terça-feira, 5 de julho de 2011

Uma! Talvez uma



Era uma cidade diferente, não desconhecida, não isso não! Aliás, muito pelo contrário, era uma velha cidadela conhecida. Fazia um frio gostoso, nada abaixo de dezoito graus, o que fazia daquele caminhar entre prédios imperiais algo extremamente prazeroso.

Museus, teatros, cinemas, bares e restaurantes, tudo muito elegante sem perder o calor do abraço. Não era uma elegância fria de salão, era a imponência do belo e pleno, tudo composto para que a paisagem humana transitasse como notas musicais em uma partitura. Afinal não existe função para um pentagrama que não seja pendurar o tecido musical.

Aquele fim de tarde azulado pedia uma parada na padaria para um café coado, a conversa no balcão era intensa, porém calma e tranqüila, não havia alterações, alguns falavam de política, outros de futebol, praia, seleção, enfim era um universo múltiplo sem dúvida.

Após o café continuamos andando eu com minhas surradas botas pretas e meu amigo “Barba”, sempre com seu olhar atento, buscando fazer uma relação entre a larga avenida em que transitávamos e o que poderia ser aquele Vale no período pré-cabralino. Realmente um exercício intenso de imaginação e, claro, muito romantismo idílico.

Por um instante “Barba” parou. Senti os seus olhos se encherem d'água:

- O que houve? Perguntei-lhe.
- Olhe para frente...

Olhei e lá estava uma enorme e bela edificação religiosa.

- Bela não?
- O mais belo é o que foi refeito aqui.
- Como assim?
- Aquela igreja é a Candelária...
- Sim... Agora lembro; o local da chacina dos meninos.
- É... Veja o que fizeram! O largo está límpido, colocaram um monumento ao ocorrido, clarearam a região, mas, acima de tudo, mantiveram o luto, não empurraram para debaixo do tapete os fatos, eles estão ali, esta sociedade assume a sua culpa e não quer fazer esquecer, mas sim expor para não torná-la.

Calei-me e permitir-me refletir. Continuamos andando lado a lado, porém nos permitimos apenas calarmos, passamos pelas pessoas, pelas coisas, algum momento lembrou-me das poesias de Arnaldo Antunes e comentei com “Barba”, ele sem nem mesmo virar-se para mim subiu no pedestal da estátua e:

O buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar aqui
com um olho aberto, outro acordado
no lado de lá onde eu caí

pro lado de cá não tem acesso
mesmo que me chamem pelo nome
mesmo que admitam meu regresso
toda vez que eu vou a porta some

a janela some na parede
a palavra de água se dissolve
na palavra sede, a boca cede
antes de falar, e não se ouve

já tentei dormir a noite inteira
quatro, cinco, seis da madrugada
vou ficar ali nessa cadeira
uma orelha alerta, outra ligada

o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar agora
fui pelo abandono abandonado
aqui dentro do lado de fora*


- Desce daí rapaz...(falei)
- Olha lá como fala, este local merece uma poesia!

Refiz-me do susto e não tive outra opção a não ser concordar, sim aquele local merecia uma poesia...

Senti a mão dele no meu ombro que saiu me puxando,adiantou o passo. Saímos da fase contemplativa como se tivéssemos um compromisso inadiável, novamente não deu tempo nem mesmo de tomar fôlego, nem de falar nada. Quando me vi estava entrando em um prédio lindo, onde havia várias exposições, salas de espetáculo e uma livraria maravilhosa encostada à lanchonete.

Subimos ao terceiro andar e quando me vi, já estava sentado à terceira fileira de uma simpática sala de fazer rir e chorar.

- “Barba” o que teremos aqui?
- A tradução!
- Como assim...?
- Não sei o que está acontecendo com você, estás desconectado!

Não deu tempo de responder, as luzes se apagaram e após aqueles famosos cinco minutos de não pode isso, desligue aquilo, temos isso e aquilo, o silêncio se fez. Dois vultos entraram no palco sentaram-se. Um acordeom bem sutil junto a uma Gibson semi-acústica vermelha encheu de uma música plena, porém leve e suave o ambiente

As luzes foram se ascendendo lenta e progressivamente. Da penumbra para a claridade ao centro do palco estava um ser prateado de sandálias de gladiador, lá estava ela soberana. Antes que emitisse qualquer som, sua presença se fazia, como na retórica de Gilberto Gil, enchendo de si todo o ar da sala de sonhar.

Sobre a cabeça uma cabeleira que parecia ter sido emprestada por alguém de diâmetro, raio ou sei lá com que medida se analisa cabeça e cabelo, maior do que ela. Era realmente algo impossível de não se ver, de não se admirar.


Cantou um blues nordestino, triste... daqueles de doer nos ossos, e seus olhos brilhavam como lagoa em lua cheia onde sabe-se que deve-se mergulhar, porém jamais se sabe aonde vai dar.

Mergulhei.

Roger Ribeiro
05 de julho de 2011

*Os buracos do espelho - Arnaldo Antunes

3 comentários:

  1. E claro que eu enviei para a Musa inspiradora rsrs
    ótimo querido
    beijão

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  2. você é um anjo! Tomara que ela goste.

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  3. Não sei que é a nova musa, mas com certeza vai gostar...

    Boa sorte!!!

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