça negativo. Saí perguntando a todas as coloridas pessoas que passavam. Nada. Voltei ao quiosque e perguntei:

- Rapaz ninguém troca, como a gente faz?
Ele me olhou, levantou o ombro e nada disse.
- Até que horas você fica aqui?
- Seis (que na verdade eram 18 horas).
- Olha, vou fazer o seguinte, estou atrasado para um compromisso, mas volto mais tarde e pago o coco. Não tem jeito, você vai ter de confiar em mim.
- Fazer o quê né bacana! Cê vem tomar um coco com uma nota de cinqüenta?
- Não se preocupe eu volto.
- Tá (um tá visivelmente contrariado)

Saí sem graça, me sentindo errado e com aquele olhar em cima de mim como quem diz: “vai voltar nada”. Mas para mim era questão de honra, precisava reparar o meu erro, não podia deixar a corda partir no lado mais fraco.

Cheguei ao meu compromisso, era uma palestra a respeito de conflitos sócio-políticos na África subsaariana na atualidade e de como se matava aleatoriamente em nome de diamantes, petróleo, ouro, drogas, enfim, como se matava por tudo, o palestrante passou trecho de filmes como “O Senhor das Armas”, “Diamantes de Sangue”, “Hotel Ruanda” e outros mais.

Saí impressionado com os exércitos infantis, meninos e meninas com armas, por vezes maior do que eles próprios. O palestrante era um sobrevivente de uma noite de massacre daquelas. Os horrores narrados eram de um realismo cortante. Lembrei das cores que avistara ao tomar o coco no Largo Dois de Julho, senti uma profunda repugnância pelo ser humano. Como podia um ser tão dotado de especialidades quase divinas praticar tantos horrores, em nome de metais, pedras, ou sei lá o quê!?

Saí do prédio do Centro de Estudos Afro Orientais da Universidade Federal da Bahia, meio atônito, fui ao florista, comprei umas flores vivas, muito coloridas, tão coloridas quanto o povo da minha cidade. Entreguei a nota de cinqüenta e já olhando para o quiosque de coco, pensei: e ele, com o facão na mão, em momento algum ameaçou me acertar, e olha que era por uma água de coco, algo infinitamente mais importante do que ouro, diamante, petróleo ou coisa que os valha. Instintivamente perguntei ao florista:

- Você destroca para mim?

Roger Ribeiro.
16 de novembro de 2009.

Um comentário:

  1. Muito legal sua viagem...é vida!vivida e sentida!...continue "destrocando"..rssss parabéns!

    ResponderExcluir